OSNAR GOMES DOS SANTOS, especial para Mangue Jornalismo
(osnar.gomes@hotmail.com)

Este é o 5º artigo do Projeto Mangue Jornalismo História e que trata da ditadura militar e a Diocese de Propriá, no Baixo São Francisco, em Sergipe.
Em 1976, o Projeto Betume, coordenado pela Companhia de Desenvolvimento do Vale São Francisco (Codevasf), visou modernizar a agricultura na região do baixo São Francisco. Porém, a modernização foi conduzida de forma autoritária, produzindo um violento processo de desapropriação da fazenda na qual o projeto seria iniciado.
Tratava-se da Fazenda Betume, localizada no município de Neópolis, com povoações também no município de Ilha das Flores. A propriedade era, portanto, um latifúndio que cobria uma imensa extensão de terras, nas quais viviam mais de 1.400 meeiros – alguns deles trabalhavam na fazenda há mais de 50 anos. Contando com os dependentes destes trabalhadores, o número de pessoas na fazenda poderia dobrar.[1]
O governo federal comprou a fazenda, tornando-a de utilidade pública. No entanto, no ato da venda, o proprietário das terras relacionou uma quantidade bem menor de meeiros que viviam na área e que tinham direito de ser indenizados pelos mais variados motivos, como o de ter que abandonar o local e deixar para trás as suas casas e plantações.[2]
Para piorar a situação, as obras iniciaram antes mesmo que fossem criadas agrovilas para abrigar os desalojados. Diante disso, a modernização deixou os seus escombros pelo caminho: violência, migração e miséria.
Alguns meeiros foram varridos para um lugar chamado “Alto da Rolinha”. Disseram se sentir “cercados”, “sitiados” e “engaiolados”. Passaram a conviver com o clima de tensão e a assistir ao seu antigo estilo de vida ameaçado por forças até então desconhecidas.
O caso do Projeto Betume ilustrou precisamente o choque de interesses entre trabalhadores rurais – chamados de meeiros – e os megaprojetos de desenvolvimento da ditadura.
As ações desastrosas da Codevasf na região fizeram a Diocese de Propriá consolidar a sua oposição diante da modernização conservadora e autoritária da ditadura militar. Uma oposição que foi além das palavras e discursos.
Betume foi o motivo condutor para a consolidação de uma nova prática diocesana no tecido político e social. As relações de poder em Sergipe foram profundamente alteradas após os acontecimentos na fazenda.
A corda-bamba que ainda mantinha a diocese numa posição confortável se arrebentou. A instituição caiu do lado dos pobres. Inimigos poderosos, mancomunados com a polícia política, a Justiça e o Estado, entraram em conflito com a diocese.
Em razão da importância do acontecimento, dividiremos este capítulo em duas partes. Esta será a primeira parte do famoso caso Betume.
