HENRIQUE MAYNART, da Mangue Jornalismo
Encontramos Jéssica Taylor na esquina entre as ruas Itabaiana e Maruim em pleno Centro Histórico da capital sergipana. A gabineta da deputada estadual Linda Brasil (PSOL), onde trabalha como assessora parlamentar desde 2021, ocupa o traçado entre o Agreste e o Vale do Cotinguiba pelo coração fatiado de Aracaju.
Gravador ligado e pé na tábua. Nascida na foz do São Francisco em território remanescente quilombola, Jéssica inventou de abrir os pulmões para este mundo justamente em 17 de março, aniversário de Aracaju. “É bom que sempre comemoro o feriado”. Incompreendida e discriminada pela família biológica, aos 11 anos ela deixa o povoado Carapitanga, em Brejo Grande, e parte em direção a Aracaju em uma marinete da Viação Santa Maria.
Cinco anos sem pôr a cara no sol
Sozinha na cidade grande ainda criança, acompanhada de uma prima mais velha e uma bolsa rosa a tiracolo, Jéssica foi mais um corpo trans negro empurrado diretamente para a prostituição. “Vim direto pra essas ruas de Ará, direto pra prostituição, conheci estas ruas desde muito nova. É o que acontece quando não há opção, quando a Educação e a Saúde fecham as portas pra você”.
Adolescendo em transição pelas madrugadas do centro, exposta a todo perigo, ela conta que o medo da retaliação a fez demorar para conhecer a cidade de dia. “A gente tinha uma curiosidade de conhecer Aracaju pelo dia. Demorei uns quatro ou cinco anos desde que cheguei a ver a Rua da Frente, só via pela noite. Era muita discriminação, a gente sofria muito. Só passei a sair mais quando um médico proctologista passou a atender a gente na clínica dele, por solidariedade”.
Nome morto e enterrado em Dores
Dos poucos momentos em que consegue driblar a prostituição como único trabalho possível, ela consolida seu nome real enquanto trabalhou como empregada doméstica em Nossa Senhora das Dores. Fugindo a quilômetros de um nome de registro que nunca lhe pertenceu, fã incondicional da atriz Elisabeth Taylor e do piloto Airton Sena, ela se rebatiza em solução tombadora: JÉSSICA DE TAYLOR DIBONA COM RAMON FIGUEROA SENA MOURA.
O tempo e o bom senso a fez encurtar o novo – e verdadeiro – nome que carrega no RG. Do original quilométrico, apenas o Taylor e o “dos Santos”, herdado da mãe e “amostrado” com orgulho. A cidade que lá no século XVI e XVII fora palco de enforcamento de tupinambás na invasão portuguesa, agora jaz o nome que já nascera morto. E que siga descansando na paz que merecer.
Um amor de 28 anos entre o Geruzinho e a rua Siriri
Jéssica e Adriano se conheceram em dois de fevereiro de 1995, em um jantar na pensão de amigas que ficava na rua Geruzinho. No miolo do quilombo urbano da capital, ele se oferece para levá-la no ponto de ônibus no caminho de volta. No meio do caminho ele sugere que ela passe a noite, ela topa. Ela, que morava no Lamarão a esta altura, só retorna no dia seguinte para pegar as trouxas e fazer o caminho de volta. Assim foi, assim segue.
Tomando os ares da masculinidade provedora que lhe é imposta pelo mundo inteiro, ele dá a letra tal qual o clássico de Odair José: “vou arranjar um emprego e tirar você deste lugar”. O emprego de fato veio: Adriano conseguiu um trabalho como segurança e por lá segue até hoje, ao que tudo indica se aposentar por lá. Porém, Jéssica centra questão e segue na lida. “Ele precisava entender que aquilo era meu trabalho, como ele de fato entendeu.”
Os olhos dela brilham para além do reflexo de suas lentes. “Ele é maravilhoso, me ajuda em tudo, me entende e me ama como eu sou. A família dele no começo estranhou, até discriminava, hoje todo mundo me adora. Somos muito felizes.”
Unidas, venceriam
Aracaju, 12 de julho de 1998. Naquele domingo a cidade, bem verdade um país inteiro, lidaria com a derrota frustrante da seleção brasileira de futebol masculino na Copa da França. Após a crise convulsiva de Ronaldinho, os gols de Zidanne e Petit, a promessa do penta escorria pelo ralo em definitivo. Contudo, uma fatia significativa das mulheres trans deram de ombros pra tanta tristeza e desceram em direção ao auditório do Cotinguiba Esporte Clube. A vida é dura, a vida é curta.
Reunidas em torno de figuras como Luciana Lins e a assistente social Eliana Chagas, as mulheres fundariam naquela noite a organização mais antiga de mulheres trans do estado de Sergipe,a Unidas.
