O ano de 2024 é de eleição para prefeitos e vereadores. Em Aracaju, o prefeito Edvaldo Nogueira (PDT) promete inaugurar este ano o Residencial Mangabeiras Santa Dulce dos Pobres, no bairro 17 de Março, onde devem ser entregues 1300 moradias.
O novo conjunto habitacional foi construído na Reserva Extrativista Missionário Uilson de Sá. Lá, a Prefeitura de Aracaju derrubou mais de 500 árvores, a exemplo de pés de mangaba, licuri (adicuri), caju e outras frutas. Além disso, o processo das obras foi marcado por inconsistências em relação ao avanço sobre a área tradicional das mangabeiras.
No período das obras, extrativistas denunciaram que foram desrespeitados por agentes municipais, também acusados de violar direitos e intimidar a comunidade. Uma catadora afirma que teve mais de 60 pés de mangaba arrancados e a prefeitura alegou que “foi sem querer”. Também ocorreu a derrubada do abrigo que servia para as catadores.
A área da construção do residencial é, há anos, palco de diversos conflitos envolvendo defensores ambientais, sem teto, extrativistas e a gestão municipal. Em 2014, o espaço que pertencia à União e foi cedida à Prefeitura de Aracaju, foi ocupado por manifestantes que lutavam por moradia.
Durante seis anos, extrativistas e sem tetos dividiram a reserva, até que a prefeitura concedeu auxílio moradia aos ocupantes, visando construir um empreendimento no local. Após a saída, a batalha entre extrativistas e a prefeitura se intensificou. Os defensores do meio ambiente reivindicavam o direito de uso pela comunidade tradicional.
Segundo estudo feito pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a reserva é a última comunidade que vive do extrativismo de mangaba em Aracaju. Os pés dessa fruta estão seriamente ameaçados de desaparecimento e a existência delas depende das catadoras e catadores.
O Mapa do extrativismo da mangaba em Sergipe revela que existem 72 localidades dessa fruta e elas são fundamentais para a renda familiar de 1.776 famílias do litoral sergipano. Em visita feita em dezembro de 2021, técnicos da Embrapa identificaram pés de mangabas com idade estimada entre três e 80 anos, e até mesmo plantas centenárias.
Direitos negados
O artigo 216 da Constituição Federal é nítido: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; bem como os modos de criar, fazer e viver”
A maneira de viver da comunidade extrativista das mangabeiras Missionário Uilson de Sá é patrimônio brasileiro. Além disso, o Governo do Estado, em 20 de janeiro de 1992, por meio do decreto n.º 12.723, instituiu a mangabeira como árvore símbolo de Sergipe.
Em 2015, foi aprovado um projeto de lei de autoria do deputado João Daniel que proibiu o corte e a derrubada de mangabeiras em Sergipe para qualquer fim, exceto quando executados pelos órgãos especializados por necessidade e interesse público, previamente justificado junto ao Ministério do Meio Ambiente.
“Proteger os direitos de povos e comunidades tradicionais é indispensável e isso não se faz com redução de seus territórios. Pelo contrário, comunidades tradicionais são reconhecidas tanto pelo Decreto 8750/2016 quanto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e são consideradas pela ONU patrimônio que deve ter preservados seus territórios e garantida a consulta prévia para toda ação que se pretenda nessas áreas”, destaca Lídia Anjos, assistente social e militante dos direitos humanos.
Vale destacar ainda que a restinga, ambiente no qual a reserva das mangabeiras está inserida, é considerada Área de Preservação Permanente (APP) conforme o Código Florestal (Lei Federal no 12.651/2012). Além disso, no diagnóstico municipal realizado para o vigente Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Aracaju, recomenda-se que “a legislação municipal não pode flexibilizar o uso e ocupação de APPs de forma menos restritiva do que está previsto em legislações federais (Lei 12.651 de 2012)”.
As mangabeiras precisam ser cuidadas
Na reserva extrativista Missionário Uilson de Sá, mangabas e mangabeiras são tratadas com respeito. Desde a infância, os filhos das extrativistas têm contato com o fruto e são ensinados a cultivar a mangaba. O modo de catar tem sido transmitido de geração em geração há décadas.