O início da ilusão: a diocese e o Projeto Betume
As notícias sobre a modernização que chegaram aos antigos moradores da Fazenda Betume poderiam, inicialmente, gerar certo otimismo. Afinal, tratava-se da modernização da agricultura. Esperava-se que esse projeto atendesse 50 mil famílias até o ano de 1978.[3]
Segundo um documento, os objetivos do projeto eram “altamente importantes”. Foi dito isso sobre os seus objetivos:
Pretendem racionalizar os métodos de produção e introduzir um sistema de irrigação, na base de “polders”, levando para isso longos e altos diques à beira do São Francisco. Espera-se que seja possível para breve a produção de duas safras de arroz por ano, finalidade primordial do trabalho, e que o homem do campo tenha um padrão de vida mais elevado. O Plano prevê treze agrovilas na área e, a título provisório, previa o alojamento do pessoal que trabalhava na antiga Fazenda numa área próxima ao rio, a fim de que ninguém fosse obrigado a sair.[4]
A modernização da agricultura poria fim ao regime de meação que tomava conta da região, que se caracteriza assim: os trabalhadores rurais, chamados de meeiros do arroz ou “parceleiros”, entregavam metade da produção ao dono da terra. Da metade que restava para os trabalhadores, eram descontados todos os gastos com sementes, adubos e outros mantimentos. O documento observou que:
Nessa Fazenda, a medida usada para se entregar o arroz ao dono era maior que a medida usada quando o dono ia entregar ao meeiro a sua parte. Além de tudo, se o meeiro quisesse vender alguma coisa do que lhe foi entregue, só poderia fazê-lo ao proprietário, a preço marcado por este.[5]
Por isso, houve aplausos quando se anunciou a desapropriação das 22 mil tarefas de terra da Fazenda Betume que pertenciam a um só dono, conhecido como “Zeca Pereira”. Em março de 1976, foi assinada a escritura de compra e venda da sua propriedade à Codevasf. Esta era uma empresa pertencente ao Ministério do Interior, criada para desenvolver as áreas de produção agrícola no baixo, no alto e no médio São Francisco.[6] No baixo São Francisco, a companhia começou a atuar entre os anos de 1973 e 1974.
O ronco infernal dos tratores da Gutiérrez: a violência na desapropriação
Alguns meses antes de se iniciar Betume I, começaram os trabalhos de desapropriação daquelas terras e de construção dos diques. Contudo, no meio desse caminho modernizante havia uma consequência intranquila: o desalojamento das famílias dos trabalhadores rurais que viviam naquelas terras.
Dias antes de o projeto ser iniciado, 103 famílias desocuparam suas casas, mediante uma indenização considerada “irrisória”.[7] As pessoas que abandonaram a área migraram para outras regiões, fora de Betume. Algumas optaram por ficar ilhadas em suas casas. Tiveram que enfrentar os tratores da construtora Gutiérrez. Estes tratores devastaram as suas parcelas de terra e destruíram as suas plantações.

Logo depois, os que resistiram também tiveram de enfrentar a proibição de criar ou plantar na área. Estavam sendo expulsos.
O que piorou a situação foi o fato de a desapropriação iniciar antes que fossem construídas as agrovilas para alojar os trabalhadores que eram retirados. A sanha modernizante não esperou: a desapropriação continuou por todo o mês de março, e as casas para alojar os moradores obrigados a sair só foram levantadas em abril.
Os ventos do “progresso” sopraram aquelas pessoas para o Alto da Rolinha. Ficaram abrigados em casebres feitos de barro e cobertos de palha, no meio da areia branca.
As lâminas dianteiras dos tratores da Gutierrez destruíam plantações e expulsavam os moradores de Betume. Num terreno ao lado da estrada da fazenda, a empresa operava para levantar duzentas casas de taipa.[8]
Estas casas de taipa eram cobertas por palha. Segundo a CPT, “tristemente arrumadas como um conjunto habitacional”.[9] O Alto da Rolinha não pareceu ser um bom lugar, talvez apenas para os “bichos de porco” que se divertiam na sola dos pés das crianças.[10]


O acordo estabelecido previa a indenização dos residentes da fazenda. O grande problema foi que, no ato da venda, o proprietário relacionou somente 60 pessoas na escritura de compra e venda, como sendo os únicos empregados do seu latifúndio.
O drama é o seguinte: com esse erro, ficaram de fora da lista 1.342 trabalhadores rurais, sendo alguns deles residentes da fazenda há mais de 50 anos![11]
No dia da compra da fazenda pela Codevasf, eis o estopim para que o conflito de interesses estourasse: a empresa governamental baixou a proibição de toda e qualquer atividade agrícola para as pessoas que ainda estavam por ali.
