Hilário Torres, do Ilê Axé Egbé Aramefá, avalia em entrevista à Mangue que a “falta de tato e boa vontade” impedem avanços para povos de terreiro e diz esperar que Emília Corrêa “governe como política, não como líder religiosa”.

Há duas semanas, o Ministério Público Federal (MPF) exigiu que a Prefeitura de Aracaju incluísse as religiões de matriz africana nas comemorações dos 170 anos da capital sergipana. O ofício assinado pela procuradora federal Martha Figueiredo e pelo promotor Julival Rebouças, chefe da Coordenadoria de Igualdade Étnico-Racial do Ministério Público estadual, aportou no gabinete da prefeita Emília Corrêa (PL) em um dia simbólico para os povos de terreiro: 21 de janeiro.
É nesta data que se recorda a luta contra a intolerância religiosa. Mais do que isso: ela faz referência à morte da yalorixá baiana Gilda de Ogum, alvo de ataques de ódio no início dos anos 2000 que impactaram sua saúde. De lá pra cá pouca coisa mudou: as religiões de matriz africana continuam sendo alvos do racismo religioso que emerge nas redes sociais, igrejas neopentecostais e entre aqueles que formulam políticas públicas.
Segundo dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, o Brasil registrou mais de 3,8 mil denúncias de intolerância religiosa no ano passado, sendo a maioria relacionadas às religiões de matriz africana (candomblé e umbanda), um aumento de 80% em relação a 2023. Em Sergipe, foram 14 ocorrências (eram nove no período anterior).
Há muitos anos, as comunidades de terreiro em Aracaju lutam para terem suas vozes e reivindicações ouvidas pela prefeitura, sem sucesso. A participação nas festividades alusivas à emancipação política da capital sergipana era uma delas, daí o porquê de o MPF ter batido à porta da gestão municipal. Existe uma lei municipal que prevê a realização de um culto campal com a participação das religiões de matriz africana durante a “Semana Cidade Aracaju”, mas ela não foi cumprida sob a administração de Edvaldo Nogueira (PDT).
No ano passado, o MPF realizou uma série de reuniões para garantir a presença do grupo no aniversário da cidade. As tratativas resultaram na assinatura de um acordo para utilizar recursos de emendas parlamentares em atividades relacionadas ao Dia Mundial da África, em 25 de maio. Era uma forma de reparar os danos causados aos povos de terreiro por terem sido alijadas de professar suas crenças, em 17 de março, como as outras religiões, mesmo que sob a vigência de uma gestão dita progressista.
Procurada para comentar a notificação do MPF, a Prefeitura de Aracaju afirmou que a liberdade religiosa é um direito de todos e garantiu que todas as crenças terão espaço nas festividades relacionadas aos 170 anos da capital. Na última terça-feira (28), representantes do governo Emília Corrêa reuniram-se com integrantes do Conselho Municipal de Participação e Promoção da Igualdade Racial (Comppir) e lideranças das religiões de matriz africana para discutir o tema. O nome do multiartista Mestre Saci, do Quilombo Maloca, foi anunciado no encontro como uma das atrações confirmadas para o evento.
Para o babalorixá Hilário Torres, do Ilê Axé Egbé Aramefá, a sinalização de diálogo com os povos de terreiro para o aniversário da cidade é importante, mas não deve parar por aí. É preciso, na avaliação dele, garantir direitos básicos a essas comunidades, que passam despercebidas aos olhos do Estado, mas atuam como uma espécie de “quebra galho” ao governo por suprir sua ausência nas periferias.
Em entrevista à Mangue Jornalismo, o sacerdote afirmou ver “falta de tato e boa vontade” do campo progressista para lidar com as reivindicações das religiões de matriz africana e defendeu a realização de cursos de formação para agentes públicos responsáveis pela criação de políticas públicas para o segmento.
Além disso, disse considerar que o racismo religioso é uma trava ao efetivo exercício do candomblé, já que os povos de terreiro estão, primeiro, resistindo para manter viva sua religião para somente depois viver sua filosofia. “A negação dos nossos direitos ocorre porque somos negros em uma religião de negros. É difícil para a gente conseguir trabalhar a religião, viver nossa filosofia, diante desse racismo religioso”, declarou.

