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Larissa, Lucivânia e Lídia: o processo de reconhecimento como mulheres negras e a luta contra o racismo. A trajetória de três sergipanas potentes

TATIANE MACENA, da Mangue Jornalismo

Durante a vida, a mulher sofre com rótulos acerca da sexualidade, maneira de se comportar, de vestir, de se comunicar. Até chegam a definir que lugares ela pode ou não pode frequentar. Mesmo as mulheres sendo 51,8% da população brasileira, segundo dados do IBGE, elas sofrem diariamente com o machismo, empurradas para lugares determinados e criados pelo patriarcado.

Em uma sociedade em que a misoginia e o racismo caminham lado a lado, ser mulher preta ainda é muito mais difícil. A Mangue Jornalismo conversou com três mulheres negras muito potentes e que ocupam espaços em Sergipe, cada uma em uma área.


Larissa Vieira e a arte: a descoberta como Mundo Negro

Natural de Aracaju, Larissa Vieira, Mundo Negro, é uma artista visual, empreendedora e educadora infantil. Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), trabalha com arte Afro-brasileira, artesanato, moda sustentável, ilustração e muralismo.

Seu material é inspirado em elementos da natureza e ancestralidade. As estampas ilustradas por ela são feitas com técnicas de customização, estamparia artesanal e bordados, tudo aplicado na confecção das peças para criar coleções exclusivas.

Larissa Mundo Negro: vivência, África e ancestralidade (Foto: Tatiane Macena)

Quando criança, Larissa costumava assistir muitos desenhos. Por volta dos dez anos de idade começou a se perguntar o porquê de a maioria das personagens de seus desenhos favoritos serem brancos. Assim, ela passou e desenhar e criar quadrinhos do cotidiano de personagens negros e periféricos, promovendo desde ali, muita representatividade.

Mais tarde, após já ter ingressado na universidade, Larissa estudou sobre as histórias da comunidade negra. “O meu trabalho começa a ter esse processo de negritude, quando eu comecei a estudar sobre personagens negros em Sergipe e arte africana. Foi assim que cheguei até as máscaras africanas”, relembra a artista visual.

Como sempre teve contato com a arte, Larissa, acabou assimilando a ideia de geometria em construção de conteúdo e modelagem africana, e assim passou a esboçar nos seus trabalhos de crítica, as configurações das máscaras e esculturas.

A potente arte singular de Larissa Mundo Negro. (Foto: Arquivo pessoal)

Por falta de contato com a estética negra, a mãe de Larissa não sabia lidar, por exemplo, com o cabelo da filha. Por isso, não eram raras as tentativas de ‘deixá-la bonita’. A menina sofria preconceitos por causa do cabelo na rua, e até mesmo em casa, por isso, tinha o cabelo alisado frequentemente. Em episódio de alisamento, a aplicação química não deu certo e o cabelo de Larissa caiu e ela sofreu bullying.

“A minha mãe não sabia lidar com o meu cabelo, e por mais que ela tivesse vontade de cuidar, ela tinha pouco tempo para isso, porque estava sempre muito cheia de trabalho e o meu cabelo é um 4c. Ela não sabia disso e, então no primeiro momento ela fez um permanente afro em mim e eu tive um acidente químico. Aí eu tive que ficar careca, e nesse processo de estar careca eu sofri”, conta a artista.

Através de uma amiga de sua mãe, que trazia alguns elementos de estética negra da Bahia, Larissa passou a ter contato com tranças e outros elementos, mas não tinha letramento racial.

Mesmo sem tanta consciência, Larissa queria assumir a identidade negra e tentava negociar com a mãe. “Eu dizia: ‘mãe eu preciso usar esse cabelo, porque esse que eu estou agora eu não gosto. Eu não gosto de alisar o meu cabelo, e nem de dar escova’. Eu queria usar o dread ou o black, mas ela não deixava. Eu estava cansada de usar trança e de alisar a metade do cabelo”, diz.