Hildo dos Santos tem 77 anos e faz 40 anos que cata mangaba. Ele e a esposa, que também é extrativista, ensinaram aos filhos essa prática. Cheio de energia, Hildo levanta antes de o sol nascer segue para a reserva. Ao lado do filho, Emerson Cruz, ele explica o significado do visgo da fruta. “Quando uma mangaba é colhida antes de amadurecer, ela fica amarga. Tem que pegar a fruta ‘de caída’ porque o leite ficou preso”, diz Hildo. Emerson complementa dizendo que “quando a mangaba cai, é preciso esperar um período antes de colocar dentro da geladeira, porque assim dá tempo do leite virar uma espécie de mel. Quando a gente faz isso, o leite da mangaba que se transformaria em visgo cristaliza e a mangaba fica doce”.
Zenaide não consegue ficar muito tempo longe da reserva onde seus filhos (entre eles o missionário Uilson de Sá) foram criados a partir da catação de mangaba. Ela trata a fruta como uma entidade, usando para se confessar e desabafar. Dona Zenaide acredita no poder curativo do leite da mangaba, mas diz não gostar de extrair porque a árvore sente dor. “Se tem alguém muito doente eu peço licença a ela e tiro, mas não gosto de tirar porque machuca a mangabeira”, diz a extrativista.
Ela e as demais catadoras sentem o forte impacto da construção do residencial da prefeitura na reserva extrativista. Zenaide conta que após o início das obras, a quantidade de mangabas catadas diminuiu bastante. Nessa época do ano, ela conseguia dez baldes; agora só cata para encher dois baldes, no máximo.
“Aí você vê o quanto a mangaba caiu para a gente depois da retirada das árvores. Eu tenho certeza que é por causa do calor e da falta dos pés da mangabeira que tiraram ao redor, porque elas não gostam. Elas não gostam de abafado, elas gostam de viver à vontade. Tanto que você muda um pé de mangabeira para outro lugar, ele não pega mais, ele morre”, ressalta Zenaide.
O ataque contra as mangabeiras é mais amplo
Segundo Raquel Fernandes, analista de Transferência de Tecnologia da Embrapa Tabuleiros Costeiros, a construção do empreendimento Irmã Dulce pela Prefeitura de Aracaju prejudica não só as mangabeiras, mas também outras espécies nativas do ecossistema.
“O desmatamento dessas espécies pode causar alterações no microclima (aumento de temperatura, redução de umidade), desaparecimento dos mananciais de água (complexo de lagoas), redução da diversidade genética de plantas e animais, aumento da incidência de pragas e doenças, interferência no modo de vida das comunidades tradicionais, aumento de conflitos sociais e migrações”, pontua Raquel.
A analista explicou que as mangabeiras também são impactadas com a drástica redução de insetos polinizadores, como borboletas, mariposas (predominantes) e algumas poucas espécies de abelhas, das quais a mangabeira é totalmente dependente, e complementou dizendo que a reserva proposta pela prefeitura não pensou na “zona de amortecimento”.
“A zona de amortecimento é a área destinada para atenuar os efeitos de bordas, ou seja, os impactos negativos causados pelo entorno das Unidades de Conservação. No caso da Reserva Extrativista Mangabeiras Irmã Dulce dos Pobres, não foi verificada a destinação de uma zona de amortecimento”, disse a analista.
Entre uma liminar e outra
Como descrito no início desta reportagem, no ano de 2016, um grupo de pessoas em busca de moradia ocupou a área da reserva. Lá, permaneceram por aproximadamente seis anos e nenhum pé de mangaba foi arrancado.
Assim que os moradores da ocupação foram obrigados a deixar o local, agentes da Prefeitura de Aracaju passaram a agir de maneira hostil para com os extrativistas, principalmente arrancando vários pés de mangaba e outras espécies da reserva e da área de amortecimento.
Em fevereiro de 2019, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) recomendou à Superintendência do Patrimônio da União (SPU) que não cedesse a área da reserva até que os direitos dos extrativistas, enquanto comunidade tradicional, fossem garantidos.
