Em entrevista à Mangue Jornalismo, o promotor de Justiça da 6ª Promotoria de Justiça Criminal de Aracaju, Rogério Ferreira da Silva, avalia os altos índices de letalidade policial em Sergipe e aponta as novas funções do Controle Externo da atividade policial pelo MPSE.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 divulgado em junho deste ano colocou Sergipe mais uma vez entre os estados em que os agentes de segurança pública mais matam no Brasil, terceiro no geral.
Sobre a letalidade alarmante das mortes por mãos de policiais, a Mangue Jornalismo questionou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) sobre procedimentos internos abertos para apurar as circunstâncias de mortes decorrentes de ações policiais. Em resposta, a SSP informou que, Sergipe não possui casos de ‘morte a esclarecer’.
No entanto, sobre as mortes em decorrência da intervenção policial, a SSP teria omitido ao estudo elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, quantas foram de responsabilidade de policiais civis ou militares ou se estes policiais estavam em serviço ou fora dele.
A SSP justificou as 176 mortes a partir de confrontos armados entre suspeitos de cometer crimes com policiais. A dúvida sobre o diagnóstico surge quando o Anuário traz em seu registro que apenas um policial morreu durante todo o período analisado em meio a tantos confrontos.
“Há uma desproporção muito grande no percentual de mortes de pessoas que, em tese, estão em confronto com a lei e mortes de policiais”, avalia Promotor de Justiça da 6ª Promotoria de Justiça Criminal de Aracaju e diretor da Coordenadoria de Apoio às Vítimas , Rogério Ferreira da Silva em entrevista à Mangue.
Na entrevista o promotor esclareceu sobre resolução, a 279 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que entrou em vigor em julho, e que regulamenta as atribuições do Controle externo da atividade policial exercido pelo MPSE. “No caso das mortes violentas, o artigo 11 traz parâmetros de como as investigações nesses casos devem ser feitas. Exemplo: perícia nas armas dos policiais é obrigatório.”
Independentemente das informações publicadas pelo Anuário, ele é categórico sobre como será a atuação doo MPSE. “Nós vamos cobrar que a polícia informe tudo sobre as circunstâncias dessas mortes.”
Leia a entrevista a seguir:
Mangue Jornalismo (MJ) – Como vê o cenário retratado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública?
Rogério Ferreira (RF) – Veja, inicialmente a gente precisa descortinar os números. Penso que não é possível fazer um juízo de valor sem estudar com um pouco mais de profundidade os números que são apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Seja com relação à redução das mortes violentas, no caso dos homicídios – e precisamos festejar sim – mas também é preciso avaliar em que contexto esses números foram reduzidos, para saber como se chegou a essa redução. Foi por que nesse período houve trabalho eficiente da polícia? Então devemos festejar. Foi por que houve um acordo entre os grupos que controlam o crime organizado para evitar alguns tipos de conflitos em determinadas regiões? Se isso aconteceu, não foi a atuação da polícia que gerou a queda nos números, foi um outro contexto. Ou seja, precisamos avaliar da mesma forma quando há aumento.
A primeira coisa que penso que devemos ter é uma transparência quanto aos números. Eu percebi que no Anuário Brasileiro da Violência, publicado há algumas semanas, o estado de Sergipe não informa os casos, de forma discriminada, sobre se as mortes violentas em decorrência da intervenção policial foram praticadas por policiais civis ou militares, nem se foram por policiais civis ou militares que estavam em serviço ou fora dele. A raiz da análise precisa começar por esse esclarecimento.
Se o policial militar ou civil está fora do serviço, a conotação que se pode dar a essa morte é uma. Se está em serviço, a conotação para a morte pode ser outra. Esses números não estão disponíveis no Anuário. Até porque nós precisamos saber o seguinte: se essas mortes em decorrência da ação policial vêm de policiais civis, são geradas a partir de procedimentos já instaurados, supõe-se. Ou um processo criminal existe ou inquérito existe, e a polícia está atendendo a uma determinação do sistema de Justiça, seja cumprimento de mandado de prisão, busca e apreensão de algum objeto. Se essas mortes vêm da Polícia Militar, então não existe um protocolo formal ainda porque a PM atua como polícia de segurança, antes do crime acontecer, visando prevenir o crime. Então, esses confrontos aparecem seja em razão das rondas policiais, das abordagens, de uma suposta situação que leve a uma prisão em flagrante. Então, precisaríamos analisar esses contextos para chegar a um denominador comum sobre o porquê destas mortes estarem acontecendo.
MJ – Como avalia os números elevados de mortes em ações policiais em Sergipe?
