PRISCILA VIANA, da Mangue Jornalismo
Quem julga os juízes? Precarização, desvio de funções e ampliação dos cargos de comissão podem ameaçar o serviço público, tanto no Ministério Público do Estado de Sergipe quanto no Tribunal de Justiça.
O projeto de privatização do serviço público e de precarização do servidor público segue seu curso no Estado de Sergipe e vai corroendo como cupim um órgão e um poder que deveriam exatamente proteger o público e o serviço público: o Ministério Público de Sergipe (MPSE) e o Tribunal de Justiça do Estado Sergipe (TJSE).
Há 10 anos sem a realização de concurso público, por exemplo, o Ministério Público amarga a triste realidade de uma forte contradição entre o que determina a Constituição, por ele mesmo fiscalizada e exigida para prefeituras, câmaras e Governo do Estado, e a sua aplicabilidade dentro do órgão. Em outras palavras, cobra concurso público, mas não faz o dever de casa.
O MPSE é o órgão responsável por mover Ações Civis Públicas (ACPs) contra os poderes Executivo e Legislativo em todo o estado, determinando que os mesmos exonerem seus cargos de comissão (CCs) e realizem concursos públicos. Essas ações são corretíssimas e estão amparadas pela Constituição Federal.
Um levantamento realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Efetivos do Ministério Público de Sergipe (SINDSEMP) apontou pelo menos 12 ocorrências de ACPs movidas pelo MPSE nos últimos cinco anos cobrando a exoneração de CCs, resolvendo problemas de desvio de funções e, principalmente, para que realizem concursos públicos. Entre os alvos estão o Governo de Sergipe, a Prefeitura Municipal de Aracaju e prefeituras de outros municípios, a exemplo de Japaratuba, Pirambu, Capela e Itaporanga.
E o dever de casa?
Mas, quando a lupa se volta para dentro, a contradição grita. No próprio Ministério Público, foram identificados 355 casos de acumulações de funções e designações para que servidores atuem em mais de um setor no ano de 2022, de acordo com informações do SINDSEMP e que são públicas, estão no Portal da Transparência.
Esse número representa uma média de 29 casos por mês, sendo 144 de técnicos e 155 de analistas do MPSE. Este ano, que ainda está no sétimo mês, o número total já chega a 176, mantendo a média de 29 por mês e alcançando 80 casos entre técnicos e 79 entre analistas.
Desde o último concurso, realizado em 2013, o Ministério Público do Estado de Sergipe já passou por uma reforma administrativa, em 2019, que ampliou ainda mais o número de cargos de comissão, criou cargos de estagiários de pós-graduação em 2021 e incorporou dez servidores requisitados de outros órgãos em março deste ano.
Atualmente, o MPSE possui 42 CCs a mais do que em 2018, sendo 40 ocupados por servidores sem qualquer vínculo. Já entre os postos de trabalho efetivos, de 451 cargos ocupados em janeiro de 2018, há apenas 420 ocupados hoje. De lá pra cá, os cargos existentes foram reduzidos de 532 para 478, devido a sucessivas extinções de cargos efetivos realizadas nos últimos anos.
Avanço na precarização do serviço
O dirigente de Formação Sindical do SINDSEMP, João Campagnaro, afirma que os números retratam o nível de precarização que já toma conta do órgão. “Do ponto de vista dos servidores efetivos, o que nós encontramos no nosso dia a dia são promotores de justiça que nos passam como atribuições cobrar dos órgãos do Poder Executivo e do Legislativo que enxuguem os quadros em comissão e apliquem concurso público. Quase todos os municípios sergipanos hoje passam por esse processo de cobrança do MPSE”, informa João.
Contraditoriamente, lembra o dirigente do sindicato, “que o Ministério Público, internamente, vem optando, desde 2018, por resolver o problema do déficit de servidores de forma prática, criando cargos de comissão. Isso nos põe em descrédito perante a sociedade, pois coloca em xeque a atuação do MPSE”, afirma João Campagnaro.
No entender do dirigente do sindicato, o MPSE precisa, antes de implementar uma reforma administrativa, realizar um concurso público que dê conta de resolver a defasagem do quadro de servidores. “Uma reforma administrativa que aumenta o número de cargos de comissão e que hoje ocupam o lugar dos servidores efetivos interessa a quem? Causa estranheza a inversão das prioridades. Por que não se realiza um concurso público para depois realizar a reforma administrativa?”, questiona Campagnaro.
Uma das provas desse processo denunciado pelo sindicato é que hoje, quinta, dia 13, a atual gestão do MPSE deve votar, às 10 horas, em sessão do Colégio de Procuradores de Sergipe (CPJ), o novo projeto de reforma administrativa, que visa a criação de 44 novos cargos em comissão e 10 funções de confiança na instituição, além da transformação da nomenclatura de outros cargos. Segundo o sindicato, tudo isso está acontecendo sem qualquer diálogo com a representação legal dos servidores do MPSE. Os trabalhadores efetivos protestam contra a votação.
A Mangue Jornalismo entrou em contato com a Assessoria de Comunicação do Ministério Público de Sergipe (MPSE), aguardou um retorno, mas não obteve nenhuma sinalização de resposta até o fechamento desta reportagem.