Em uma perícia, o MPF/SE identificou a presença de catadores e catadoras de mangaba na região desde a década de 1950, e defendeu o direito das comunidades tradicionais usarem a área na atividade econômica e para a preservação da cultura e história, que são garantidos pela legislação brasileira e por normativos internacionais.
No dia 24 de julho de 2020, a prefeitura retirou as famílias da ocupação para o início da construção das moradias. Posteriormente, a Defensoria Pública entrou com uma ação judicial em favor das famílias sem teto para que elas fossem realocadas com o auxílio moradia. Naquele mesmo ano, o MPF/SE moveu uma ação civil pública visando reconhecer a importância de conservação das áreas nativas de mangabeiras.
Na ação, a Prefeitura de Aracaju, a Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) e a Caixa Econômica Federal foram condenadas pela Justiça Federal a se absterem de autorizar ou realizar qualquer novo empreendimento imobiliário na Zona de Expansão. Estes órgãos deveriam corrigir os diversos danos ambientais na localidade que abriga a reserva e prevenir futuros danos.
De acordo com a decisão, a gestão do prefeito Edvaldo Nogueira estava ignorando as questões sanitárias e ambientais em toda a Zona de Expansão. Foi ordenada a paralisação imediata de qualquer ordem de serviço ou de procedimento de construção na área da reserva, sob pena de multa caso descumprissem a ordem.
Em agosto de 2020, o MPF/SE informou que a Prefeitura de Aracaju estava atuando na área e pediu nova liminar para interromper a conduta do Município. O pedido foi negado, pois “a solicitação não tinha relação com o processo”. Em 08 de agosto de 2020, a prefeitura e a Emurb, segundo o relato do MPF/SE, derrubaram dezenas de árvores nativas de mangabeiras, licuris e cajueiros.
Após a derrubada, em 12 de agosto do mesmo ano, foi movida uma Ação Civil Pública com base na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que obriga a consulta da comunidade tradicional antes de qualquer intervenção pública ou privada no território.
Apesar das ações judiciais em tramitação, em janeiro de 2021, o prefeito Edvaldo Nogueira assinou a ordem de serviço para a construção das unidades habitacionais. No entanto, no mesmo dia desse ato político, chegou uma decisão para paralisar imediatamente a obra. O gestor do município recorreu e em pouco tempo conseguiu uma decisão favorável do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).
Segundo consta nos autos, o TRF5 teria entendido que a consulta da comunidade como determina a norma internacional da OIT era desnecessária. Assim, as obras foram retomadas e o processo ainda segue em andamento.
No dia 04 de maio de 2022, em pleno o período da safra da mangaba, uma das áreas da reserva foi invadida novamente pela gestão municipal e extrativistas denunciam que mais dez pés de mangabeira foram arrancados. Contraditoriamente, um mês antes dessa ação, a Prefeitura de Aracaju tinha anunciado a criação de uma Reserva Extrativista (Resex).
Um parque para visitação e falta de diálogo
O prefeito Edvaldo Nogueira disse que “conseguiu a autorização da construção do residencial” e assegurou que o projeto incluiria uma área de reserva para a preservação das mangabeiras, criada mediante diálogo. Ele afirmou que a reserva será semelhante ao Parque da Sementeira. Os extrativistas dizem que em momento nenhum a prefeitura ouviu as petições das catadoras e que a reserva já é aberta para a comunidade.
A lei brasileira de unidades de conservação estabelece como principal função a proteção de comunidades tradicionais que realizam o trabalho extrativista. Desta forma, ao ceder a área para a construção do conjunto habitacional, a SPU exigiu da prefeitura a preservação das mangabeiras e do trabalho da comunidade extrativista. A reserva foi criada apenas por conta dessa exigência.
No entanto, para que a reserva cumpra sua função ela deve ser administrada e cuidada pela comunidade tradicional. No caso das mangabeiras, já existe a Associação Padre Luís Lemper, que há décadas transmite saberes de uma geração para outra.