Grandes letreiros, espalhados em pontos chaves da área, alertavam que, a partir daquele momento, não era mais permitido “cortar árvores, fazer carvão, colher coco ou banana, bem como plantar o que quer que fosse”.[12]
Os trabalhadores iam, pouco a pouco, sendo convertidos em sombras estranhas na área que haviam nascido e crescido. Segundo relato, em consequência da falta de trabalho, sérias dificuldades apareceram para eles:
A princípio, defenderam-se com as bananeiras que restavam nos quintais ainda poupados, com as mangueiras e algumas outras fruteiras. Depois, passaram a comer fruta do mato para matar a fome. Em 76, na época das mangas, a grande maioria só comia mangas como única alimentação.
A indenização recebida era mínima. A migração virou rota de fuga. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Sergipe (Fetase) denunciou que os primeiros contemplados com a indenização receberam percentuais inferiores a 60% do acordo ajustado na Comarca de Neópolis.
A Fetase alegou que o percentual era inferior ao mínimo estabelecido por Lei. Ademais, o ajustamento da questão teria que se processar na Justiça Federal, considerando a procedência administrativa da Codevasf.[13]
Não era possível comprar um imóvel com tal indenização. Quem sabe um casebre. Num tom sombrio, foi dito: “De trabalhadores que eram, foram reduzidos a pedintes de esmola, nas cidades da vizinhança”.[14]
Ilustrativo o caso da antiga moradora Maria Esmeralda Lima da Silva, conhecida na região como Maria de Zeba. Ela relatou que a companhia pagou o valor de Cr$ 2.600 (dois mil e seiscentos cruzeiros) por uma casa, mesmo que numa relação contabilizada a casa constasse no valor de Cr$ 40.000 (quarenta mil cruzeiros)![15]
Maria de Zeba foi uma das residentes que recusou sair da sua moradia. Resistiu ao desalojamento. As primeiras consequências da resistência não foram boas para ela. Segundo uma longa matéria do jornal Movimento:
Devido à recusa em sair, Maria de Zeba foi ameaçada pela polícia, presa numa casa, intimidada por funcionários da Codevasf e pelo delegado de Neópolis. Em consequência, ela abortou e até hoje não se recuperou. Obrigada pela Polícia, que pela quinta vez tentava expulsá-la, ela recebeu a indenização e foi morar em Neópolis. No início, a família viveu de esmolas conseguidas pelo filho aleijado que, em dias de feira, conseguia alguns alimentos e dinheiro. Hoje, enquanto espera o resultado de uma ação na Justiça, ela vive de biscates.[16]
Equipe missionária em ação: a diocese é confrontada pelos desalojados
A tensão instaurada foi resultado direto do violento processo de desapropriação, da proibição imposta aos trabalhadores de exercer atividade agrícola na região e das indenizações muito abaixo do valor inicialmente acertado.
A equipe missionária da diocese foi à área para obter informações sobre o que se passava, pois recebeu estas notícias: sítios e plantações de mandioca, macaxeira e casas sendo derrubadas pelos tratores. O bispo, o padre Nestor Mathieu e os frades Enoque e Roberto Eufrásio se dirigiram até lá.
Embaixo de uma mangueira, os religiosos se reuniram com os trabalhadores, num ambiente de “revolta e tensão”.[17] Frei Roberto Eufrásio comentou que a primeira atitude dos religiosos foi pensar no que fazer, ouvindo os clamores daquele povo.
Para acalmar os ânimos, frei Enoque convidou os trabalhadores a rezar o Pai Nosso. A resposta dos moradores ao convite chama a atenção. O frei lembrou que tiveram de ouvir o seguinte: “a hora não era de oração!”.
