OSNAR GOMES DOS SANTOS, especial para Mangue Jornalismo
(osnar.gomes@hotmail.com)

Este é o quarto artigo do Projeto Mangue Jornalismo História e que trata da ditadura militar e a Diocese de Propriá, no Baixo São Francisco, em Sergipe.
No ano de 1973, o bispo de Propriá dom José Brandão de Castro assinou um dos textos mais radicais da Igreja Católica contra a situação do país. O documento se chamava Eu ouvi os clamores do meu povo, também conhecido como o Manifesto dos Bispos do Nordeste, publicado em 06 de maio daquele ano.[i]
Nesse período, a ditadura militar ainda colhia os louros do chamado “milagre econômico”. O “milagre” foi o resultado do sucesso das metas de desenvolvimento econômico da tecnocracia da ditadura. Vale mencionar os números apresentados por José Paulo Netto em sua pesquisa. Segundo ele, entre os anos de 1968 e 1973, houve uma estabilização da inflação. Entre 1969 e 1973, o PIB per capita aumentou em 51% e o crescimento econômico se processou a taxas muito altas.[ii]
Resultados exitosos, mas José Paulo Netto reconheceu que os anos do “milagre” comprovaram que a ditadura atendia aos interesses dos grandes proprietários e dos grupos monopolistas.[iii] Estava certo. Os anos do “milagre” mantiveram o arrocho salarial e canonizaram a concentração de renda.
De acordo com o sociólogo Otávio Ianni, o favorecimento do Estado à acumulação monopolista de capital acarretou “tanto o desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção como a crescente subordinação real do trabalho ao capital”.[iv] Eram as contradições do “milagre”.
A crítica do Eu ouvi os clamores do meu povo ao modelo econômico da ditadura
Eu ouvi os clamores do meu povo apresentou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), além de pesquisa sobre distribuição de renda no Brasil. Chegou a conclusões indigestas para a ordem estabelecida.
Sempre usando as aspas ao falar do “milagre”, o documento o caracterizou enquanto uma “maldição para aqueles que não o pediram”. Favorecia os “não-necessitados” e, em seu rastro, ficava o empobrecimento relativo e absoluto do povo.[v] Nesse sentido, o “Manifesto” se traduziu num testemunho incendiário contra o maior galardão da ditadura até então.
O documento abordou questões do âmbito político, econômico, educacional, habitacional e trabalhista. Destrinchou temas ligados à saúde pública, doenças contagiosas, que atingiam os mais pobres, à fome e ao aumento do índice de mortalidade infantil; condenou as estruturas econômicas e sociais brasileiras, segundo eles, “edificadas sobre a opressão e a injustiça”; falou sobre o capitalismo dependente brasileiro.
Claramente, houve um flerte com a teoria da dependência de matriz marxista e um abandono relativo das análises de tipo desenvolvimentista. O êxodo rural, o problema da terra e a marginalização do homem do campo tiveram o seu espaço no documento. Os desequilíbrios regionais no país, em detrimento da região Nordeste, ganharam análises detalhadas.[vi]
O documento condenou postura passiva da igreja e defendeu ruptura do modelo capitalista
Eu ouvi os clamores do meu povo condenou a postura passiva da igreja. Esta foi acusada de estar, não raras vezes, se ombreando com “os detentores da dominação cultural, social, política”. Estaria ela, em muitas ocasiões, se identificando “mais com os dominadores do que com os dominados”. Sua configuração piramidal fazia com que os seus ministros “falassem do alto dos púlpitos para um povo que os escutava passivamente”.
Por fim, o documento afirmou que, dentro da cultura dominante, a igreja tinha se tornado, então, “assistencialista, atrasando, consequentemente, por vezes, a marcha do Povo para se libertar”.[vii]
Os signatários do texto se lembraram de velhos ensinamentos conciliares e de teologias pré-conciliares que rejeitavam a ideia de uma Igreja separada do mundo.
O flerte com categorias de corte marxista apareceu na defesa de que “o processo histórico da sociedade de classes e a dominação capitalista conduzem fatalmente ao confronto das classes”. No documento, isso aparece como um fato, cada vez mais, negado pelos opressores, mas afirmado na própria negação.[viii]
Apontou que as massas oprimidas dos operários, dos camponeses e dos subempregados tomavam conhecimento desse fato, assumindo uma nova consciência libertadora.