Contudo, segundo membros da associação, a Prefeitura de Aracaju tem articulado maneiras de controlar a localidade. De todo modo, a comunidade tradicional das mangabeiras, que cumpre papel na preservação do patrimônio histórico e imaterial, segue ameaçada.
De acordo com os extrativistas, a falta de transparência e diálogo por parte da prefeitura é constante, por isso eles resistem às investidas da gestão municipal. Um dos exemplos é o nome da Resex, que a gestão quer “Dulce dos Pobres”, ao passo que a comunidade já entrou em consenso que será “Missionário Uilson de Sá”.
Para que a Resex fosse criada, a prefeitura deveria realizar um plano de manejo, que precisaria ser discutido entre o órgão administrador e a comunidade. Apesar disso, catadores e catadoras de mangaba dizem que a gestão municipal continua sem conversar com eles.
O plano de manejo tem a finalidade de estabelecer as normas e a delimitação das unidades de conservação. Ele visa o futuro da reserva extrativista que deve, por direito, ser cuidada pelos filhos e netos de extrativistas de mangaba.
Sobre a falta de diálogo, Lídia Anjos confirma que a Associação Padre Lemper protocolou ofícios desde 2018 solicitando espaço de diálogo com o prefeito, mas esses pedidos nunca foram respondidos.
“Foram várias as manifestações e atos públicos para dar visibilidade aos posicionamentos contrários da comunidade à entrada das máquinas nas áreas da reserva. A criação da Resex pela prefeitura sem a presença de extrativistas de mangabas também se configura em outra violação grave de direitos humanos”, afirma Lídia Anjos.
Para extrativistas e apoiadores, a gestão da prefeitura é desonesta quando diz que realizou audiência pública para ouvir a comunidade, porque isso não ocorreu. De acordo com eles, na audiência, foi dificultada a entrada de representantes das mangabeiras, enquanto a prefeitura apresentou o projeto de avanço na reserva já pronto. Os moradores da ocupação questionaram se não havia outro lugar para fazer a moradia.
Apesar da ameaça à sobrevivência das famílias e ao modo de cata tradicional da mangaba em Aracaju estar em risco devido às imposições da especulação imobiliária, as futuras gerações estão se preparando. As crianças estão sendo preparadas e até brincam olhando para o chão, tomando cuidado para não pisar no fruto que garantirá a renda de suas famílias.
Elas fazem questão de dizer que são netas, netos, sobrinhos e filhas de extrativistas de mangaba. Apesar da pouca idade, sabem que estão em guerra e dizem que vão permanecer juntas até que vençam. Não se sabe ao certo se o entendimento de “estar em meio a uma guerra” veio a partir dos ensinamentos ou das experiências traumatizantes que tiveram durante as investidas da prefeitura, que não tinham dia, hora e nem respeito por idosos e crianças.
Quem os protege
Nessa guerra distante de acabar, somam forças extrativistas, ativistas, pesquisadores, militantes políticos, estudantes, sindicalistas, movimentos sociais e religiosos e outros representantes da sociedade civil.
Além das árvores e das áreas, uma das maiores perdas nessa luta ocorreu em novembro de 2022: a morte do então líder da reserva das mangabeiras, o missionário Uilson de Sá.
Ele lutava incansavelmente na defesa dos direitos dos extrativistas. Toda vez que sentia que a reserva estava ameaçada, mobilizava apoiadores, liderava manifestações e chamava a imprensa.
Uilson sofria com ameaças e pressão para que desistisse da luta em defesa das mangabeiras. Em 2018 foi colocado no Programa Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos por solicitação do MPF/SE, ainda assim, em 28 de novembro de 2022, foi encontrado morto com marcas de violência. Mãos e pés estavam amarrados.
O ativista foi visto pela última vez no domingo (27/11/22) quando esteve com amigos e familiares. Depois de tentativas de contato sem sucesso, familiares foram até a casa dele e se depararam com o corpo do ativista.
Um inquérito policial foi instaurado e após um mês se concluiu que Uilson havia tirado a própria vida, a partir da prática de autoerotismo. Familiares e apoiadores nunca acreditaram nessa versão.
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