Torres ainda lamentou o fato de o MPF ter de agir para garantir o cumprimento da lei municipal sobre a participação das religiões de matriz africana no aniversário de Aracaju. Ele desejou que a prefeita Emília Corrêa, cuja gestão é majoritariamente composta por fundamentalistas evangélicos, governe sem levar em consideração a sua própria fé. “Nós, candomblecistas, também pagamos impostos, vivemos nessa cidade, votamos e, portanto, temos direito à cidadania. Espero que essa igualdade seja observada pelo olhar da laicidade. É importante que o governante seja um político e não um líder religioso”.
Torres dedica-se à religião desde seus 15 anos de idade. Iniciado para Oxóssi, orixá associado à caça, fartura e sustento, herdou o culto às tradições africanas dos avós, que em meados do século XX se instalaram no sopé de um morro na região hoje conhecida como Olaria, na zona oeste de Aracaju.
A chegada do casal – um operário imerso na rotina de uma fábrica de cimento e uma rezadeira dedicada ao lar – contribuiu para o desenvolvimento do bairro, ao mesmo tempo em que fez brotar as bases do que viria a ser conhecido como Egbé Aramefá.
Veja os principais trechos da entrevista:
Mangue Jornalismo – Apesar da liberdade ao culto ser direito de todos, o Brasil ainda é um país violento e intolerante nesse sentido, principalmente com as religiões de matriz africana. Por que é importante discutir o racismo religioso como parte da estrutura racista do País?
Hilário Torres – O racismo no Brasil é uma questão estrutural e histórica, antes de qualquer coisa. E os terreiros de candomblé são quilombos urbanos, pontos de resistência e de sobrevivência do povo negro e das várias minorias que acabamos acolhendo nessa caminhada. Quando utilizamos o conceito de “racismo religioso” estamos justamente a refutar essa ideia de que somos alvos apenas de intolerância religiosa. Não, vai além. Somos vítimas de violência porque professamos a fé, a religião de uma raça, a raça negra. Do ponto de vista histórico, acabou se tendo inúmeros estigmas sobre a religião por causa da raça e do processo de colonização pela qual passou essa raça. A negação dos nossos direitos ocorre porque, essencialmente, somos negros em uma religião de negros. É difícil para a gente conseguir trabalhar a religião, viver nossa filosofia, diante desse racismo religioso. Difícil, porque há um certo distanciamento das pessoas por conta dos estigmas que foram impostos sobre nós ao longo do tempo, o que dificulta também o acesso a insumos governamentais, o acesso a leis que nos dão direitos básicos. No decorrer da nossa trajetória, na história do candomblé, tivemos a necessidade de nos submeter ao catolicismo como ferramenta de sobrevivência. Mas, ainda nos dias de hoje, os terreiros que festejam as tradições católicas ainda são alvos de intolerância.
Ou seja, o problema não é a religiosidade cultuada, mas quem está cultuando. As minorias que vêm aqui buscar suas identidades já passam por um processo de vida complexo em razão do racismo e outras mazelas vivenciadas fora do terreiro. Então, a nossa religião, que tem uma filosofia lindíssima de viver, acaba se tornando um quebra-galho para o governo. É difícil viver a nossa filosofia como deveríamos porque estamos fazendo um trabalho de, primeiro, reconhecer as humanidades do outro, para somente depois vivermos a nossa filosofia. O trabalho de resistir como religião e como quilombo urbano é outra dificuldade, principalmente porque ainda temos de resistir às pedradas nos nossos telhados. A comunidade onde estamos é muito acolhedora, mas ainda existem pessoas, em sua maioria evangélicos, que bagunçam nossos ritos, jogam pedras, nos atacam simplesmente por sermos candomblecistas.
MJ – O senhor já foi alvo de ataques desse tipo?
HT – Sim. Já tivemos casos aqui quando alguém invadiu nosso espaço e tentou apagar uma fogueira que fazia parte de um dos nossos ritos. A gente ainda tem a necessidade de resistir a essas múltiplas violências para manter viva a religião. Depois disso é que poderemos, de fato, fazer o papel de uma religião, que é o de religar. Religando aos nossos ancestrais, com a natureza, para vivermos a nossa filosofia. É uma luta para ser reconhecido como povo, como cidadãos que pagam impostos como todos os outros. Temos um outro caso que tramita em segredo de Justiça, então não consigo dar detalhes dessa questão. Mas já tivemos outros casos, sempre partindo de evangélicos. Já nos trouxeram livros que demonizam a nossa religião. Me lembro que certa vez chegaram com “Orixás, Caboclos e Guias: deuses ou demônios?”, escrito pelo Edir Macedo, que trata como demônios as nossas entidades, os nossos ancestrais, de forma estúpida e grotesca.