Próximo de suas conclusões finais, um comentário profundo e radical alardeava que: “A classe dominada não tem outra saída para se libertar, senão através da longa e difícil caminhada, já em curso, em favor da propriedade social dos meios de produção”.[ix] Essa afirmação suscitou os maiores alardes no Serviço Nacional de Inteligência (SNI), sendo um dos dois trechos classificados pelos informantes do SNI como “dignos de atenção”.[x]
O lançamento de um documento desses no auge do “milagre econômico” e no momento em que a oposição à ditadura beirava o raquitismo político traduz uma corajosa postura de elementos do episcopado brasileiro. O estremecimento entre esses setores da Igreja e o Estado cresceu após a sua publicação.
Eu ouvi os clamores do meu povo foi um texto nauseante para os títeres da ditadura. Por isso, uma série de operações foi montada a fim de tirar de circulação o documento, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Os órgãos de vigilância redobraram a sua atenção para a crise entre Igreja e Governo.
Os espiões da ditadura levantaram informações os signatários do documento
Os informantes da Agência Salvador (ASV/SNI) encaminharam para a Agência Central (AC/SNI) uma cópia do Eu ouvi os clamores do meu povo. O folheto foi obtido por um informante que tinha acesso ao Mosteiro de São Bento, localizado na capital da Bahia.
Os informantes do SNI deram este perfil ao Eu ouvi os clamores do meu povo: “pretende ser uma análise fria da realidade nordestina e, ao mesmo tempo, um tremendo libelo contra o Governo Federal”.[xi] Além disso, os bispos assinantes foram classificados enquanto o “clero ‘progressista’ da região, encabeçados por D. Hélder Câmara”.

Importante ressaltar que, alguns meses depois da publicação do documento, informantes da polícia política levantaram várias informações sobre a presença de dom Hélder na Diocese de Propriá. A ligação de dom Brandão com o arcebispo de Olinda e Recife ampliou as suspeitas da ditadura quanto à atuação do bispo de Propriá na região.



Num outro documento secreto, do ano de 1973, da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça (DSI/MJ), podemos entender um pouco o que os informantes dos serviços de inteligência entendiam como “clero progressista”.
Diferente do “clero pseudo-progressista”, que “vacila na hora da ação”, o “clero progressista” seria composto por aqueles “que estão dispostos a correr alguns riscos e se comprometem na aventura de uma ação renovadora”.[i] O DSI/MJ esboçou esse importante documento secreto a fim de identificar o modus operandi do “clero progressista” no Nordeste.
Os informantes comentaram sobre a situação da Igreja no país, especialmente no Nordeste. Criticaram a formação de uma “Nova Teologia”, que seria supostamente responsável pela “rebeldia clerical”.[ii] Também foi elaborado um estudo sofisticado sobre a guinada progressista da Igreja na América Latina.
Foram apresentados organogramas que expunham as influências das renovações teológicas europeias na Igreja latino-americana.
No tocante à “Igreja progressista” no Brasil, o documento do DSI/MJ deu enfoque ao que entendia enquanto “os principais líderes no Nordeste”. Apareceram dois nomes do Estado de Sergipe. Um da diocese de Propriá: o padre Domingos Puljiz. O segundo nome era o do arcebispo de Aracaju, dom Luciano Cabral Duarte, que apareceu como monsenhor Luciano.
Não deixa de ser curioso que o nome de dom Luciano, sabidamente ligado à ditadura, aparecesse na lista. Isso só demonstra as generalizações e simplificações feitas pela serviços de inteligência sobre a complexidade das alas internas da Igreja Católica. Além de revelar que os serviços de inteligência espionaram até mesmo pessoas afinadas com a ditadura.
Documentos confidenciais: polícia política tentou impedir circulação do documento
Troca de correspondências que envolviam embaixadas brasileiras no estrangeiro ratificam, de forma cabal, os interesses da ditadura em impedir a circulação do Eu ouvi os clamores do meu povo no âmbito internacional.
De fato, telegramas confidenciais que envolviam embaixadas, assessoria de imprensa e órgãos de espionagem procuraram minimizar os efeitos da sua propagação em outros países.[iii]
Na apreciação feita pela ASV/SNI, o documento “encerra violenta contestação às instituições e ao Governo Brasileiro, estando fadado a desempenhar importante papel na campanha de calúnias contra o Brasil no Exterior”. Noutras palavras, era um documento que perturbava “a imagem atual do País”.[iv]
O bispo de Propriá na mira dos informantes da ditadura
Em outra apreciação da Agência Salvador, a ser difundido para a Agência Central do SNI, aparece um dossiê sobre três dos signatários do manifesto. Dentre eles, o bispo dom José Brandão de Castro. O documento confidencial nos fornece com precisão a leitura que os órgãos de vigilância faziam do bispo de Propriá, antes mesmo dos conflitos em que ele se meteu nos anos posteriores.
