CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
@josecristiangoes
“O governador só vai entregar a Deso, uma empresa do povo de Sergipe, para os empresários, porque ela dá muito lucro. Se desse prejuízo, ele não colocaria à venda, porque os empresários não tinham interesse”, desabafou um empregado da Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso). Ele pede para não ser identificado por temer ser um dos primeiros demitidos com a privatização da empresa.
A fala do empregado da Deso tem fundamento. A companhia é mesmo uma empresa pública enxuta, sólida e superavitária. Essa condição saudável e lucrativa está atraindo empresários para lucrar mais ainda com a venda de água e do serviço de esgoto. “Toda a estrutura foi feita pelos trabalhadores e paga pelo povo. A empresa privada só vem arrecadar”, completou o empregado.
Essa avaliação se sustenta também em números: a Deso fornece mais de 128 bilhões de litros/ano de água potável para quase 2 milhões de sergipanos. Em 2022, a Deso fechou seu balanço com um superávit superior aos R$ 40 milhões. A empresa tem 1.550 trabalhadores efetivos e outros 1.300 terceirizados que executam todas as atividades da área do saneamento diariamente em Sergipe.
“Por qual razão o governador Fábio Mitidieri (PSD), em tão pouco tempo de gestão, quer tanto entregar para a iniciativa privada parte dos serviços de uma empresa estratégica para o desenvolvimento de Sergipe e que dá grande retorno financeiro ao Estado?”, pergunta Silvio Sá, presidente do sindicato que congrega os trabalhadores em saneamento básico do estado de Sergipe (Sindisan).
Além de não dar prejuízo, a Deso também não deve nada ao seu acionista majoritário, o Governo do Estado. Ocorre aqui o inverso: técnicos da empresa estimam que a dívida do governo com a Deso ultrapasse os R$ 70 milhões. “Se o governo pagasse o que deve à companhia, poderíamos investir na resolução de alguns problemas de abastecimento e de coleta de esgoto”, disse Sílvio.
Vale lembrar que a venda da Deso representa a privatização de um bem de consumo essencial à vida na Terra. Qualquer tipo de restrição a esse direito fere a existência da condição humana.
O direito ao acesso à água de qualidade e ao esgotamento sanitário é efetivamente cumprido quando todas as pessoas, independentemente da capacidade de pagamento pelos serviços, tenham acesso pleno a esses serviços.
Números positivos da Deso são gigantescos
Diferente de outras empresas públicas e até privadas, a Deso tem recursos e conta com um planejamento estratégico que busca atingir metas importantes até o ano de 2033.
Por exemplo, para cumprir com as exigências da Lei do Marco Legal do Saneamento e garantir a universalização do saneamento básico até 2033, a Deso já captou recursos da ordem de R$ 520 milhões, entre os anos de 2021 e 2023.
Se o governador entregar a empresa pública para o setor privado, vai também entregar uma captação de recursos já programada pela Deso de valores que chegam a U$ 150 milhões (cerca de R$ 750 milhões) apenas para o ano de 2024.
Além disso, no planejamento da Deso existe a captação de recursos da ordem de mais R$ 300 milhões para o ano de 2026 e mais outros R$ 300 milhões para o ano de 2028.
“Como é que se pode querer entregar esse patrimônio do povo de Sergipe? A nossa companhia tem planejamento e orçamento formulados para os próximos cinco anos, podendo atingir as metas de universalização de água antes do prazo”, avalia Silvio. As metas são: 99% da população sergipana com acesso à água tratada até 2033 e 90% com coleta e tratamento de esgoto, também até 2033.
R$ 520 milhões
em recursos já captados para obras de saneamento entre 2021 e 2023
R$ 750 milhões
em recursos programados para serem captados em 2024
R$ 300 milhões
em recursos programados para serem captados em 2026
R$ 300 milhões
em recursos programados para serem captados em 2028
Deso reinveste seus lucros no Estado e atende pequenas cidades
Muito diferente das empresas privadas, cuja existência somente têm sentido na busca pelo lucro e, muitas vezes, na remessa do lucro para fora do estado e até do país, na Deso, todo o montante que arrecadado é reinvestido na própria companhia.
“Sim, o recurso vai para a reestruturação e obras de saneamento básico, diferente das empresas privadas do setor, que costumam dividir entre seus acionistas a maior parte dos lucros, com poucos investimentos em obras de ampliação do sistema feitos com recursos próprios, o que torna as metas de universalização difíceis de serem alcançadas”, analisa Aécio Ferreira, secretário-geral do Sindisan.
