RAFA ARAGÃO, especial para Mangue Jornalismo
(@rafaaragaodj)
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.
Com o tema Cidade Viva, o Festival de Artes de São Cristóvão (Fasc) transformou, durante três dias, a cidade-mãe de Sergipe em um verdadeiro palco para a música, teatro, cinema, literatura, folclore, artes visuais, gastronomia e inúmeras outras manifestações culturais.
As ruas e monumentos históricos de São Cristóvão receberam milhares de sergipanos e turistas de todo o Brasil, que vivenciaram essa experiência de forma gratuita e inclusiva.
Um dos aspectos mais potentes do Fasc é dar oportunidade de conhecer novos artistas. E principalmente artistas periféricos, que não tem espaço nos grandes circuitos culturais. Em São Cristóvão eles encontram não só um palco, mas também uma plateia diversa e atenta. E quem quer aproveitar cada espaço, tem que se programar bem.
É difícil escolher, até porque cada escolha uma renúncia já diria uma antiga canção. Ir ao Samba da Bica ou assistir uma mesa no Salão Literário? Acompanhar filmes no Cine Trianon ou um cortejo folclórico?
Até as passagens de som das bandas que irão se apresentar à noite se tornam parte da programação. É quase um ‘ensaio aberto’, onde o público pode sentir um gostinho do que vem logo mais. E nem só de programação oficial vive o festival, diversas casas de cultura, coletivos de artistas, produtores, se unem e fazem seu “Fasc paralelo”, o que é ótimo.
A programação musical, uma das grandes vitrines do festival, teve sua curadoria bastante criticada nas redes sociais, antes mesmo de fechar a grade geral. O público não está muito interessado se existe apoio financeiro e político para realização do evento, ele quer seu artista favorito na programação.
Visivelmente a programação musical deste ano estava mais enxuta do que a dos anos anteriores. Apesar da manutenção do Samba da Bica, um dos grandes acertos da edição de 2023, o palco Capuchinhos ficou de fora. Uma pena, pois o local ficou marcado por grandes shows no ano anterior.
O prefeito de São Cristóvão, Marcos Santana, em seu último ano de gestão, fez um balanço positivo sobre os oito anos de retomada do Fasc, após um hiato de 12 anos. “Estou bastante satisfeito com o que conseguimos fazer. Nestes oito anos, realizamos seis Fasc; apenas dois não aconteceram devido à pandemia de Covid-19. A cada ano consolidamos o festival como o maior evento cultural do Nordeste. Não há outro com essa concepção, e talvez nem no Brasil. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, nos parabenizou pela resistência”, afirmou o prefeito.
A palavra “resistência” foi um mantra repetido por organizadores, artistas e público. Não dá para dizer que isso é uma novidade. O Fasc nasceu em 1972, em plena ditadura civil-militar, e desde então se tornou um espaço para defesa da arte e da cultura sem preconceitos. “O Fasc é resistência. Nós resistimos às dificuldades, aos conservadores que não gostam do festival, porque são três dias de muita liberdade e pluralidade”, completou Marcos Santana.
Mesmo com o valor imaterial inestimável que o Fasc representa para Sergipe, o patrocínio do Governo do Estado e do Banese foi oficializado apenas 23 dias antes do evento. Vale destacar que o Banese não patrocinava o festival havia sete anos.
Destaques do primeiro dia
Um dos shows mais aguardados da sexta-feira (29) era o encontro de Timbalada e Afrocidade no Palco João Bebe Água. Foi apenas a segunda vez que as bandas dividiram o palco, mas tudo indica que não vai parar por aí. “Em breve, esse trabalho será materializado em DVD ‘ao vivo’ para os fãs”, revelou Denny Denan, vocalista da Timbalada. O público foi contagiado pela mistura percussiva e dançante que uniu hits como Mimar Você e Beija-Flor aos sucessos de Afrocidade.