Além disso, a amostra produzida pela ASV/SNI nos permite afirmar, categoricamente, que as atividades pastorais empunhadas pela Diocese de Propriá já eram alvos de vigilância desde o início da década de 1970, no momento anterior ao emblemático conflito na fazenda Betume, do qual falaremos em outro capítulo.
Vale lembrar que a amostra encomendada pelos serviços de inteligência sobre a atuação do bispo foi motivada por ele ser um dos signatários do Eu ouvi os clamores do meu povo.
Identificado como elemento do “clero progressista”, contaram no dossiê que o bispo de Propriá tinha sido “objeto de várias informações para a Agência Central”.

Depois de levantar uma série de informações sobre dom Brandão, o dossiê turbinou as suas linhas com questões relacionadas ao bispo e à Diocese de Propriá:
Na sua Diocese tem causado preocupação aos Órgãos de Segurança a atuação de alguns religiosos estrangeiros, principalmente padres e freiras belgas, enquadrados como “progressistas”, já objeto de Informações a AC [Agência Central]. D. José Brandão vem desenvolvendo grande atividade na área junto ao trabalhador rural. Foi o inspirador da criação das Cooperativas Agrícolas em Sergipe, sendo a primeira delas a “Cooperativa Agrícola Mista/ do Camurupim Ltda”, que recebeu e vem recebendo valiosos auxílios do Governo da União, do Estado de Sergipe e da SUDENE.
Possui outras Entidades sob a sua orientação, cujo levantamento se encontra em andamento. É muito relacionado com D. Hélder Câmara, a quem considera “um homem injustiçado”, tendo convidado o mesmo para as festas dos 250 anos [da Paróquia] de Propriá, onde proferiu violento discurso contra a Revolução [de 1964]. Alegando “razões muito sérias”, proibiu que Frei Damião e Frei Fernando, religiosos conservadores, pregassem e fizessem Missões em sua Diocese […]. Tanto no seu jornal “A Defesa” como em entrevistas aos jornais de Aracaju tem feito declarações sobre o problema da Agricultura, sempre insistindo em apontar a miséria do homem do campo, que considera um explorado […].
Jamais apoia integralmente ou elogia as medidas governamentais, julgando-as sempre parciais e que não resolvem o problema por completo […]. O seu último artigo, publicado na “Gazeta de Sergipe” de 05 de maio de 1973, é um resumo das decisões da última reunião da CNBB a respeito dos Direitos do Homem, onde insinua que os mesmos não existem no Brasil […]. Embora seja um elemento inteligente e cauteloso, sempre foi e continua sendo da “linha progressista” do Clero.[i]
O documento deixa claro que novas informações sobre o bispo e as entidades sob a sua orientação estavam em andamento. Ao que consta no relatório, a alta posição de Brandão enquanto bispo diocesano aumentava a sua “periculosidade”.
Como se observa, tamanha quantidade de informações a respeito de elementos e instâncias da diocese de Propriá descortina um sofisticado sistema de vigilância contra ela já no início dos anos 1970.

A confissão do bispo no contexto da assinatura do Manifesto dos Bispos do Nordeste
Na década de 1980, dom Brandãolembrou que foi um dos signatários do Eu ouvi os clamores do meu povo. Disse ter assumido conscientemente aquele gesto. Em suas palavras, o documento “apelava de novo para as Reformas de Base e criticava com argumentos irrespondíveis a guinada oficial do país para o Capitalismo Dependente”.
Ainda ressaltou que aquele manifesto foi “muito criticado, perseguido, mal visto, porém as verdades que ele defendeu e as críticas que apresentou são válidas até hoje”.[i]
Porém, nas linhas seguintes, dom Brandão faz uma ressalva que nos oferece a oportunidade de problematizar as suas posições naquele momento. Salientou o religioso: “Mas no fundo de minha consciência não era tudo claro para mim”.