Elementos feitos por Larissa têm sustentabilidade e fios ancestrais (Foto: Tatiane Macena)

Os embates com a mãe fizeram com que Larissa começasse a pesquisar sobre questões negras. Nesse processo, aos 18 anos, ingressou em artes visuais na UFS, conheceu alguns movimentos sociais e se libertou das questões da estética.

“Eu sempre tive uma identidade negra muito forte, mas não me questionava o porquê de estar fazendo tais coisas, ou sobre questões de comunidades negras. Eu só comecei esse processo quando entrei nos movimentos sociais, como o Coletivo de Mulheres Negras Rejane Maria. Os lugares que eu fui frequentando me deram noção sobre a cultura negra, violência racial, o empoderamento negro, etc”, afirma Larissa.

Atualmente, Larissa ministra oficinas de artes, nas quais busca abordar questões etnoraciais. “Em todos os lugares que eu posso chegar enquanto educadora procuro fazer uma educação étnico racial, independente de se ter brancos ou negros, pois ela é para todas as pessoas. Todos têm que entender as relações de raça, gênero e classe em nosso país, para que possam promover mudanças”, defende.

Larissa disse que, “como educadora, busco ensinar e principalmente para as crianças pequenas, porque elas estão no primeiro momento de enfrentar o mundo, então é importante que a gente ensine respeito para algumas e como se defender para outras”, afirma Larissa Mundo Negro.

Larissa busca ensinar sobre questões etno raciais. (Foto: Tatiane Macena)

Lucivânia dos Santos e o esporte: uma gigante do Parabadminton

Jornalista, negra, pessoa com deficiência (PcD), e graduanda em nutrição pela UFS, Lucivânia dos Santos é primeira colocada no ranking estadual e o quinto nome do Brasil em Parabadminton. A paratleta também é diretora da Federação Sergipana desse esporte, que para ela significa vida.

Nascida e criada em São Cristóvão com os avós, os quais ela sempre chamou de papai (Valdomiro dos Santos) e mamãe (Maria Celeste dos Santos), Lucivânia aprendeu com eles a levar a vida com leveza e a se defender sempre que precisar.

Lucivania: autonomia a partir do esporte. (Foto: Tatiane Macena)

Na infância, a família de Lucivânia percebeu que ela tinha problemas de saúde, no entanto os médicos não conseguiam lhe dar um diagnóstico. Luh, para os mais íntimos, não podia ser colocada em situações que pudessem desencadear estresse, pois poderia sofrer eventuais desmaios. Diante dessa condição, a garota que já sofria com o racismo, era magoada constantemente com a questão de saúde.

“Na escola, ninguém queria brincar comigo e isso me deixava triste. Quando eu tentava me aproximar, eles me diziam: ‘saia daqui, porque senão… aí meu coração’. Eu sofria quando me chamavam de bombril e também pela deficiência”, lembra Luh.

Aos 12 anos, ela recebeu o diagnóstico de raquitismo hipofosfatêmico, uma doença em que os ossos se tornam moles e doloridos e se curvam facilmente, porque o sangue contém uma concentração baixa do eletrólito fosfato.

Luh perdeu os movimentos dos membros inferiores e consequentemente deixou de frequentar os locais que gostava, como a Praça São Francisco e a biblioteca. “Perdi os movimentos em pouco tempo e pensei que seria o fim para mim. Só sabia chorar e quis me isolar. Naquele tempo eu não sabia, mas tive um começo de depressão. Eu nem vivia mais, ficava vegetando, e quando via o povo brincando, chorava”, desabafa.

Luh nasceu e cresceu em São Cristóvão (Foto: arquivo pessoal)

Por dois anos, Lucivânia ficou sem estudar, mas resolveu enfrentar o mundo e voltou para a escola. Foi uma batalha árdua porque as escolas de São Cristóvão não estavam prontas para recebê-la e não queriam aceitar uma aluna com deficiência. Depois de muita briga, sem precisar acionar o Judiciário, os pais de Lucivânia conseguiram uma vaga.