Quando o vigário encarregado daquela população pediu a palavra, esta foi recusada.[18] Não tardou para que aquele vigário ouvisse uma reprimenda de dona Mariinha, umas das moradoras da fazenda. A reprimenda de Mariinha ilustra a desconfiança daquela população diante das posturas conciliatórias de alguns membros do clero diocesano. Criticando o vigário, ela disse: “Padre Moreno, o senhor há mais de vinte anos é vigário de Neópolis, sempre se hospedou na casa do proprietário, nunca desceu para nos visitar e nos orientar. Hoje estamos nessa crise. Não queremos ouvir o senhor, não”.[19]
O conhecido monsenhor Moreno seguiu para casa, em estado febril alterado. No retorno a Propriá, os outros religiosos o encontraram deitado. Nas conclusões de Frei Roberto, aquele era “o momento oferecido por Deus para a conversão do pastor”.[20]
Não foi só o monsenhor Moreno que ouviu as reclamações daqueles trabalhadores. O bispo, que estava presente, ao tentar acalmar os ânimos também teve de ouvir. Em seu testemunho, disse que procurou defender o vigário de Neópolis. Comentou o bispo: “Olhem, vocês devem compreender […] eu também apesar de morar no município vizinho ignorava este sofrimento de vocês”. Logo foi surpreendido com a seguinte resposta: “O senhor morava tão perto e não sabia que a gente sofria tanto”. Para o bispo, aquela foi “a primeira pancada” que recebeu dos moradores. Logo viria a segunda. Comentou:
A segunda pancada: ao lado do povo estavam os funcionários da Codevasf que queriam falar comigo no meio da multidão. Eu deixei o grupo dos posseiros e me dirigia a conversar com os funcionários, Aí os posseiros me agarraram dizendo: “Volte, volte senhor bispo, porque este pessoal vai mudar a cabeça do senhor, e o senhor deve ficar do nosso lado”.[21]
Para o bispo, esse foi o grande apelo que teve e ao qual procurou ser fiel até o fim do seu pastoreio. Na medida em que aqueles impasses se aguçaram, a desilusão do bispo com o projeto Betume se ampliava. Entre as desilusões e as cenas de marginalização, a diocese, então, se envolveu diretamente nos conflitos entre aqueles moradores e a Codevasf.
Tomando o partido dos primeiros, a instituição colocou a assessoria jurídica da nascente Comissão Pastoral da Terra (CPT) a seu serviço. Frei Roberto, Raimundo Eliete, as irmãs Francisca e Terezinha e o padre Nestor se juntaram para fazer o trabalho de orientação.
Mais elementos da equipe missionária estiveram envolvidos na questão. Frei Roberto comentou: “Foram anos de muita tensão, de muita entrega aos pobres de Deus, de percorrer de lugar em lugar toda aquela região […]. Das oito horas da manhã até às oito horas da noite estávamos nessas andanças […]. Tempo de muita fecundidade espiritual para nós mesmos”.[22]
Bebendo de fontes da Teologia da Libertação, estimulando as comunidades de base e fortalecendo o trabalho de suas pastorais junto aos mais pobres, a diocese começou a costurar a sua entrada para o campo mais radical do catolicismo e a consolidar a sua oposição à ditadura militar.
A pobreza no Alto da Rolinha e a provação de Maria de Zeba
Aumentou o número de lesados pela parca indenização e de intimidações contra os que resistiam em suas casas. E foi assim que começou a migração para o Alto da Rolinha.
O problema é que muitos entenderam o Alto da Rolinha como um sinal de morte. Alguns casos e relatos expressaram a sensação de insegurança e o medo de viver numa realidade até então desconhecida.
Houve uma divisão entre os que procuraram resistir diretamente às pressões da Codevasf e os que se conformaram com a proposta que se impunha de ir morar no Alto da Rolinha.
Segundo um dos primeiros levantamentos da diocese sobre a situação dos meeiros, a maioria dos desalojados acreditava que ir para o Alto da Rolinha era “ir para morrer”.
A diocese comparou a condução dos trabalhadores para o Alto da Rolinha com a de um gado sendo levado ao matadouro.[23] Ainda assim, muitos entenderam que não havia mais saída, a não ser a de ir para o Alto da Rolinha e trabalhar com o que lhes era oferecido.
