MARCOS ROBERTO SANTOS PEREIRA, especial para a Mangue Jornalismo
(marcosrsp.philosophia@gmail.com)
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.
A promessa de mundo globalizado trazida pela internet tem alguns dos seus limites bem estabelecidos na dinâmica dos algoritmos. A facilidade com que eles nos fazem esbarrar com o clipe de um rapper indiano cantando em inglês é a mesma com que nos impedem de encontrar as produções menos recentes da cena estadual. Com isso, o tal mundo globalizado não passa de uma bolha de consumo de conteúdo digital na qual, em parte, nos colocamos e, em parte, somos colocados. Portanto, aquilo que vemos, ouvimos e sabemos, por vezes não corresponde ao que é factual, e dentre tantos exemplos, ao menos dois deles são de rappers brasileiros: primeiro a reivindicação de criação do trap brasileiro por parte do Raffa Moreira e a reivindicação de pioneirismo do rap sujo feminino feita pela Ebony.
Para entendermos como isso se dá e quais os problemas advindos daí, precisamos aceitar antes o pressuposto de que um gênero musical é definido pelo conjunto de artistas que o produzem. Os paradigmas e critérios de qualidade que estabelecem como uma música de determinado gênero deve ser e se ela é boa ou não são determinados por aspectos subjetivos da maioria visível dos seus artistas. Assim sendo, o gênero é moldado pelo arcabouço de experiências sócio culturais desses artistas, e, consequentemente, pelo espaço geográfico que torna possível a sua constituição. Constatamos isso a partir de gêneros como forró e axé, cujos artistas são predominantemente do nordeste, sertanejo, do centro-oeste, e o funk, de Rio de Janeiro e São Paulo.
Com o rap não é diferente. Desde seu surgimento até os dias de hoje, ele deixou de ser uma arte marginalizada, inserida em um movimento de contracultura, para ganhar os palcos dos maiores eventos de música do mundo, as trilhas sonoras dos filmes mais assistidos e algumas das maiores cifras do mercado artístico como um todo. Contudo, falar nestes termos é apenas meia verdade. Alguns desses dados, se não todos, têm uma âncora geográfica muito bem fincada nas terras da américa estadunidense. Não foi Mano Brown que a produção do primeiro Pantera Negra convidou para compor a trilha sonora do filme, mas sim Kendrick Lamar, Emicida não tem tantos grammys ou dinheiro quanto Jay-Z, o quadrinho Hip-Hop Genealogia não dedica uma nota de rodapé sequer para o rap brasileiro e a série documental Hip-Hop Evolution só cita um outro país quando retrata a influência Jamaicana que Notorious B.I.G teve por parte de mãe.
Isso obviamente não significa que não haja rappers brasileiros ricos e largamente reconhecidos, ou mesmo que eles não sejam maioria em relação aos dos Estados Unidos. Contudo, a nível mundial, a visibilidade do rap é focalizada nos e pelos Estados Unidos, são eles que detêm os aspectos citados anteriormente e que se comportam de maneira hegemônica diante do gênero, sem desvincular a história do hip-hop da história do próprio país, por exemplo. Daí, contraditoriamente, práticas que podemos chamar de colonialistas começam a se manifestar nas relações dos artistas norte-americanos com o resto do mundo. Vemos isso de forma clara na repercussão que teve o lançamento do videoclipe ‘This is America’ de Childish Gambino. A música por si só não dá conta da concepção restrita que o artista tem, é apenas com o videoclipe que o “isto” indicado no título e repetitivamente cantado é materializado nas diversas referências à história estadunidense.
Isso foi prontamente percebido pelo rapper porto-riquenho Residente, que em resposta lança o videoclipe “This is not America”. Nele, o rapper traz, em contraponto ao clipe de Gambino, uma série de referências à América Latina como um todo e a certa altura afirma: “…com sangre caliente. Como Timbuktu. Estamos dentro del menú. 2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú. America no es solo USA, papá…” E no final: “… Más de cien años de tortura. La nova trova cantando en plena dictadura. Somos la sangre que sopla la presión atmosférica. Gambino, mi hermano, esto sí es America.”.
Com isso, Residente deixa claro que não devemos nos deixar pensar que o equívoco de Gambino é um mero erro de geografia, tão comum entre os estadunidenses. O que essa escolha revela é, primeiramente, a distinção que os estadunidenses pretendem estabelecer entre eles e o resto do continente, tomando para si toda a América e deixando a todo o resto o terreno nebuloso de uma identidade chicana singular, e, consequentemente, a falta de relevância atribuída a qualquer outro país do continente que não os Estados Unidos. Assim entendemos a identificação que Residente parece estabelecer entre os Estados Unidos e a Europa a partir de um posicionamento colonialista em comum.
Práticas como essas, contudo, não se restringem a relações entre países. Dentro do Brasil elas também se manifestam, e principalmente num panorama inter-regional. Os casos mais comuns são os do pioneirismo autoproclamado de artistas sudestinos. Com ajuda de plataformas de música regidas por algoritmos tão diretos quanto débeis, Ebony, Raffa Moreira e Naio reivindicam o título de pioneiros de algumas vertentes do rap no Brasil.
No caso de Raffa Moreira, o trapper não mede esforços para se auto intitular o criador do trap brasileiro e a cena não tem ressalva alguma em fomentar essa ideia. A alcunha de criador do trap brasileiro está presenta na música Gangsta de Internet; no single Guarulhos Trap City, Raffa é taxativo ao afirmar a superioridade da cidade paulistana frente a Chicago, uma das mais prolíficas de produções do gênero, e os documentários do Spotify e da Agência Mural de Jornalismo cravam em Guarulhos o marco zero do trap no Brasil, justamente a partir de Raffa Moreira e seu coletivo.