No Palco Frei Santa Cecília, a sergipana Oduma abriu os trabalhos com um espetáculo visual e musical baseado no EP Ifé. O show começou cedo e o público ia pouco a pouco enchendo a praça. No final todos estavam envolvidos por Oduma e banda. Em seguida, Mãeana cativou os presentes com o projeto “Mãeana Canta JG”, que mistura João Gomes e João Gilberto. Se nas redes sociais o projeto divide opiniões, em São Cristóvão ela contou com apoio massivo dos presentes. Samba do Arnesto e Heitor Mendonça também agitaram o público por lá. O samba e o pagode também tiveram destaque, com apresentação do grupo Revelação. Os 30 anos de carreira foram revistados em um show cheio de energia. As gêmeas Tasha e Tracie trouxeram o hip-hop para o palco João Bebe Água mostrando a pluralidade característica do festival. Uma pena que a apresentação dela durou por volta de 40 minutos. O público estava animado, sabia cantar todas elas bastante a vontade no palco. Ninguém soube explicar oficialmente o que ocorreu para a apresentação ter sido tão breve.
Sábado de encontros e energia
O sábado (30) trouxe o dia mais movimentado do festival. Fez jus ao tema do festival deste ano. As ruas, praças e casarões conectam o público ao passado, mas também oferecem um espaço para repensar o presente. Quem percorreu as ruas lotadas de São Cristóvão em busca de espetáculos de todos os gêneros e manifestações artísticas, encontrou muito mais que um evento.
“Não tem nada igual ao Fasc, e eu já fui em diversos festivais pelo Brasil. É muito bom, porque é tudo muito perto, em poucos minutos você está num show, passa por grupo folclórico, vai no Salão Literário. É sensacional”, afirmou Edu Gomes, turista pernambucano que vem ao festival desde de 2019.
A big band Serigy All-Stars abriu a noite reunindo talentos locais com Alex Sant’anna, Anne Carol, Julico, Sandyalê e A Banda dos Corações Partidos. Um momento não só especial como rico de talento e musicalidade. O entrosamento é perfeito que até parece que eles fazem esse show sempre.
É muito bom ver o crescimento do público em torno dos artistas locais. E de ver esses mesmos artistas entregando o máximo, dando tudo de si, na música, no figurino, nas projeções. A prata da casa sabe o valor da palavra espectáculo e a importância de estar em um festival com tanta história. E isso não se resume à apresentação da Serigy All-Stars.
A banda Baiana System, uma das atrações mais aguardadas, protagonizou um momento emocionante ao convidar Mestre Saci Quilombola para o palco. Natural de Laranjeiras, ele é um dos grandes ícones da cultura popular sergipana. O encontro foi celebrado como um dos momentos mais marcantes do festival.
A reunião foi impulsionada pelo público nas redes sociais, para Russo Passapusso, frontman do grupo baiano, isso reforça a conexão da banda com a cidade. “Se o público que ouve as músicas, fala ‘olha vocês vão em São Cristóvão e vocês precisam conhecer o Mestre Saci’ e tudo se faz de uma forma muito natural. O mestre sobe no palco, saí do terreno, sabe o que vai cantar, canta a toada, faz aquilo ser poderoso e a gente tá vivendo de forma tão tranquila. Pra mim é genial essa fusão”, disse Russo. Quando os primeiros acordes de Saci começaram parecia um transe coletivo. A cada música e cada nova roda formada, o público apenas seguia o ritmo da guitarra de Roberto Barreto e as orquestrações do Maestro Ubiratan Marques. É realmente uma catarse difícil de explicar.
No Palco Santa Cecília, nomes como Nine Senses, Filipe Catto, Lamparina, Centaura e Descidão dos Quilombolas garantiram a energia da noite. Já Marina Lima trouxe um show nostálgico, afirmando que não se apresentava em Sergipe havia quase 40 anos. Se engana quem acha que o público para vê-la se formava apenas de geração X e Millennials, a geração Z não só estava lá como sabia cantar todas as músicas. No telão eram exibidos vídeos que faziam uma retrospectiva da sua carreira e que interagiram com as músicas do show. Teve dança, música da Billie Eilish, bronca pedindo mais volume no retorno, convidados no palco, bis. Podemos dizer que foi um show completo.