Porém, é preciso ponderar quanto ao caráter resignado e passional daqueles que resolveram se conformar. Em testemunhos se observa que eles pareciam entender bem o tamanho da ameaça que tinham de enfrentar.
Em junho de 1976, de acordo com levantamentos, 44 famílias foram parar na agrovila, indo morar em casas de taipa, sem quintal, com cobertura de palhas de cocos.

O testemunho de José de Souza Martins, um dos moradores pressionados a ir para o Alto da Rolinha, ilustra precisamente a percepção dos que entenderam ser melhor não resistir diretamente. José de Souza Martins, que trabalhou por 20 anos em Betume, comentou o seguinte sobre a sua saída:
Não gosto de confusão e saí. Os meus vizinhos me xingaram muito, dizendo que eu era um fraco, mas eu saí. Recebi 860,00 e pronto. Logo me deram o emprego de vigia aqui. Já trabalho nisso há 4 meses. Depois eu contei a seu Henrique quanto tinha ganho pra [sic] sair e ele me disse que ia arranjar mais uma coisinha e me arranjou mais 800,00. Aqui não é bom não, mas é o jeito. Tem que vim [sic]. Vão fazer mais casas e o pessoal tem que vim [sic]. Eu fui dos primeiros que vim [sic]. Eu e Manoel de Chica que está também empregado. É o encarregado. Suarino trabalha na CODEVASF e ele na companhia (Gutiérrez). Pra [sic] semana nós vamos trabalhar na professora. Todo dia um carro vem trazer água. Também vai ter luz. Falam que vão abrir uma cacimba aqui.[24]
No relato desse trabalhador fica claro que havia o conhecimento da situação no Alto da Rolinha. Argumentou que ia para lá porque não tinha outro jeito. A seu modo, procurou negociar. Assim, conseguiu um dinheiro a mais e um emprego.
Além disso, demonstrou algum otimismo ante as promessas da empresa. Pode-se concluir que, em meio ao conformismo, a negociação entrou como um tipo de resistência, um modo de sobreviver a uma nova realidade, que ele sabia ser pior do que a anterior, mas inevitável. Entre os que resistiram diretamente, a situação foi, evidentemente, mais dramática.
Os agentes de pastoral da diocese de Propriá colhiam informações a respeito dos casos. Dirigiam-se até Betume para apurar pessoalmente. Um dos casos chamou atenção devido à tamanha violência. Deu-se com um daqueles atingidos que resolveram resistir diretamente. Era uma mulher, Maria de Zeba, já citada neste capítulo. Em seu depoimento à equipe de pastoral, Maria de Zeba comentou que foi pressionada a sair.
Disse ter visto funcionários da Codevasf – incluindo Rosa, uma conhecida assistente social – passar num jipe. Em seguida, eles voltaram com um carro da polícia. Deste carro, desceu o cabo Basílio.
Segundo o depoimento de Maria de Zeba, o cabo pediu para que ela se dirigisse com ele ao conhecido quarto da Casa Grande da fazenda. Maria de Zeba detalhou o seu infortúnio para o bispo dom Brandão, na presença dos padres Nestor Mathieu, Andres – do Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas) – e do frei Enoque. Disse ela:
Lá [no quarto da Casa Grande] estavam Jacques, Petrúcio, o bacharel, “dra” Rosa e outros. Aí chegou Suarino com uma folha e entregou. O bacharel perguntou: quem é fulano de tal (disse o nome de meu marido)? Eu disse: é meu marido. Aí ele perguntou: onde está ele? Eu disse: tá trabalhando. Ele disse: a quem? Eu respondi: a Suarino. Pois meu marido tava trabalhando com Suarino. Aí o bacharel mandou buscar meu marido. Quando ele chegou, o bacharel perguntou: quem é o dono da casa? Meu marido respondeu: sou eu. [bacharel]: assina ou não [?]; meu marido: quanto é? [bacharel]: é 2.664,00 e você não tem nem direito. Aí Zeba disse: E meus tempos? Então o bacharel falou: sua mulher tá aí pra ser presa. [Respondeu o marido]: Se é de ser presa, vá eu. Aí ele [o bacharel] disse: “ingema” aí esse cara. E o cabo disse: é logo. Quando eu virei e vi o cabo atrás do meu marido, tirar umas correntinhas brancas e grossas, aí eu endoidei. Gritava por todos os santos […]. Eu quero perder o dinheiro e não quero perder você. Aí o bacharel disse que desse choro já vi muito. Amanhã eu volto e quero ver se vocês não saem.[25]
De acordo com o informado por Maria de Zeba, seu marido tinha 38 anos de trabalho em Betume. Teve um acidente na fábrica em que trabalhava, passando por volta de dois meses no hospital. Em razão disso, ainda sofria com uma inchação. Um dia depois do ocorrido na Casa Grande, Maria de Zeba recebeu a visita do seu irmão Joel, residente de Neópolis. Ouviu dele: “minha irmã, que miséria é essa que tá [sic] acontecendo aqui? Eu vim [sic] lhe buscar”.