Em resposta a este posicionamento, Naio Rezende desloca o marco zero do trap brasileiro de Guarulhos para Vitória no Espírito Santo. Segundo ele, não foi Raffa Moreira, mas sim Cachorro Magro e seu coletivo que deram o pontapé ao gênero no Brasil. Contudo, apesar desta divergência, ambos os artistas têm um aspecto em comum: nenhuma das produções que afirmam terem sido as primeiras feitas por eles estão disponíveis digitalmente. Segundo Naio, o trap feito por Cachorro Magro e seus parceiros acontecia em festas organizadas pelos mesmos, e quanto a Raffa Moreira, o que temos é apenas o relato do mesmo acerca de uma música que ninguém além dele e de seus amigos ouviu. Diante disso fica claro que a questão não gira em torno de quem fez trap primeiro no Brasil, mas de quem tem apoio midiático suficiente para fazer sua reivindicação se tornar verdade. Portanto, numa época em que a mídia digital tem uma parcela significativa de consumidores, a questão gira em torno de quem faz sua reivindicação ter mais engajamento nas redes sociais. E sem dúvida Raffa Moreira venceu essa disputa.
Apesar disso, o próprio Raffa já deu os créditos a artistas anteriores que serviram de inspiração para ele. É o caso dos grupos All-Star Brasil e Six Face Mafia. É de notar, contudo, que nenhum dos nomes citados por ele sejam de nordestinos. O que é de se estranhar, já que Raffa Moreira já participou de uma das músicas de Makonnen Tafari, que é baiano e um dos pioneiros do trap no Brasil, além de Raffa ser, ou já ter sido, amigo pessoal de Fuky Nery, sergipano, também pioneiro do trap no Brasil, e ainda por cima gospel. Contudo, ao contrário de Raffa Moreira e Naio, as produções dos nordestinos estão registradas no youtube e no soundcloud, e em compração ao All-Star Brasil e ao Six Face Mafia, as produções de Makonen e Fuky Nery são de uma no antes, no caso do primeiro, e dois meses antes, no caso do segundo.
Algo de semelhante ocorreu com Ebony, a recentemente auto proclamada pioneira do rap sujo feminino. Baseada igualmente no documentário do Spotify, cuja produção a procurou para fazer parte do mesmo, Ebony afirma que, até ela lançar suas músicas, não havia uma mulher sequer que fizesse rap sujo, entenda-se rap vulgar, repleto de palavrão e putaria. A resposta veio de bate pronto através de duas rappers baianas: Cintia Savolli e Laela. A primeira, adota um tom mais sério e recita uma poesia afirmando a história do rap feminino e o quão sujo ele pode ser: “Hey, pioneira do rap sujo coisa e tal. Tô te escrevendo uma carta e vou ser bem sensata não me leve a mal. Essas terras já vinham sendo cultivadas, com rap da pesada, palavrão é coisa normal. […] Spotify é sua referência e o rap é a minha vivência, cadê, morreu a consciência?”
Já Laela é a sujidão em pessoa e solta um pagotrap entupido do que há de mais típico da swingueira baiana. Uma breve amostra será suficiente: “…rap sujo nós já fez. Putaria laysa fez. Lá em 2016. Me diz então quem são vocês? […] usou o doc do spot como ref. Nele nem tinha Makonen que a miliano faz trap…”.
A situação da Ebony fica ainda mais complicada ao sabermos que ela elogiou o traço regional da música da Laela. Como se não fossem regionais todas as referências ao Rio de Janeiro, o sotaque, as locações e as gírias que vemos e ouvimos em diversos raps. Como se o funk, que é inspiração para o trabalho da Ebony, não fosse tão regional quanto o pagodão. Como se o fato de o funk ser ouvido por todo o Brasil conseguisse esconder a falta de visibilidade de qualquer funkero que não seja do eixo Rio-São Paulo e não esteja alinhado estética e liricamente com ele.
Nos casos de Raffa Moreira e Ebony observamos uma redução de mundo, tal qual no caso de Childish Gambino. Se neste último, a operação se dá pelo posicionamento dos Estados Unidos no centro do mundo, com Raffa Moreira e Ebony, vemos o eixo Rio-São Paulo ser colocado no centro do Brasil. Obviamente isso não seria um problema dos próprios artistas se eles não contribuíssem com sua gota de fel para a invisibilidade do rap nordestino. Ao se autoproclamarem pioneiros, ignorando e invisibilizando toda uma história do rap nordestino, Raffa Moreira e Ebony não apenas se beneficiam da relevância midiática que tem o eixo no qual se encontram, mas se valem dela para ampliá-la a seu favor. Invalidam toda e qualquer experiência nordestina em prol de uma luta de um homem só, ou uma mulher, que relega apenas a si o fardo do pioneirismo e que, portanto, é o único com direito a receber os frutos de sua empreitada, ou, ao menos aquele a quem se deve a maior parcela. Enquanto que ao Nordeste sempre sobrará a defesa do óbvio e a repetição da história. Diante disso e de frente para Raffa Moreira, Ebony, e tantos outros nos resta perguntar: “Como é que você nunca ouviu falar?”.
Marcos Roberto Santos Pereira é doutorando em filosofia pela UFS e pesquisador informal da história do rap sergipano.