RF – Sergipe realmente apresenta números muito elevados e vem apresentando esses índices há alguns anos. Sergipe apresenta queda no número de homicídios de maneira geral, mas também apresenta aumento no número de mortes em intervenções policiais. Foi um aumento de 30% neste último caso. Agora veja: Sergipe, este ano, perdeu apenas, em números absolutos, para o estado da Bahia, Rio de Janeiro – no que diz respeito a mortes decorrentes de intervenção policial -, Pará, Goiás, São Paulo e Paraná. O nosso estado está em 7º lugar. Se formos observar esses números absolutos de Sergipe, tem um problema: somente dois estados apontaram viés de alta – Bahia, que em relação a 2022 apresentou crescimento de 22% nesse tipo de mortes, e São Paulo, com acréscimo de 19%. Sergipe apresentou acréscimo de 30%. Os demais estados estão à frente de Sergipe e apresentaram queda: Rio de Janeiro, 34%; Pará, 15%; Goiás, 4%; Paraná, 28%. Então, Sergipe está em viés de alta [nas mortes por intervenção policial]. Talvez, no próximo ano, se continuarmos com esse contexto, talvez ultrapassem os outros estados. Primeiro é preciso identificar as razões da morte para, depois, tratá-las. Para dizer se as mortes são fruto do trabalho de inteligência policial no cumprimento de ordens judiciais é preciso primeiro saber a origem dos óbitos. Obviamente, que dentro deste contexto vão surgir situações onde o confronto entre polícia e criminosos é uma situação inevitável. E se o confronto é inevitável, tanto pode haver mortes de policiais quanto de pessoas envolvidas no mundo do crime, embora as estatísticas apresentadas no Anuário apontem que houve uma mortes de policiais no período analisado. Então, há uma desproporção muito grande no percentual de mortes de pessoas que, em tese, estão em confronto com a lei e mortes de policiais. É preciso, então, ter confiabilidade dos números que são apresentados. E aqui não falo dos números absolutos, falo na discriminação desses dados para que possamos avaliar de maneira mais precisa o que está acontecendo.
MJ – O que é o Controle externo da atividade policial feito pelo MPSE?
RF – o controle externo da atividade policial foi atribuído ao MP por determinação constitucional. Todas as instituições elencadas no artigo 144 da Constituição são suscetíveis ao controle externo do MP. Nós estamos procurando, falo sobre mim porque estou aqui desde o dia 25 de março deste ano, para exercê-la ou mostrar às instituições que estamos dispostos a exercer essa atribuição.
Existe uma resolução, a 279 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que entrou em vigor em 9 de julho, que regulamenta as atribuições de maneira detalhada do controle externo da atividade policial. No caso das mortes violentas, o artigo 11 traz parâmetros de como as investigações nesses casos devem ser feitas. O delegado-geral da Polícia já foi informado que, a partir de agora, os procedimentos policiais para investigar uma morte violenta tem que seguir o que diz o artigo 11 da resolução do CNMP. Ou seja, coisas que não são feitas hoje devem começar a ser colocadas em prática. Exemplo: perícia nas armas dos policiais é obrigatório. As medidas são tantas que vamos subindo os pavimentos por escada, não por elevados. Ainda temos de ajustar como serão feitas, mas a perícia nas armas e no local do crime devem ser feitas. Os inquéritos a serem instaurados devem investigar a morte daquela pessoa, seja ele tendo mandado de prisão contra si ou não, e não para apurar a conduta de quem morreu. Isso é o que se faz hoje. O que o regulamento do CNMP manda é apurar o contexto daquela morte e não a conduta de quem morreu, até porque são coisas distintas. Todos os promotores de justiça do Estado de Sergipe foram comunicados através da comunicação conjunta nº 02/2024, assinada pelo corregedor em 27 de junho, de que devem observar esse contexto, a alimentação do sistema de mortes violentas e devem adotar as providências para observar se as coisas estão sendo feitas da maneira adequada nos inquéritos policiais. Além disso, nós também solicitamos ao delegado-geral que o MP, em relação à minha intervenção, deverá ser comunicado no prazo de 24h sobre qualquer morte que ocorrer em intervenção policial. Nós vamos cobrar que a polícia informe tudo sobre as circunstâncias dessas mortes. Também encaminhamos ao comandante da PM para que também sejam adotadas providências neste sentido.
Ou seja, estamos tentando fazer tudo aquilo que as normas preveem no sentido de ter um controle maior sobre essas mortes.
MJ – E o que isso muda na prática?
RF – A partir do momento que a gente puder mapear a origem das mortes, seja da PM ou da PC. Quando falo da origem, não estou a afirmar que há ilegalidade neste óbito, mas apenas manifestando o interesse de saber se ela ocorreu durante intervenção da PM ou PC, e depois saber se em serviço ou fora dele, para entender essa morte e melhorar aquilo que for possível na prestação do serviço para que essas mortes não ocorram. No mesmo sentido, já cobramos ao comandante da PM que nos encaminhe os protocolos operacionais. . Na lei, por exemplo, há a previsão de criação de protocolo operacional padrão. O que isso significa? Significa que, quando um policial vai à rua após chamado do Ciosp sobre a aplicação da lei Maria da Penha, ele precisa saber o que fazer. E esse procedimento deve estar normatizado. Não se pode deixar ao critério de um policial decidir o que fazer naquele momento. Os protocolos existem justamente para balizar o campo de atuação do policial. Se não tem norma, atuo de acordo com a minha convicção; se há norma, devo segui-la. Isso faz com que você diminua o campo de atuação e, por consequência, diminui-se também algumas irregularidades, muitas das quais até por desconhecimento do próprio policial. A existência desse protocolo é de extrema importância e a nossa orientação é que ele seja apresentado e divulgado a toda sociedade, porque todos têm o direito de saber como as abordagens policiais são feitas. Estamos falando de publicidade, transparência, informação. Claro, há situações em que isso não se aplica, em situações de natureza confidencial. Agora, como se faz uma abordagem de rua? Isso deve ser público, todos devem saber. Até porque deve existir um padrão: a mesma abordagem realizada em Aracaju, tem de ser feita em Nossa Senhora do Socorro, Canindé, Carira; pessoas diferentes devem sofrer a mesma abordagem.