Depois de voltar para casa, Maria afirmou que reencontrou o cabo Basílio. Ele lhe perguntou: “Vai sair ou não?”. De volta à Casa Grande, o marido de Maria, sob a pressão, assinou a documentação que os desalojava de uma vez por todas.
Maria de Zeba não perdeu só as suas terras. Grávida, em meio às reprimendas, também perdeu o seu bebê.[26] Os agentes de pastoral colheram dela mais informações. Num informe interno, pontuaram sobre Maria de Zeba:
Está morando na casa de seu Salú, em Neópolis, e paga 60,00. O marido está trabalhando no alugado quando encontra. A situação é de fome. Diz que não quer mais voltar a morar no Betume, pois está envergonhada com o que aconteceu. Diz que pode voltar lá para ver os amigos.
[…] Maria disse também que durante a conversa na casa grande o bacharel disse: “não diga em lugar nenhum que você sofreu e não apareça mais aqui para não haver confusão”;
[…] Rosa chegou para mim e disse: comigo é assim, eu dou o mel pra [sic] depois dar o fel […].[27]
Entre a esperança e o medo: a importante presença da equipe missionária na organização dos desalojados
O clero diocesano ampliou a sua presença na região. Procurou não tomar à frente da situação por um motivo simples: entenderam rapidamente que deveriam tomar cuidado para não avançar demais, pois quem iria sofrer com a repressão não eram eles, mas os meeiros e seus familiares.
Tomando nota de tudo, os agentes de pastoral apuraram a absurda situação de moradores que assistiam atônitos ao aviltamento da sua situação.
O clero diocesano conheceu histórias como a do senhor Manoel Romão dos Santos, com mais ou menos 66 anos, que lutava para receber uma indenização mais justa por suas 1.374 touceiras de bananas, pelas laranjeiras, limoeiros, jenipapeiros e mangueiras.
Sem conseguir se aposentar, o senhor Romão confessou ter implorado da seguinte forma: “O fraco não pode ir contra o forte. Mesmo assim implorei, disse que era um pobre coitado, que tivessem pena de mim e voltei sem assinar”.[28]
Não tardou para que o grupo diocesano que visitava constantemente a área chegasse a algumas conclusões elementares. Nas reflexões finais sobre a visita a Betume, os agentes de pastoral advogaram que não poderiam confiar na boa consciência das autoridades. Perguntaram-se: “Todo jogo nosso, contato com as autoridades, vai atrapalhar ou não?”[29] A dúvida tinha a sua motivação. Viram que nem todas as autoridades contatadas pelo bispo esboçaram a mesma sensibilidade diante do conflito.
A título de exemplo, a equipe missionária citou uma promotora que defendeu a inevitabilidade das pessoas saírem com a chegada do “progresso”.[30] O texto também apontou a presença de “dedos-duros”.
