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Nascida em 13 de maio: vida e persistência de Oyá Matamba em Aracaju. “Eu sou danada, eu sou de Oyá… minha herança é meu candomblé”

HENRIQUE MAYNART, da Mangue Jornalismo.

“E o que é que vocês querem comigo?” perguntou à comitiva da Mangue Jornalismo no quarto onde é feito o jogo de búzios enquanto subia a rampa em passo curto. Paramentada para receber quem a procura na lida do terreiro, Oyá Matamba não poupa cerimonia. “Não me disseram que era entrevista não. Se eu contar minha vida toda você chora”. Desafio aceito.

Marizete Silva Lessa nasceu em 13 de maio de 1930, exatos 42 anos após a abolição formal da escravatura no Brasil. Parida em Laranjeiras, ela copiou o curso do Rio Cotinguiba e desaguou na capital sergipana três dias após abrir os pulmões para o mundo. “Só fiz nascer lá, minha vida foi toda aqui mesmo. E daqui não quero sair.”.

Após a morte da mãe biológica, ela e os irmãos foram criados por sua tia Erundina Nobre  Santos. Nobre tal qual o sobrenome civil, ela é Nanã Manadeuí, das maiores sacerdotisas do candomblé sergipano e fundadora do Abassá São Jorge. “Feiticeira boa da gota era minha mãe”.

Marizete fora iniciada em 16 de agosto de 1940, Oyá Matamba a sua “dijina”. Das imagens e homenagens expostas no quarto de jogo, o rosto forte e os olhos cerrados são uma constante no decorrer das décadas. A fala forte fatiada em frase curta deu o tom em 57 minutos e 25 segundos de idas e vindas entre nomes, causos e datas.

O bode no palácio

Acompanhando as andanças de Manadeuí desde miúda, ela testemunhou as perseguições do “Estado Novo” contra o povo de axé no território sergipano. “Era cavalaria na porta dos terreiros. O povo era obrigado a ir andando pra delegacia com os barros e as pedras na cabeça. Não podia tocar, a gente fazia as coisas batendo palma e baixinho. A gente sofria demais.”

Das histórias em curso em um Estado que flertava em doses gordas com as sementes do fascismo, ela narra as consequências de um “trote” feito por estudantes em frente ao Palácio Olímpio Campos.

 “Minha mãe foi muito perseguida. Teve um negócio que colocaram um bode na porta do Palácio, foi no tempo do (Augusto) Maynart Gomes. Botaram um bode de gravata e disseram que foi macumba pra matar o governador. Prenderam um monte de pai e mãe de santo, os que eram da Bahia mandaram de volta, mas não prenderam minha mãe. O nome do delegado era Simião. Minha mãe correu pro Calumbi, pra lá de Socorro, foram lá três vezes e não acharam.”

A delegada do bairro América

A rotina de perseguições fez com que mãe Nanã trilhasse em zigue-zague pela periferia de Aracaju. A rua de Goiás, a Vitória Torta, o alto da Boa Vista, o alto do Siqueira Campos, todo o caminho para desviar da “régua moral” medida por um Estado racista e violento. Manadeuí, com Marizete a tiracolo desde sempre, chega na rua do Equador, 70, em dezembro de 1953.

“Estamos aqui vai fazer 70 anos em dezembro. Aqui todo mundo gosta da gente. Os capuchinhos são meus amigos de longa data. Os pastores falam comigo com respeito. Todo lugar que eu vou é “mãe Dete” pra cá, “Mãe Dete” pra lá. Aqui ninguém faz confusão na minha porta. Eu posso dizer que eu sou a delegada, que aqui todo mundo pede pra eu acudir (risos)”

Da rua do Equador, hoje rua Mae Nanã Manadeuí, foi possível trilhar as linhas para dias menos conturbados para sua comunidade. O bairro cortado por ruas com nomes de países da América acolheria e brotaria um útero de resistência e cura na rota da diáspora.

O que pensa no Norte, cai no Sul

Seguindo a trilha de muitas mães e pais de santo em direção à terra prometida do Sudeste, mãe Dete migra para o Rio de Janeiro e abre casa por lá sem abandonar Nanã em Aracaju. “Era um mês aqui e outro lá. Fui pro Rio porque queria sim, mas não podia deixar minha mãe sozinha. Ela quem me criou, não ia fazer isso com ela. Já conhecia as paradas de ônibus de cabeça (risos)”.