A The Baggios fechou a noite com a força de sempre, o grupo mostrou porque é a única banda a se apresentar em todas as edições do Fasc desde seu retorno em 2017. E quando eles jogam em casa, eles jogam fácil. Dominam o público e o palco.
Encerramento memorável
No último dia (1º de dezembro), o público se dividiu entre despedidas e celebrações. A banda paulista Francisco El Hombre fez a abertura do Palco Frei Santa Cecília. O show marca a turnê de despedida do grupo.
Em seguida, Nêga Doce, formado pelas artistas sergipanas Anne Carol, Lari Lima e Morgana, fez uma apresentação incendiária com uma mistura contagiante de ritmos que tem pagodão como base. Quem queria chegar perto do palco precisou atravessar uma multidão que não arredou o pé até o fim da apresentação. Os pernambucanos do Mombojó trouxeram para o público sucessos autorais e músicas de seu último trabalho, “Carne de Caju”, um tributo ao conterrâneo Alceu Valença.
Se algum desavisado foi ao show do Los Sebosos Postizos esperando uma atração internacional ou um grupo de música latina tomou um susto. O grupo é formado por músicos da icônica Nação Zumbi, um dos pilares do movimento Manguebeat. Nesse projeto paralelo eles visitam a obra de Jorge Ben com releituras que passam longe da ideia de cover. E para tornar a noite ainda mais especial o show foi homenageando os 50 anos do álbum “A Tábua de Esmeralda” de Jorge Ben.
No palco João Bebe Água, a noite começou com o forró do sanfoneiro Joba Alves, mais um sancristovense na programação musical. Ter artistas da casa nos palcos é importante para o fortalecimento da cultura local e impulsionar novos e antigos valores da cidade.
O cantor Arnaldo Antunes veio com seus sucessos solo e também do período em que era integrante dos Titãs. Mais um que uniu gerações, para comprovar que boa música é atemporal.
O reggae deu o tom em seguida. Já era possível ver entre o público bandeiras da Jamaica e pessoas com camisetas e roupas com as cores verde, amarelo e vermelho. Esse é um outro ponto interessante do festival, como a mudança de público ocorria em poucos minutos. O experiente cantor jamaicano Clinton Fearon foi quem comandou a festa dos regueiros presentes. Com muita simpatia, arriscou algumas palavras em português para interagir com o público. E o público devolveu a gentileza cantando junto diversos clássicos como “Rich Man Poor Man” e “Chatty Chatty Mouth”.
Já era segunda-feira quando o rapper Don L, subiu ao palco da praça São Francisco. Quem apostou que o horário afastaria os fãs do “último bom malandro” perdeu feio. A praça voltou a ficar cheia, dessa vez com camisetas pretas e brancas com estampas que remetiam aos álbuns lançados pelo artista. Com uma performance vibrante, destacou os desafios da indústria musical brasileira enquanto emocionava sua legião de fãs.
“A gente demora mais chega. A gente é uma construção real. Quantos artistas tem um super sucesso num momento e depois de 15 anos não se vê mais? A indústria cultural no Brasil tem esse lado extrativista. Ganhar o máximo, não importa quanto dure, porque não são os artistas que levam a maior parte desse dinheiro”, disse o rapper.
O Fasc 2024 cumpriu, mais uma vez, seu papel como uma plataforma de resistência e celebração cultural. Ficam os questionamentos de como serão os próximos quatro anos de Fasc da nova gestão que está para assumir no dia 1º de janeiro de 2025. Como manter um festival de acesso à cultura gratuito e inclusivo com as incertezas de apoio político e financeiro? Essa edição mostrou que a arte é uma poderosa ferramenta de transformação, ressignificando espaços e realidades. Que o Fasc siga inovando, inspirando e resistindo. Já estamos ansiosos para a 40ª edição, que promete ser ainda maior e mais diversa!
Rafa Aragão é jornalista, DJ, pesquisador sonoro e produtor cultural. É host do podcast Sem Fastio, onde entrevista artistas da música sergipana e edita a newsletter Palas e Falas.