A Mangue Jornalismo sempre apresenta várias reportagens do desastre da política ambiental em Sergipe. Isso não é exagero. Os fatos e dados são inúmeros. Por exemplo, de janeiro de 2021 até o último dia 16 de setembro deste ano, foram criadas e registradas no Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC) 98 unidades de conservação (UCs) municipais no Brasil, nenhuma delas em Sergipe.
Os 75 municípios sergipanos não criaram nem registraram no CNUC nos últimos quatro anos nenhum parque natural, área de proteção ambiental, área de refúgio de vida silvestre, monumento natural, área de relevante interesse ecológico, reserva biológica e estação ecológica. Nada.
Esse descaso revela o menosprezo de prefeituras, câmaras de vereadores e outros órgãos de controle mesmo diante da crise climática e da perda violenta da biodiversidade em Sergipe. Por exemplo, a Mangue Jornalismo revelou no último dia 12 que Sergipe tem apenas 20% de sua vegetação nativa, sendo o estado de pior proporção de preservação ambiental do país.
No entender de Frances Andrade, bacharel em Engenharia Florestal e mestre em Ciência Florestal (UFS), os esforços para frear o desmatamento, proteger a biodiversidade e consequentemente frear a crise climática passam longe do estado, e isso se reflete na ausência de novas Unidades de Conservação e outras áreas protegidas.
“É inadmissível continuar nesse caminho, exigimos ações imediatas e esforços na proteção dos biomas da Caatinga e Mata Atlântica através da criação de novas unidades de conservação e de políticas públicas eficazes e justas para combater a crise climática, frear o processo de desertificação e da perda de biodiversidade”, cobra Frances.
Autonomia de ação ambiental das prefeituras
Vale registrar que a legislação brasileira garante autonomia para as prefeituras criarem unidades de conservação dentro do seu território, seja por iniciativa da câmara de vereadores seja por decisão política do prefeito. Além disso, podem ser criadas ainda Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), também reconhecidas em âmbito municipal, mas como o próprio nome diz, criadas por iniciativa privada.
O levantamento de criação e registro de Unidades de Conservação nos municípios brasileiros foi realizado pelo O eco e confirmado pela Mangue junto ao CNUC. De 2021 até setembro deste ano, foram criadas 98 unidades em 17 estados brasileiros, e Sergipe não aparece. Os estados com mais UCs implantadas foram Mato Grosso (23), Rio de Janeiro (22) e Goiás (13). Veja na reportagem de Duda Menegassia a relação completa.
No Nordeste, os municípios alagoanos de Arapiraca, Maragogi e União dos Palmares tiveram unidades de conservação criadas e registradas. Na Bahia, duas UCs foram implantadas no município de Saúde. Em Pernambuco, por exemplo, foi criada em Paranatama o Parque Municipal Natural da Serra do Maracujá. Em Campo Maior, no Piauí, foi implantado o Parque Municipal Horto Florestal.
Das 98 UCs criadas e implantadas no Brasil entre 2021 e 2024, os parques naturais são maioria (38), seguido pelas Áreas de Proteção Ambiental (APAs, com 26) e, mais distante, pelos Refúgios de Vida Silvestre (11), Monumentos Naturais (10), Áreas de Relevante Interesse Ecológico (8), Reservas Biológicas (3) e Estações Ecológicas (2).
O município brasileiro que mais criou unidades de conservação nos últimos quatro anos foi Rondonópolis, no sudeste de Mato Grosso, com a surpreendente quantidade de 19 UCs.
Na relação entre os biomas, 41 das Unidade de Conservação criadas estão na Mata Atlântica; 36 no Cerrado; seis na Amazônia; quatro na Caatinga; uma Marinha e uma no Pampa. Há ainda nove UCs que protegem dois biomas em seu território, com destaque para a combinação de ambiente Marinho e Mata Atlântica, que caracterizam seis das UCs municipais criadas no período.