Outras vezes acionaram a Polícia para interromper nossos cultos com base na chamada Lei do Silêncio, embora não haja o mesmo incômodo no momento em que carros de som estão na rua fazendo muito mais barulho. E esses agressores ainda confessaram a autoria das denúncias. Outros evangélicos já se referiram aos nossos cultos como “isso aí” e disseram que nós deveríamos fazê-los no meio do mato, fora das pessoas civilizadas. O que nós somos, então? O caso mais extremo aconteceu em 2023, quando um evangélico invadiu nosso espaço e tentou agredir uma entidade. Já tivemos momentos de festividade destinados à comunidade em que evangélicos tiravam as crianças por considerar esses eventos como algo “do demônio”. O que consigo notar, ao longo desses anos, é que as pessoas de outras religiões são mais abertas à tolerância e ao respeito. E isso falta à maioria dos neopentecostais, que torna sua ideologia invasiva, tenta torná-la uma verdade universal, beira o irracional.
MJ – No ano passado, o Ministério dos Direitos Humanos registrou 14 denúncias de intolerância religiosa em Sergipe, cinco a mais que o contabilizado em 2023. O senhor considera haver uma sensação de impunidade para quem comete esse tipo de crime?
HT – Fico feliz que mais pessoas tenham denunciado as violências de que foram vítimas. Isso é muito importante porque não tínhamos essa coragem há alguns anos, muito embora ainda acredite que muitos terreiros de candomblé deixam de denunciar esses casos por falta de instrução. Antes era muito difícil fazer a denúncia e principalmente ter seus relatos classificados como intolerância religiosa.
Ao mesmo tempo, é importante pontuar que os processos que envolvem essas violações aos povos de terreiro são marcados por lentidão quando estão na Justiça, porque precisam comprovar uma série de coisas para que o crime seja, de fato, classificado como intolerância religiosa. É preciso provar coisas que muitas vezes não temos como provar, seria necessário estarmos gravando tudo a todo momento, 24 horas por dia, e a intolerância religiosa contra o nosso povo acontece a todo instante.
Sair de branco, com um fio de contas, é algo que não é comum de se ver justamente porque somos apedrejados na rua, agredidos por conta disso. Diferentemente dos evangélicos, dos católicos, que vão às ruas com seus apetrechos religiosos. Por isso, temos essa dificuldade de caracterizar junto à Justiça o fato como intolerância, muito embora tenhamos aqui em Sergipe o trabalho muito importante e acolhedor realizado pela delegada Meire Mansuet e sua equipe na DAGV [Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis]. A política que tem sido feita contribui muito para o aumento de denúncias. Não acredito que a intolerância tenha crescido, mas que as pessoas estão mais corajosas a denunciar as violações.

MJ – A criação de efemérides ainda é a forma mais comum de o poder público lembrar de determinados grupos. É o caso, por exemplo, do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, comemorado em 21 de janeiro. Isso é suficiente?
HT – Vejo as datas comemorativas como uma espécie de reparo às violências que o Estado promoveu contra o nosso povo e também como forma de dar visibilidade à nossa existência. Mas não é suficiente, sem sombra de dúvidas. É importante existir um investimento em políticas públicas para os povos de terreiro, reconhecer as casas de candomblé como quilombos urbanos [e] entender que somos pontos de auxílio governamental, porque muitas vezes fazemos o trabalho que o poder público deveria estar fazendo nas periferias. As pessoas vão aos terreiros não apenas para buscar ajuda espiritual, mas também para suprir lacunas que foram deixadas pela falta de assistência dos governos. Elas buscam moradia, alimentação, auxílio psicológico, inclusão. [Nos buscam] para compreender o que acontece com elas e porque acontecem. É preciso haver essa compreensão de que nós atuamos como núcleos de auxílio à sociedade e pensar formas de apoiar, incentivar esses espaços a continuar com esse trabalho já desempenhado.
Hoje, faltam políticas direcionadas para as casas de candomblé, conhecimento sobre o que desenvolvemos diariamente junto a nossas comunidades. Existe ao menos uma casa de candomblé em cada bairro dessa cidade. Se cada uma delas receber insumos suficientes para cuidar da sua comunidade, algo que já fazemos, aos trancos e barrancos há muito tempo, vamos conseguir ampliar essas redes de apoio, solidariedade, afeto e acolhimento. Infelizmente, as datas comemorativas não têm essa abrangência.
MJ – Como o senhor avalia a iniciativa do MPF e do MP para exigir que a prefeitura de Aracaju inclua as comunidades de terreiro nas comemorações dos 170 anos da capital?