No entanto, a direção capacitista da escola queria deixá-la isolada na secretaria. “Eu disse que não fazia sentido ir à escola se não pudesse interagir com as outras crianças”, insistiu Luh.

Em 2013, ela ingressou no curso de Jornalismo da UFS e lá conheceu a paratleta Maria Gilda, que a convidou para ter contato com o Parabadminton e, posteriormente, fazer reabilitação. Depois de um ano, sempre adiando a proposta, Lucivânia aceitou o convite de Gilda.

Após conhecer o espaço, decidiu iniciar a reabilitação, então falou com a Prefeitura de São Cristóvão, que cedeu o transporte. No entanto, ela não podia ficar até o final devido ao horário do ônibus. Então, quando não estava acompanhada, ia conduzindo a cadeira com os pés devagar, por não saber lidar com ela.

“Eu não tinha autonomia nenhuma, sempre tinha que esperar que alguém fizesse as coisas por mim. E eles me falaram sobre a reabilitação, que a partir disso eu poderia ter mais independência e conseguiria tocar a minha cadeira sozinha. E aí eu vim nessa esperança de que as coisas iam melhorar, até porque eu sentia muitas dores naquela época. E de fato, quando comecei a fazer as atividades, melhorei”, conta.

No final de 2015, após participar de sua primeira competição, Lucivânia deixou de ver o Parabadminton apenas um projeto de reabilitação.

Quando comecei a fazer as atividades, melhorei”, conta Lucivânia (Foto: Jane Miranda)

A primeira competição que Lucivânia participou foi em âmbito nacional. “Quando me convidaram eu disse: ‘não sei jogar não, mas bora’. Inclusive, tomei petecada”, brinca, lembrando que percebeu ali que a deficiência não poderia impedi-la de se sentir viva. “E ali eu vi as pessoas jogando como atletas e não apenas como PcDs. Foi aí que me apaixonei”, diz com brilho no olhar. 

Mesmo estreando em uma competição nacional, Lucivânia voltou para casa com uma medalha individual, uma medalha por equipe e mais uma medalha de “atleta joga limpo” (concedida para aqueles que não omitem pontos dos adversários). Percebeu que levava jeito para a coisa e desde então não parou.

Luh vai para o campeonato brasileiro em São Paulo (Foto arquivo pessoal)

Lídia Anjos e os direitos humanos: direito humanos para os oprimidos

Ela é assistente social e defensora na linha de frente dos direitos humanos. Lídia Anjos não demora para comprar a briga de todes, todas e todos como se fosse dela. Depois de concluir o mestrado em Direitos Humanos, ficou por dois anos dando aula na UFS e, posteriormente, passou pelas gestões municipal e estadual.

Lídia é doutoranda da UFS, onde analisa as relações existentes entre as práticas educativas de controle social protagonizadas pelos movimentos em Sergipe e as cotas raciais na universidade. Por ter a pele um pouco mais clara e vir de uma família que não se vê negra, demorou para se perceber enquanto uma mulher negra.

Para Lídia, tratar todos de maneira igualitária é diferente de promover justiça, diante das mazelas da sociedade. Ela se coloca como defensora dos direitos humanos, mas de modo crítico. “Defendo os direitos humanos para públicos historicamente oprimidos, porque eu entendo que o outro público consegue ter garantido esses direitos humanos. Tem aquele que pode bancar, mas tem aquele que não”, analisa.

A doutoranda chama a atenção que é preciso considerar o recorte de classe e o de raça, independentemente de sua classe social. “Quando tratamos tudo igual, nós não estamos fazendo justiça. Os direitos humanos são para todas as pessoas igualmente, mas quando a gente faz isso não é justo, pois alguns grupos precisam de mais atenção que outros. Você não nasce igual, você nasce diferente, e as condições também são diferentes”, considera Lídia.