MJ – E qual seria o papel dos Conselhos Municipal e Estadual de Segurança Pública?
RF – Penso que os conselhos estadual e municipais de segurança pública, criados através da lei que criou o SUSP, também devem ter acesso às informações do Anuário e discuti-las. A SSP não deve só apresentar os números que indicam queda nos homicídios, mas também do aumento das mortes em ações policiais e explicar os motivos delas terem acontecido. Não estou falando que existem irregularidades, mas defendendo uma explicação sobre essas mortes, até porque houve um aumento significativo. Penso que é uma posição exagerada para a cidade de Itabaiana, onde 63% das mortes violentas foram cometidas pelas forças de segurança pública; 54% das mortes ocorridas em Lagarto foram provocadas pelas forças de segurança. Além disso, é importante fazer uma reflexão: essas vítimas são, na maioria dos casos, do sexo masculino, cuja idade varia entre 18 e 29 anos, de raça negra e muitos desses casos ocorreram dentro de residências (11,9%). Veja, isso precisa de um olhar atencioso. O “confronto” ocorreu dentro da residência? Em que horas esse crime aconteceu? Até porque a casa é um asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo nela entrar ou permanecer salvo em duas situações: que esteja ocorrendo um estado de flagrante delito ou em decorrência de mandado judicial. E mesmo neste último caso, ninguém pode entrar na casa durante repouso noturno. Como se ingressou dentro de uma residência? Como foi o planejamento dessa operação?
MJ – Uma parte expressiva da sociedade enxerga esse comportamento policial como positivo. Como o senhor avalia essa reação?
RF – O grande problema que eu avalio é o seguinte: hoje, a sociedade, de maneira geral, passa por um estado de indignação no que diz respeito ao avanço da criminalidade. A criminalidade tomou conta então especialmente nós somos bombardeados por informações sobre a atuação de grupos voltados para o crime organizado, do tráfico de drogas, milícias, que acabam impondo à sociedade em geral, especificamente alguns segmentos específicos que estão isolados geograficamente, um sentimento de subjugamento. E a sociedade associa o crime a um mal. Qual é o pensamento diante disso? A família não conseguiu, a escola não conseguiu, o Estado não conseguiu, a religião, de maneira geral, não conseguiu; o Poder Público não conseguiu, o sistema de justiça não conseguiu afastar o mal daquele cidadão. Se nenhuma dessas instituições conseguiu combater a criminalidade, qual a forma que a sociedade encontra? Ou a mudança do local para uma área mais segura, a contratação de segurança privada. Então, quando se associa a morte de uma pessoa supostamente ligada ao crime, a sociedade aplaude, concorda, porque a única solução entendida como necessária é essa, não há mais crença nas instituições. A sociedade se vê indiferente. O crescimento na quantidade de mortes violentas em decorrência da intervenção policial não é um problema para a sociedade, porque a percepção é que está se afastando um mal que as instituições do Estado não conseguiram afastar esse mal. Só que a criminalidade não pode ser resolvida apenas com o braço da Polícia, que é importante, mas não resolve por si só esse problema. Por isso é preciso identificar a raiz dessa questão. Qual é a porta de entrada para o crime? Uma política adequada de combate à criminalidade é aquela que ao mesmo tempo em que reprime também busca a ressocialização e o não acesso ao mundo do crime. E essas questões não estão na alçada da polícia e da segurança pública, por isso é importante identificar a origem dessas mortes para, somente depois, entender o cenário que está dado em Sergipe.
MJ – A Secretaria de Segurança Pública disse ao anuário que não há casos de mortes a esclarecer. Como o MP avalia essa declaração?
RF – Qualquer inquérito deve se fazer todas as diligências para se provar duas coisas: autoria e materialidade. Não é para apurar a conduta de quem morreu, mas a legalidade da ação policial que gerou a morte – que pode ter sido, sim, uma ação correta e coerente dentro dos padrões. Ninguém está dizendo que há ilegalidade nessas ações, mas que qualquer morte, até um suicídio, deve ser esclarecida. Encaminhar números para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública não significa que aquelas mortes não devem ser esclarecidas. Informar número não é esclarecer mortes, mas uma mera contabilidade para se aferir estatísticas. Agora, o conteúdo de cada morte deve ser individualmente investigado para se verificar se as ações foram adequadas ou não.
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