Dentre as demandas, o acolhimento e ações de prevenção a IST/Aids, ações de capacitação, acolhimento e respeito ao nome social. “Tomamos a avenida Augusto Maynard, a gente fechou tudo. Foi maravilhoso. As associações do então “movimento GLS” não levavam as nossas questões a sério, não respeitavam nosso nome social, nos tratava pelo “nome morto” nas listas de assinatura, o que pra gente era “uó”. Daí a gente tomou a iniciativa de criar a nossa associação”, lembra.
Aos 25 anos de idade, Jéssica vê o surgimento da Unidas como o seu renascimento. “Minha vida mudou depois da Unidas. Lá eu tomei coragem, foi através dela que consegui meu nome social, que tive minha união estável reconhecida. Eu não sou um personagem, eu sou uma cidadã”. Única integrante da primeira diretoria até o presente momento, Jéssica é a atual presidente da Unidas.
O registro oficial da ONG só chegou no ano seguinte, em 1999. E é em consideração a esta data de registro que a Unidas comemorou os seus 24 anos no dia 19 de julho, na sala de Cinema do Centro Cultural de Aracaju, com participações de Kharolyne Prínscipal, Maluh Andrade, Pérola Negra e Marcleya Milannder.
Famílias em diáspora, terceira idade incerta
Além do marido, Jéssica mora com a mãe e com a avó centenária. Dá conta de todos os cuidados e comorbidades da terceira idade e estende isso com orgulho, uma fatia gorda de seu tempo livre é dedicada às senhoras sem qualquer resquício de mágoa ou rancor, dentre as leituras de poesia de Chico Xavier.
“Eu cuido de minha mãe e de minha avó com muito amor, faço de tudo pra que elas estejam com saúde e felizes. As pessoas precisam aprender a acolher seus filhos e filhas trans, porque elas podem contar só com eles na terceira idade. E nós sempre estaremos aqui”.
Quanto às LGBT´s que envelhecem sem acolhimento da família ou do poder público, uma aposta. “Você pode escrever o que eu estou falando na data de hoje: eu ainda vou fazer um centro de acolhimento para LGBT´s da terceira idade. Três meses atrás eu perdi uma amiga muito querida, que estava muito doente. Fui atrás e os parentes não me deixaram ter acesso a ela. Estava com pneumonia. Quando consegui assistência e internação pra ela, já era tarde demais. Isso não pode mais acontecer”.
A má educação
Aos cinquenta anos, ela está fazendo o curso para Educação de Jovens e Adultos (EJA) na Escola Severino Uchoa, em Aracaju. Esta é a terceira passagem de Jéssica pela educação pública, nas duas primeiras a transfobia institucional a impediu de seguir. Não desta vez. “Eu estudei no Gonçalo Rollemberg em 2012 e fui obrigada a sair. As pessoas me ameaçaram por conta do banheiro, a direção fazia pouco caso, não me sentia segura. Agora eu estou mais forte e consciente dos meus direitos”.
Após concluir o EJA, ela pretende seguir no curso de Serviço Social para “fazer o que já faço há muito tempo, que é cuidar das irmãs. Quero muito fazer Serviço Social, mas também quero fazer Direito”. Ao final da festa dos 24 anos de Unidas, ela deixou o recado: “Eu quebro meu salto, piso na escola e vou até onde eu quiser”.
Respeita a senhora
Aos cinquenta anos, ela já ultrapassou a assustadora média de vida da população trans, presente na faixa dos 35 anos de acordo com as estatísticas do movimento. Jéssica atua no GT de Direitos Humanos da mandata de Linda Brasil, trabalhando com atendimento e orientação a quem bate em sua porta. Desde 2021 que ela se afastou definitivamente da prostituição, sem qualquer resquício de demonização.
“Eu estou saindo da prostituição depois de muitos anos, e só retorno se achar que posso fazer isso com tranquilidade. A prostituição me deu coragem, me deu força e me ajudou a ser quem eu sou hoje. O que nós não queremos é que este seja o único caminho, como foi pra mim, e que as meninas que hoje estão na prostituição tenham dignidade pra trabalhar. Precisamos abrir todas as portas e ocupar todos os espaços, a Educação, a Saúde, a Política”.
A conversa se encerra por volta das 10 horas da manhã, em virtude de compromissos na Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV), a duas quadras da mandata. Acontece que um fiscal do Fórum decidiu desrespeitar sua identidade de gênero.
“Fui no Fórum ajudar a encaminhar uma demanda por moradia e o fiscal me chamou de “senhor”. Eu adverti, falei que ele deveria me respeitar, ele respondeu: “desculpe, senhor”. Fiquei indignada, minhas colegas também fecharam com ele, ele respondeu: “se o senhor está se sentindo ofendido, procure seus direitos”. Pois bem, vou no DAGV agora, ele vai ver que com a senhora aqui ele não vai se meter a besta”. Pois que assim seja. O nome dela é Jéssica, e quem quiser que duvide.