Myrna Landim, professora titular aposentada/voluntária da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenadora do Núcleo de Ecossistemas Costeiros (CNPq/UFS), afirma que uma estimativa de Sergipe só ter 20% de remanescentes de vegetação nativa é extremamente preocupante, porque isso talvez não leve em conta a qualidade dessas áreas que resistem, seu grau de preservação e, consequentemente, sua capacidade de desempenhar adequadamente os serviços ecossistêmicos tão necessários para o equilíbrio ambiental.
“Infelizmente, o contexto de emergência climática que vivemos parece ter sido suficiente para compreendermos a interconexão entre biomas e ecossistemas e a necessidade de conservação da cobertura vegetal nativa para a nossa sobrevivência”, lamenta a professora.
Situação em Sergipe é desanimadora
Ricardo Mascarello, arquiteto e urbanista e conselheiro federal por Sergipe do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/Brasil), avalia que a retrospectiva de Sergipe relacionada à preservação e conservação ambiental deixa muito a desejar. “Não vimos nenhuma ação efetiva em prol do meio ambiente natural. Pelo contrário. Sergipe, ao invés de potencializar áreas de conservação ou mesmo a criação de parques ecológicos, vem permitindo uma devastação ambiental alarmante, principalmente relacionada aos novos empreendimentos imobiliários e de infraestrutura urbana”, disse Ricardo.
O arquiteto e urbanista chama a atenção que em plena emergência climática é preciso que as autoridades responsáveis em Sergipe mudem sua lógica de desenvolvimento. “Sustentabilidade só se constrói com ações presentes para um futuro promissor. Precisamos imprimir um ritmo de licenciamentos mais rigorosos, mapeamento de novas áreas de preservação permanente, a criação de parques e corredores verdes, e, principalmente uma visão holística definitiva para a transição ecológica. É preciso salvar nossos ecossistemas naturais de fauna e flora regenerando a Mata Atlântica, a Caatinga. Clamamos pela vida de nosso estado e do planeta”, defende.
Para Mauro Luiz Cibulski, agente da Cáritas e coordenador na Rede Balaio de Solidariedade, além da não criação de unidades de conservação, o ente público, especialmente o Governo do Estado, tem agido para destruir e flexibilizar várias lei ambientais. “A Assembleia Legislativa [de Sergipe] aprovou um projeto de lei que trata do zoneamento costeiro, criou um conselho formado quase todo pelo governo e flexibilizou a legislação para a destruição dos manguezais com a criação de camarões, que vai da Barra dos Coqueiros até Brejo Grande”, denuncia Mauro.
O ativista da agroecologia disse que a lógica é a invasão dos manguezais, grande parte em áreas da União, para criação de camarão e construção de condomínios de luxo, tudo sem licença. Depois de destruído tudo tentam algum acordo. “O Estado e as prefeituras em lugar de agir para preservar, criar unidades de conservação, têm colaborado para destruir, atendendo ao interesse do grande capital”, reforça o coordenador na Rede Balaio de Solidariedade.
A não criação de unidades de conservação municipais em Sergipe nos últimos quase quatro anos demonstra, no entender do ambientalista Joseilton Nery, do Movimento Jabotiana Viva, a insensibilidade ou mesmo a irresponsabilidade dos gestores públicos que prevaricam e se omitem no tocante aos seus deveres com a causa ambiental.
“Concomitantemente isso revela também a força do capital que age abertamente e nos subterfúgios, principalmente os mercados da construção civil, imobiliário e do agronegócio que disputam e possuem interesse em áreas da Mata Atlântica, de regiões litorâneas, manguezais e do semiárido agricultável, que deveriam ser protegidas pelo poder público, mas que se omite ou atua para fragilizar a legislação ambiental em benefício desses mercados”, afirma Joseilton Nery.
Para a professora Myrna Landim, “é preocupante a ausência de criação de novas unidades de conservação no estado, mas creio que ainda mais grave é o fato de que temos UCs em Sergipe que não ‘saíram do papel’ [os chamados ‘parques de papel’] e, mesmo unidades que chegaram a contar com alguma forma de gestão, não possuem atualmente gestores e conselhos atuantes”, avalia a professora.