A cada visita, pareciam ir tirando novas lições, como a de não confiar em qualquer pessoa. Afirmaram: “Já nos enganamos com Rosa”. A assistente social ligada à Codevasf passou a ser lembrada pela frase “primeiro dou o mel para depois dar o fel”. A mensagem foi interpretada como uma estratégia usada por ela para enganar os trabalhadores.
Outras assistentes sociais foram acusadas de ser “contratadas pela Codevasf para enganar com mentiras o pessoal do Betume”. Seus nomes foram divulgados em boletins diocesanos. Eram elas Marlene, Antônia e Acácia.
A equipe também passou a entender que alguns moradores da fazenda foram cooptados pela Codevasf e se tornaram espiões.[31] Foram citados os nomes de Osman, Suarino, Moacir e Justino. A diocese ainda alfinetou as promessas de Nilo Peçanha, presidente da Codevasf, e as do “doutor Campelo”.
Sobre este último, foi dito que, “com sua voz mansa e seu cigarro entre os dedos se dizendo devoto de Santo Antônio, prometendo maravilhas […], na verdade expulsava os pobres pais de família de sua terra de trabalho”.[32]
Por esses motivos, o clima em Betume era de desconfiança generalizada.
Além da obviedade da situação alarmante, a equipe missionária concluiu que a questão da terra, o ponto forte da resistência, parecia ter se diluído. Os missionários perceberam que a luta por uma boa indenização se converteu no principal sentido da resistência, enquanto que era abandonada a luta para poder ficar na terra.
Diante de toda a problemática, questionou-se sobre como seria o envolvimento da diocese no conflito. Pode-se concluir que houve uma tentativa de não dar protagonismo excessivo a nenhum grupo, nem mesmo fabricar lideranças. A equipe pontuou que era importante “salvar a ação do povo como um todo, e não só [a de] um grupinho”.[33]
Para os trabalhadores na linha de frente, os agentes diocesanos pontuaram sobre a importância de dar a eles dicas, como a de explicar o que é a Codevasf, apresentar dados e fazê-los entender que estavam dentro da lei e que, por isso, tinham possibilidades de lutar.
Também compreenderam ser necessário, como primeiro passo, ajudá-los a se libertar do medo. Insistiram na necessidade de fazer uma análise sobre o medo: “Quem tem medo? Por quê?” Sugeriram um catecismo rural da situação. Todas as decisões deveriam ser tomadas com os moradores. Estes deveriam assumir as posições. Ao passo em que as visitas aumentavam, a posição oficial da diocese se convertia. O bispo começou a falar sobre as vítimas do desenvolvimento, da técnica e da modernização. Abandonou, definitivamente, ainda em junho de 1976, a simpatia pelo projeto da Codevasf.
Tomou partido denunciando os impasses na região. Culpou as desapropriações de terra pela Codevasf como responsáveis pelas “centenas de famílias […] sem trabalho e sem plantações, sofrendo fome como nunca em suas vidas”.
Sobre os símbolos do progresso, disse ser favorável ao desenvolvimento, mas não por aquele que se fazia à custa do homem pobre e explorado. Advogou que as indenizações às famílias eram irrisórias e que os trabalhos de irrigação criaram mais problemas comparados aos que já existiam.
Encerrou um dos seus desabafos assim: “Agora os pobres não têm peixe, nem trabalho, nem terra e muitos nem água. São vítimas do desenvolvimento”.[34] Diante do impasse deixado pela modernização, a diocese tomou a sua posição a favor dos meeiros.
A instituição colocou um advogado à disposição dos trabalhadores. Os seus agentes de pastoral, juntos do bispo, passaram a acompanhar os acontecimentos in loco. Uma importante sinalização de que estava dando uma guinada radical em sua linha político-eclesial.
No próximo capítulo, veremos a repercussão nacional dos conflitos, a resistência dos trabalhadores, as acusações contra a equipe missionária da diocese e a reviravolta do caso Betume. Até lá!