Lídia: “quando tratamos tudo igual, nós não estamos fazendo justiça” (Foto: Tatiane Macena)

Em um país como o Brasil, os padrões de beleza eurocêntricos são reafirmados integralmente. Compreender-se como mulher negra e afirmar isso pode ser um processo longo e doloroso. “As pessoas não olham para mim e dizem, ‘ela não é uma mulher preta, ela é uma moreninha, ela é mulata’. E isso me atravessou a infância e a adolescência e eu não entendia. As pessoas se dirigiam a mim dessa forma e de uma maneira deliberada, um corpo hiper-sexualizado”, lembra Lídia.

A assistente social e mestra em Direitos Humanos é categórica: “nós não educamos as meninas para elas entenderem o que são. O nosso corpo é mais aceito por ser de pele mais clara, mas também tem uma violência direcionada para esse corpo. Eu não sou mulata ou morena, sou uma mulher negra. Não tem mais negro nem menos negro, tem negra e negro. Isso é uma narrativa da supremacia branca para nos dividir”, analisa Lídia.

Foi na universidade que Lídia se descobriu negra. Em uma aula de antropologia, ela tinha que repetir um pensamento eurocêntrico, direcionado às cubanas, vítimas de racismo. Quando a professora olhou para Lídia e a perguntou se ela se considerava uma pessoa branca, ela percebeu que sofria racismo desde a infância.

“Um dia, enquanto adolescente, estava na praia com minhas primas brancas e um menino se sentiu à vontade para olhar para mim e dizer que não gostava de preto. Ele ainda disse: ‘não é nada contra você’. Aquilo era racismo, mas eu era uma menina de 11 anos e não entendia”, desabafa Lídia Anjos.

Lídia espalha elementos que remetem a negritude pela casa. (Foto: Tatiane Macena)

Atualmente, Lídia integra o Núcleo Brasileiro Afro Indígena da UFS. Para ela, é possível ver uma quantidade maior de pretos e pretas nas universidades, no entanto, o racismo estrutural ainda reina, e os pretos e pretas precisam se impor.

“Hoje tento recepcionar as meninas quando chegam nesse lugar. Agora tem uma diversidade maior lá dentro. Ninguém nos colocou lá, chegamos porque colocamos o pé na porta. Apesar de merecer, muitas coisas ainda nos são negadas por causa do racismo estrutural”, afirma Lídia, que é julgada por estar sempre envolvida com a luta pelos direitos humanos.

Lídia: “Vivo a minha trajetória toda em função da militância (Foto: arquivo pessoal)

“Vivo a minha trajetória toda em função da militância, e as pessoas dizem que é uma escolha errada. Eu tento passar no concurso, mas ele vai me tirar da rua para me deixar com a cara no estudo, e até hoje para mim é muito difícil. As pessoas me falam para dizer ‘não’ ao movimento social, mas é difícil dizer não quando sei que nossos corpos negros estão sendo descartados pela necropolitica genocida do povo negro. É difícil ficar com a cara no estudo quando os nossos estão sendo assassinados”, ressalta Anjos.

No meio acadêmico, Lídia busca fazer críticas às referências teóricas utilizadas pela universidade, que apesar de boas, são todas brancas. “Tento descortinar o universo novo que não está na minha formação, referenciando teóricos negros que nunca tiveram visibilidade. Hoje, leio Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, para entender que muitas vezes eu olhava as pessoas e achava a fala top, mas acabava sendo silenciada por ser mulher”, diz.

Por muito tempo, Lídia se deixou calar por achar que tinha que se restringir, mas hoje compreende a sua força. Ela convida todo mundo, inclusive homens brancos para lutar contra o racismo e o machismo. “Os brancos e os homens não são inimigos. Eles têm que refletir sobre os seus privilégios. Venho de uma linha que consegue entender que o nosso inimigo é o racista e o machista, então tem espaço para a construção com os brancos antirracistas e antimachistas”, acredita Lídia Anjos.

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