HT – É mais um passo na importante luta, iniciada no ano passado, para que a nossa voz seja ouvida. Estive nas diversas reuniões promovidas pelo MPF em parceria com os coletivos de terreiro, em 2024, para termos o direito de participar das celebrações do aniversário de Aracaju, algo previsto em lei, só que ainda assim não era cumprido. Veja, somos a única religião que precisou lutar para incluir na legislação municipal o nosso direito à igualdade de condições em relação às demais religiões. E ainda assim ficamos de fora naquele ano. É triste que isso aconteça, porque mostra um descompromisso com as nossas causas, um desrespeito muito grande, já que esse espaço também deve ser nosso. Avalio a iniciativa como muito válida, pois o Ministério Público está atuando para assegurar nosso acesso como cidadãos. Afinal, também fazemos parte dessa cidade, respiramos seu ar e contribuímos para que ela se tornasse o que é hoje.

MJ – Nos últimos anos, a prefeitura descumpriu a lei municipal que prevê a inclusão dos povos de terreiro nas festividades. Por que essa resistência, tendo em vista que estávamos sob a gestão de Edvaldo Nogueira, composto por figuras progressistas?
HT – Falta tato [para lidar com as nossas questões]. Uma das sugestões mencionadas nessas reuniões que participei junto ao Ministério Público foi justamente a realização de cursos de formação para gestores, com o objetivo de aprimorar esse olhar para as comunidades de terreiro. Essa falta de tato existe justamente por conta do racismo histórico que, infelizmente, permanece entranhado nas instituições. Isso acaba impactando no entendimento das nossas demandas, da nossa religiosidade. Defendo, inclusive, que isso esteja previsto em lei, para que todas as gestões tenham a oportunidade de conhecer melhor a nossa fé, já que esses cursos seriam ministrados por líderes religiosos do nosso segmento. Também considero haver falta de boa vontade, algo que deriva dessa ausência de ferramentas para lidar com esse público, da falta de um olhar mais apurado para lidar com as nossas questões.
MJ – Aracaju será governada pelos próximos quatro anos por uma gestão composta majoritariamente por evangélicos fundamentalistas. O que esperar da relação entre a gestão Emília Corrêa e os povos de terreiro?
HT – Espero que a gestão respeite, acima de tudo, a laicidade do Estado. Que possa governar para todos de forma igualitária e respeitosa, observando que nós somos, antes de qualquer coisa, humanos, iguais e carecemos das mesmas políticas públicas que seriam formuladas para outros segmentos religiosos, por exemplo. Nós, candomblecistas, também pagamos impostos, vivemos nessa cidade, votamos e, portanto, temos direito à cidadania. Espero que essa igualdade seja observada pelo olhar da laicidade. É importante que o governante seja um político e não um líder religioso. A religião professada por qualquer um daqueles que integram este governo não deve ser ponto de partida para a criação de nenhuma política pública. A expectativa é de que não tenhamos retrocesso ao abrirmos caminho para que Aracaju seja governado pela religião. E que a gestão também seja inteligente, porque as comunidades de terreiro contribuem sobremaneira para garantir condições mínimas de sobrevivência àqueles esquecidos pelo Estado. Se houver essa atenção para as casas de candomblé, a gestão terá um bom desempenho e todo o povo se beneficiará.
MJ – Um estudo da UFF (Universidade Federal Fluminense) apontou que o número de candidaturas afrorreligiosas aumentou nas eleições municipais de 2024 (eram 63 em 2020 ante 284 no ano passado). Qual a importância de os candomblecistas também ocuparem esses espaços?
HT – Tudo está dentro da política da mesma forma que tudo também pode ser observado dentro do ponto de vista religioso. Porém, o ponto de vista religioso vai estar ligado à ideologia de cada religião, e isso faz com que tudo seja visto de forma individual por cada segmento. Já a observação pela política traz, ao menos em tese, uma noção de igualdade para todos. Então, ela deve ser respeitada. Acredito que um governante, sob a ordem democrática, faz suas ações pensando no coletivo. E é neste ponto que religião e política não se misturam. É importante, sim, que tenhamos mais candomblecistas nesses espaços para justamente conseguir mudar uma realidade preocupante. Nós somos o principal alvo do desgoverno, do racismo institucional. É preciso, portanto, levantar as nossas bandeiras, bagunçar o que está posto para reconstruir a realidade de uma forma menos violenta para o nosso povo.
*Com supervisão de Cristian Góes, editor-chefe