Osnar Gomes dos Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Defendeu a tese: “Os sinais da conversão: o movimento do cristianismo da libertação na diocese de Propriá-SE (1960-1991)”. O texto na íntegra pode ser baixado aqui. Osnar possui Mestrado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde integrou o Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER/UFAL). Possui Graduação em História pela Universidade Tiradentes (2012) e Pós-Graduação em História do Brasil pela Faculdade Pio Décimo (2014). Atualmente, é professor efetivo da Rede Pública do Estado da Bahia.
[1] Segundo relatório da diocese de Propriá, dentro dos limites daquela terra, existia várias povoações, em que viviam mais de 600 famílias. Os sete mil hectares tinham o mesmo valor de 22 mil tarefas de terra. Cf. CASTRO, dom José Brandão de. RESUMO do caso de Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.
[2] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. RESUMO do caso de Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.
[3] Cf. FRANÇA, Alex Sandro. A Conversão de D. José Brandão de Castro: a ação social de mediadores religiosos na Diocese de Propriá. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, 2004, p. 83-84.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. Resumo do caso do Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.
[7] Ibidem.
[8] Cf. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. “Ilhas de Resistência” apud NUNES, Pamela. “Vale do São Francisco, ainda um desafio social”. In: Folha de São Paulo, 17 de julho de 1979.
[9] Ibidem.
[10] Muitos relatórios foram produzidos por agentes de pastoral da diocese de Propriá a fim de repassar informações gerais sobre os incidentes em Betume. Num deles, registrou-se as queixas dos moradores sobre os “bichos de porco”. O então deputado José Carlos Teixeira chegou fotografar os pés das crianças. Cf. BETUME, 31 de agosto a 28 de setembro de 1976, 2f.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem. Conferir também: NUNES, Pamela. “Vale do São Francisco, ainda um desafio social”. In: Folha de São Paulo, 17 de julho de 1979.
[14] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. Resumo do caso do Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.
[15] Cf. SIMÕES, Bené. “O medo no Alto da Rolinha”. In: Movimento, 17 de abril de 1978, p. 7.
[16] Ibidem.
[17] Cf. OLIVEIRA, frei Roberto. Caminhando com Jesus: uma experiência missionária no Nordeste. João Pessoa: Ideia, 2006, p. 47.
[18] Ibidem, p. 48.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Cf. [Entrevista] Dom José Brandão de Castro, Bispo de Propriá, Mensageiro de Santo Antônio, 04 de abril de 1984, p. 11. Entrevista concedida a Luciano Bernardi.
[22] Cf. OLIVEIRA, frei Roberto. Ob. Cit., 2006, p. 48.
[23] Cf. VISITA ao Betume, 18 de junho de 1976, 5f.
[24] Ibidem.
[25] Optei por deixar o texto como o encontrei escrito no relatório da visita. Ibidem. Este mesmo relato pode ser encontrado na publicação de agosto de 1976 do boletim Encontro com as Comunidades (BEC).
[26] Ibidem; Cf. SIMÕES, Bené. “O medo no Alto da Rolinha”. In: Movimento, 17 de abril de 1978, p. 7; “Justiça mobiliza trabalhadores”. In: Jornal de Sergipe, 04 de julho de 1978.
[29] Cf. VISITA ao Betume, 18 de junho de 1976, 5f.
[28] Ibidem.
[30] Ibidem.
[30] Ibidem.
[31] Cf. “CODEVASF”. In: Encontro com as Comunidades, julho de 1978, p. 3.
[32] Ibidem.
[33] Cf. VISITA ao Betume, 18 de junho de 1976, 5f.
[34] Cf. “Um desenvolvimento que gera miséria”. In: Centro Informativo Católico (CIC), 29 de junho de 1976. Ver também: “Luta por melhores dias para o homem do campo”. In: Centro Informativo Católico (CIC), 29 de junho de 1976.