Também muito diferente das empresas privadas, a Deso, por ser uma companhia pública, tem compromisso social, o que faz com que leve água potável e saneamento básico aos pequenos povoados e periferias das cidades. Hoje, 99% das sedes dos 74 municípios sergipanos atendidos pela Deso já têm acesso à água tratada.
Empresas privadas não têm interesse nos pequenos e distantes municípios e povoados porque eles não dariam o lucro esperado. “Isso já acontece onde a privatização do saneamento chegou. Nos contratos de concessão do Governo de Alagoas com as empresas BRK Ambiental, Águas do Sertão e Verde Ambiental, por exemplo, está estabelecido que elas só atenderão com prioridade comunidades com mais de 800 residências”, informa Sílvio Sá.
Pela proposta de “concessão” que o governador de Sergipe defende, a Deso pode até permanecer com os serviços de captação, transporte e tratamento de água, exatamente os processos que apresentam os custos mais elevados e não administráveis, como energia elétrica e produtos químicos, e riscos não gerenciáveis, a exemplo de hidrológicos e climáticos.
Segundo esse modelo defendido por Fábio Mitidieri, a empresa privada que ganhar a “concessão” da Deso ficará com a parte economicamente viável e lucrativa, isto é, distribuição, tratamento dos esgotos e faturamento.
“Na verdade, a empresa privada será uma espécie de mera atravessadora varejista, pegando água tratada e barata para revender – com aumento tarifário – aos consumidores sergipanos, lucrando com isso”, afirma Sílvio Sá.
Ele acredita que esse modelo inviabiliza a manutenção dos investimentos de implantação e ampliação dos sistemas produtores e adutores de água pela Deso, que passará a necessitar de recursos do Governo de Sergipe, recursos esses que serão retirados de outras áreas, como saúde, educação, segurança e outras.
Concessão onerosa da Deso é uma privatização disfarçada
Apesar de ter prometido em campanha que não iria privatizar a Deso, meses depois de tomar posse, o governador Fábio Mitidieri aprovou na Assembleia Legislativa um projeto de lei que instituiu o Programa de Parcerias Estratégicas (PPE). Por meio dele pode ocorrer a “concessão por 35 anos” dos serviços da Deso para empresas privadas.
Trata-se de uma privatização disfarçada. A “concessão por 35 anos” significa privatizar a água e os serviços de esgotamento sanitário dos sergipanos durante esse período, ficando sob controle total de uma empresa privada que vai monopolizar esses serviços e controlar o valor das tarifas.
Esta é a terceira reportagem da Mangue Jornalismo da série sobre a água como um direito essencial à vida e sua relação com a privatização da Deso.
Leia AQUI a primeira: Governo de Sergipe vai privatizar a água. Leis nacionais e internacionais garantem que a água potável é direito humano essencial e dever do Estado. E AQUI você acessa a segunda reportagem: Contas de água e esgoto aumentaram muito onde o serviço foi privatizado. Especialistas alertam que tarifas em Sergipe vão subir com a venda da Deso.
Amanhã será lançada a Frente Sergipana em Defesa da Deso Pública
Amanhã, 19, às 7h30, o Sindisan e o mandato do deputado federal João Daniel (PT/SE) realizará um café da manhã em sua sede, no bairro Getúlio Vargas, em Aracaju, para o lançamento da Frente Sergipana em Defesa da Deso Pública. O objetivo é agregar as forças políticas, movimentos social, sindical e popular e todos aqueles que apoiam a luta contra o projeto de privatização da água e do saneamento básico em Sergipe.
Na atividade, o presidente do Sindisan irá expor dados sobre a real situação da Deso e números que comprovam a inviabilidade econômica da proposta defendida pelo governador Fábio Mitidieri de concessão da companhia à iniciativa privada. “Trata-se do mesmo modelo que foi adotado em Alagoas e que comprovadamente deu errado, com enormes custos para a população alagoana e para o Estado”, alerta Silvio.
Segundo ele, os exemplos que existem pelo Brasil dos processos de privatização por concessão total ou parcial são danosos e impactantes para a população, especialmente a camada mais pobre. “O momento é de unidade e de buscar o apoio de todos aqueles que defendem a Deso pública, água e saneamento como direitos da população, não como mercadorias”, afirma o sindicalista.