Aracaju tem duas promessas ainda não devidamente cumpridas
Apesar do prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira (PDT), ter assinado em 19 de abril de 2022 o decreto nº 6.775 “criando a Reserva Extrativista Mangabeiras Irmã Dulce dos Pobres”, o fato é que ela não saiu do papel como uma real unidade de conservação. Em maio do ano passado, por exemplo, a própria prefeitura informava que ainda faria estudos para a reserva extrativista ser implantada conforme a legislação, com plano de manejo. “Hoje, as equipes técnicas se debruçam na formação do plano de manejo. Para isso, a Sema [Secretaria de Meio Ambiente] está em tratativas com a UFS”, informava o secretário municipal de Meio Ambiente, Alan Lemos.
Vale destacar que a criação da Reserva Extrativista Mangabeiras Irmã Dulce dos Pobres está cercada de polêmica. A Mangue Jornalismo esteve no local e constatou várias denúncias, como a derrubada de mais de 500 árvores, a exemplo de pés de mangaba, licuri (adicuri), caju e outras frutas. Uma catadora afirma que teve mais de 60 pés de mangaba arrancados, e a prefeitura alegou que “foi sem querer”. A prefeitura alegou que as ações eram importantes porque seriam construídas na área um conjunto habitacional para 1300 famílias. Leia a reportagem da Mangue sobre o assunto.
Mesmo cercado pelo concreto e com a supressão da mata e dos pés de mangaba, o que resta da área verde no local ganhou o nome de Reserva Extrativista das Mangabeiras Missionário Uilson Sá, liderança que estranhamente apareceu morta quando os processos de resistência estavam mais tensos.
A outra promessa da Prefeitura de Aracaju é a criação da Área de Relevante Interesse Ecológico do Lamarão, na zona norte da cidade. Lá também existem uma série de polêmicas como denúncias de destruição de manguezal e até aterro de riacho. A prefeitura contratou empresas para fazer reuniões de sensibilização da comunidade para que ela não reclamasse – o que deu certo. A promessa era a implantação de um “parque” que delineava uma área de grande atividade de pescadores e marisqueiras. Nem a obra nem a Área de Relevante Interesse Ecológico do Lamarão foi entregue.
Prefeitura de Aracaju informa que criou duas UCs e um anexo ao Parque Poxim
A Mangue entrou em contato com a Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Aracaju (Sema) e recebeu uma nota afirmando que, “de janeiro de 2021 a setembro de 2024, a gestão do prefeito Edvaldo Nogueira criou duas novas unidades: a Área de Relevante Interesse Ecológico do Lamarão (102 hectares), com o decreto nº 7.663 de 5 de junho de 2024, e a Reserva Extrativista das Mangabeiras (9,5 hectares), com o decreto nº 6.775 de 20 de abril de 2022”.
Segundo a nota, além das duas UCs, “foi criado um anexo ao Parque Natural Municipal do Poxim (Decreto nº 7.475 de 11 de janeiro de 2024) e elaborado o Plano de Manejo, que é o principal instrumento de gestão das Unidades de Conservação, no qual constam a caracterização da unidade, o zoneamento com as respectivas normas e os programas de gestão. Com esse anexo, o local passou de 174 hectares para 191 hectares”.
Informa a Sema que “os três locais juntos somam 300 hectares de área preservada em Aracaju, sobretudo em áreas de manguezais. A Reserva Extrativista possui um Conselho Deliberativo, modelo de gestão definido pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A ideia é que esse conselho seja instituído em todas as unidades. Ele é um comitê gestor com a participação da sociedade para que a administração pública possa integrar de forma efetiva as unidades e ter uma política de conservação na capital sergipana”.
Sobre o não registro pela Prefeitura de Aracaju das duas áreas junto ao Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), a nota da Sema informa que “as unidades de conservação municipais são criadas e implementadas por ato do poder executivo, ou seja, decreto do prefeito (Art. 22 Lei Federal 9.985/2000). O Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC), de acordo com a referida Lei Federal, não é prerrogativa para oficializar a criação de unidades de conservação. O CNUC tem o objetivo de criar um banco de dados com informações padronizadas das unidades de conservação geridas pelos três níveis de governo”.