Dom Brandão se referia ao fato de, naquele período, ainda estar entre posições contraditórias. A fim de provar isso, o bispo recordou o seu erro em defender inicialmente os planos de desapropriação de terras da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf). Segundo o bispo, os fatos posteriores ratificaram que, naquele caso, ele não foi um profeta. Confessou:
não foi de uma hora para a outra que eu descobri os rumos que eu devia tomar. Vindo de uma época em que o paternalismo era praxe consagrada e sacramentada na Igreja, não foi de uma hora para outra que meus olhos se abriram para abarcar os fatos em sua profundeza.[i]
Gradativamente, os olhos de dom Brandão foram se abrindo. Os reflexos dessa abertura germinaram uma mudança radical em sua postura e na posição da diocese no xadrez político e religioso. Na medida em que era confrontada pelas mazelas sociais, a diocese se radicalizava. Foi isso que aconteceu quando a instituição agiu em defesa dos meeiros do Betume. Este último caso teve uma importância notável na mudança de lugar social e político da diocese de Propriá.
A bandeira pela mudança social começou a ser levantada de modo mais concreto e objetivo. Foi um momento de aproximação da diocese com as classes subalternas e de rompimento com a modernização conservadora e autoritária da ditadura.
A diocese se tornou uma denunciante do regime autoritário. No meio do caminho, surgiram poderosos inimigos. É o que veremos no próximo capítulo. Até lá!

Osnar Gomes dos Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Defendeu a tese: “Os sinais da conversão: o movimento do cristianismo da libertação na diocese de Propriá-SE (1960-1991)”. O texto na íntegra pode ser baixado aqui. Osnar possui Mestrado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde integrou o Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER/UFAL). Possui Graduação em História pela Universidade Tiradentes (2012) e Pós-Graduação em História do Brasil pela Faculdade Pio Décimo (2014). Atualmente, é professor efetivo da Rede Pública do Estado da Bahia.
[i] ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº BR_RJANRIO_TT_0_MCP_AVU_0102_d001. Operação Esperança e três depoimentos correlatos– 1973; 1973, p. 6.
[ii] Ibidem, p. 5.
[iii] Para se aprofundar nesses casos de trocas de correspondências confidenciais, conferir: ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº BR_DFANBSB_Z4_DPN_ENI_0105_d0001de0001. Igreja no Brasil e na América Latina – 1973; 1973, 240f.
[iv] Cf. ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_PPP_82004980_d0001de0001. Manifesto dos Bispos do Nordeste – 1973; 08 de maio de 1973, p. 5.
[i] Cf. BISPOS e Superiores Religiosos do Nordeste. Eu ouvi os clamores do meu povo (Êxodo, III, 7), 6 de maio de 1973. Salvador: Beneditina Ltda, 1973, 30f.
[ii] Cf. Cf. NETTO, José. Pequena História da Ditadura Brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014, p. 151.
[iii] Ibidem, p. 155-156.
[iv] Cf. IANNI, Otávio. A Ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 82.
[v] Cf. BISPOS e Superiores Religiosos do Nordeste. Eu ouvi os clamores do meu povo (Êxodo, III, 7), 6 de maio de 1973. Salvador: Beneditina Ltda, 1973, p. 18.
[vi] Para uma análise mais detalhada, ver na íntegra o folheto impresso pela editora Beneditina: BISPOS e Superiores Religiosos do Nordeste. Eu ouvi os clamores do meu povo (Êxodo, III, 7), 6 de maio de 1973. Salvador: Beneditina Ltda, 1973, 30f.
[vii] Também se pode encontrar a passagem referida no livro Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil, do sociólogo Luiz Gonzaga de Souza Lima, que levantou o manifesto na íntegra. Na página 178 do seu livro aparece a crítica do documento dos bispos ao status passivo da Igreja. Cf. apud LIMA, Luiz. Ob. Cit., p. 178.
[viii] Ibidem, p. 198.
[ix] Ibidem.
[x] Ibidem, p. 6.
[xi] ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_PPP_82004980_d0001de0001. Manifesto dos Bispos do Nordeste – 1973; 08 de maio de 1973, p. 1.
[i] Ibidem, p. 12-13.
[i] Ibidem.
[i] Cf. CASTRO, dom Brandão de. Os desafios sociais de uma região sergipana, sem data, 6f. O texto pode ser encontrado no Jornal de Sergipe. Ver: CASTRO, dom Brandão de. “Os desafios sociais de uma região sergipana”. In: Jornal de Sergipe.