Precarização do serviço também no TJSE
O Edital nº 1/2023, lançado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe para provimento de cargos de servidores efetivos do quadro de pessoal do órgão no último dia 26 de junho, era bastante esperado pela população sergipana – e concurseiros de outros estados. O último concurso público realizado pelo órgão foi em 2014.
No entanto, o tão aguardado concurso público representou um balde de água fria, tanto para as trabalhadoras e trabalhadores que sonham em entrar no TJSE, quanto para quem já compõe o quadro daquele poder.
Apesar do longo tempo sem a realização de concurso público – nove anos -, chama atenção no edital a pouca quantidade de vagas para analistas. Além disso, a ausência de vagas para cargos de analistas fundamentais ao funcionamento do órgão: serviço social, psicologia, direito, economia e arquitetura.
De acordo com Analice Soares, coordenadora geral do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (Sindijus), a presença desses analistas no quadro de servidores efetivos é essencial para a prestação do serviço jurisdicional à população sergipana, em especial aos segmentos populacionais mais vulneráveis envolvidos em situações sociais tais como abandono, violência e outras violações de direitos, que são praticadas contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e mulheres.
“Depois de nove longos anos sem concurso, é muito grave o tribunal lançar um edital sem essas especialidades, pois há um déficit desses profissionais. Houve uma redução ao longo dos anos no quantitativo de servidores e não houve sequer a recomposição do quadro. Nós temos uma redução no quantitativo de profissionais, enquanto as demandas são crescentes. E infelizmente, apesar de haver déficit desses profissionais, o tribunal decidiu por não abrir vagas para esses analistas”, afirma Analice.
“Com a força de trabalho reduzida, também se diminui a oferta de serviços prestados, e a instituição precisa oferecer os serviços de forma suficiente em relação à demanda. Quem sofre é a população, que pode não ter acesso aos serviços que busca no tribunal. Além disso, gera também sobrecarga de trabalho para os servidores, que por sua vez tem rebatimentos negativos na qualidade da prestação do serviço e essa é outra conta que a população paga”, explica a coordenadora do sindicato.
“A farsa do nível médio como escolaridade exigida”
A diminuição dos cargos de analista no TJSE não acontece à toa. De acordo com dados do próprio tribunal, ao menos 90% dos ocupantes do cargo de técnico judiciário possuem alguma graduação. Para ocupar uma das 52 vagas anunciadas pelo edital, cuja exigência de escolaridade é a de nível médio, são exigidos conhecimentos de administração pública, direito constitucional, administrativo, penal e processual penal, civil e processual civil, o regimento interno e o código de organização judiciária, além do Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de Sergipe.
Analice explica que essa contradição não é à toa. Ela tem como objetivo intensificar a onda de precarização do serviço público, cumulações de funções e designações, aliado à desvalorização do analista judiciário e ampliação dos cargos de comissão. “Isso é o que chamamos de farsa do nível médio como escolaridade exigida no concurso para técnico judiciário. Na execução dessas atividades, há uma apropriação intelectual desses servidores, há uma complexidade nas atividades desempenhadas”, informa a dirigente.
A coordenadora geral do Sindijus diz que o sindicato defende “o reconhecimento do nível superior dos técnicos e que, no conteúdo programático para técnico judiciário, fossem exigidos conhecimentos que atendem ao conteúdo do currículo base do nível médio. E o que o edital exige para um cargo de nível médio são conhecimentos em diferentes áreas do direito”, revela Analice Soares.
TJSE diz que segue as regras do CNJ e observa a conveniência administrativa e o interesse público
Procurada pela Mangue Jornalismo, a Diretoria de Comunicação do TJSE respondeu por e-mail que, para resolver o problema da defasagem de servidores, “já iniciou o concurso público para preenchimento de vagas, por meio da instituição FGV, com previsão para realização das provas em 15 de outubro deste ano”. Com relação à denúncia da farsa do nível médio, o TJSE afirma que “segue as regras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), observando principalmente a conveniência administrativa e o interesse público”.
O TJSE informa ainda que a Presidência do Poder já recebeu em várias oportunidades a direção do Sindijus e sempre esteve de portas abertas para o diálogo, inclusive havendo reunião já marcada para o próximo dia 17 de julho”.
“Ccom relação à terceirização do serviço público, o TJSE segue precisamente os normativos do CNJ, sendo digno de registro que, nos primeiros meses da atual gestão, já houve redução do quadro de terceirizados nos setores em que a diminuição se mostrou oportuna e não prejudicial a manutenção da qualidade dos serviços prestados”.
Governo Mitidieri: caminho aberto para precarização do serviço público
O avanço das terceirizações no serviço público e a crescente precarização do servidor, aliada ao preenchimento desordenado de cargos de comissão e contratados em órgãos da administração pública do Estado de Sergipe não são obra do acaso e muito menos exceção. Ao que parece, a gestão do governador Fábio Mitidieri (PSD) é quem tem liderado esse processo de ataque ao serviço público.
O Executivo estadual é autor do Projeto de Lei nº 150/2023, aprovado na Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (Alese) no dia 20 de abril, que institui o Programa de Parcerias Estratégicas (PPE-SE) e faz parte do pacote de projetos e ações que integram o Programa Sergipano de Desenvolvimento Econômico e Social (“Desenvolve Sergipe”).
Em resumo, esse pacote do governador e aprovado pela maioria dos deputados estaduais pode representar um cheque em branco para os órgão do Governo do Estado avançarem em processo de terceirização, parceiras e privatização do serviço público.