Assim como Joãozinho da Gomeia e José de Obakosso, Oyá Matamba passou cerca de duas décadas no Rio. Por lá deixou filhos de santo e o atendimento a uma série de artistas, onze em sua contagem. “Milton Gonçalves era meu filho de santo, de Obaluaê com Oxum. Eu dei bori em Cláudia Raia, fiz trabalho com Nuno Leal Maia, quando eles nem eram famosos e tudo mais. Nuno deitava no meu sofá, comia muito do meu feijão, Claudia Raia não tinha nem o dinheiro da passagem. Hoje tão tudo aí famoso”.

A herdeira de Nanã

Com o falecimento de Nanã Manadeuí, em 1981, Oyá Matamba recebe o posto à frente do Abassá São Jorge e por lá permanece há quatro décadas. Aos 93 anos incompletos, ela toca as funções do terreiro na ligeireza das mulheres de Oyá, todos os fundamentos e dados e datas seguem guardados na cabeça grisalha guardada em torso grená.

“Eu dou um branco numa cantiga, numa reza, aí passo na frente do quarto de Exú e me alembro logo. Eu sou danada, eu sou de Oyá, comigo só Deus. Aqui quem faz tudo sou eu. Quem faz filho de santo, quem faz reza, tudo aqui sou eu”.

Marizete coleciona homenagens do Legislativo, Executivo e setores da sociedade civil. Recebe gestores e parlamentares e conversa de igual para igual, além das consultas e trabalhos que a discrição impede de socializar. Com quatro filhos, 18 netos, 12 bisnetos e uma tataraneta, Oyá Matamba não perde de vista a prole biológica e espiritual. Dos filhos e netos e bisnetos e tataranetos de santo, impossível chegar a um número.

Acordo selado: no aniversário de ano ela passa o dia com a família biológica, no aniversário de santo ela passa com a família espiritual no barracão. Do sábado que se aproxima, ela pretende curtir a prole na chácara da família, “mas passo antes pra pegar minha cestinha de café da manhã que eu não sou besta (risos)”.

Da família biológica apenas a filha e a neta são de candomblé. E está tudo certo. Ela aproveita pra cutucar o filho evangélico nas gozações de família. “Eu viro pra ele e falo:  vou chegar pro seu pastor e vou dizer que você é macumbeiro, que você toca tambor e pega caboco. Aí eu quero ver (risos).”

O futuro é ancestral

“Minha herança é meu candomblé”. Logo após a conversa no quarto de búzios, Oyá Matamba nos convida para um passeio entre o barracão e os quartos de santo. O Museu Mãe Nanã Manadeuí infelizmente não estava de portas abertas, vamos aguardar a abertura da visitação. “É filho que não se acaba mais, nem sei onde botar tanta coisa”.

Como a sacerdotisa com mais idade em Aracaju, ela projeta seu legado na ruptura do tempo. “Eu sou a mais velha daqui. Morreram tudo, não mandei ninguém morrer (risos). Eu quero chegar aos 100 anos, mas não quero ficar broca não. Coisa ruim esse negócio de ficar velho e broco.”

Matamba se despede após as fotos, a tietagem regimental e a tomada de benção para atender o pessoal que já a aguardava no cair da tarde de terça. Correria e função pra dar conta do toque para Oxalá logo mais à noite.

E sobre qualquer menção à assinatura da Lei Áurea no dia de registro de seu nascimento, nem pista ou cheiro. Quem carrega noventa e três anos de idade e oitenta e três de iniciação nas costas, cá pra nós, não ia ter cabeça nem tempo a perder com princesa Isabel ou coisa parecida.

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4 respostas

  1. Coisa mas linda de se ler,ela é a própria história do candomblé sergipano,ela é mãe,amiga, irmã,ela é a menina dos olhos de oya
    Felicidades e muita saúde minha mãe é o que lhe desejo.

  2. E assim a história de fé verdadeira é contada,parabéns por esse registro maravilhoso que mostra a beleza de ser do axé com fé perseverança e amor no coração,a perseguição trouxe a força necessária para perpetuar essa riqueza de conhecimento que se viu hj !! Parabéns mãe Dete muitos anos de sabedoria e saúde !! Axé…

  3. Gosto da História contada pelo povo que fez a História. Nos conte mais Oyá Matamba.

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