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Descaso político e ambiental provoca tragédia anunciada com três mortes em rodovia estadual em Capela/SE

Tragédia prevista: descaso com meio ambiente e com denúncias da população (Crédito: César de Oliveira)

Não foi acidente, não foi culpa da chuva, não foi “fatalidade da natureza”, como disse o governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD). A enxurrada que atingiu um trecho da rodovia estadual SE-438 em Capela, 65 km de Aracaju, nas imediações da antiga Usina Santa Clara, e matou três pessoas ontem foi uma tragédia anunciada. A permanente destruição ambiental no local e o descaso do poder público diante das denúncias da população sobre a rodovia indicavam que um desastre poderia ocorrer mais cedo ou mais tarde. A estrada passou por reforma no ano passado. Veja no final da reportagem sobre isso e uma nota oficial do Governo de Sergipe.

Na madrugada do sábado para o domingo, 12, Flávia Silva, Adriana Vieira e Bruno Andrade retornavam de Aracaju onde tinham ido liberar o corpo para sepultamento da avó de Flávia. Ao passar com o veículo próximo a um trecho baixo da rodovia, o carro de Bruno foi arrastado junto com a estrada. Um outro veículo também foi atingido, mas o motorista escapou. No início da tarde de ontem foram encontrados os corpos de Adriana e Flávia. Na manhã de hoje, (segunda, 13) o corpo de Bruno foi localizado.

Adriana e Bruno eram casados e Flávia era sobrinha do casal. “Para mim, isso não foi um acidente. E eles, os responsáveis, têm nomes e endereços, todo mundo sabe, mas duvido que sejam responsabilizados. O resultado é vidas perdidas, histórias encerradas, uma criança de seis anos sem mãe por conta da irresponsabilidade de alguns e do descaso de muitos. Fica por isso mesmo”, desabafou uma moradora da cidade e parente de uma das vítimas.

Uma equipe do governo do estado esteve no local para as buscas e sinalização da área. O governador também apareceu lá. “Infelizmente, foi uma fatalidade da natureza. O que aconteceu aqui hoje é semelhante ao que ocorreu há dois anos em Tobias Barreto, onde as manilhas não resistiram, pois se trata de uma rodovia antiga. A ideia é substituir a estrutura por uma ponte”, disse Fábio Mitidieri nas redes sociais.

Entretanto, não é bem assim. O trecho que cedeu enfrenta dois permanentes problemas e que já eram de pleno conhecimento do poder público faz tempo. Primeiro, a quase que completa destruição das matas nas margens da rodovia para a plantação de cana-de-açúcar. Segundo, os serviços mal feitos e as pressas de canalização natural das águas no trecho da rodovia que cedeu. Segundo divulgou o governo do estado, a média de chuva considerada normal varia de 40 a 50 milímetros (mm). Entre sexta e sábado passado houve o acumulado de 187 milímetros em Capela e mais de 120 mm no intervalo de 24 horas.

Bruno, Adriana e Flávia são vítimas de uma tragédia anunciada: quem será responsabilizado? (Crédito: redes sociais)

Descaso ambiental e com o interesse público: quem será responsabilizado?

Grande parte das margens da rodovia SE-438 em Capela, especialmente no trecho que cedeu, tinha uma significativa área protegida por vegetação. Com a cultura da cana, a implantação da Usina Santa Clara e depois com a venda das terras da usina para outros latifundiários e usineiros para maior expansão do plantio, a exemplo de Ezequiel Ferreira Leite Neto, ex-prefeito de Capela, boa parte das matas foi destruída para a produção de cana.

“Essa parte baixa da pista sempre passou água por ela, principalmente no período do inverno. Antes era um córrego natural e fizeram a estrada. Mesmo com o asfalto, a água passava por cima quando chovia muito, mas sempre foi uma lâmina bem fina de água, isso independentemente da quantidade de chuva. Nunca deu problema porque dos dois lados da rodovia tinham muita mata e ela segurava. Com a destruição das matas e a implantação da cana, quase não ficou nada, tudo destruído, e a água vem com volume e força”, explicou um professor que mora em Capela.

Em 18 de setembro de 2023, a Mangue Jornalismo publicou uma reportagem denunciando empresários, políticos e advogados acusados de destruir Mata Atlântica e Caatinga em Sergipe. Nesse material, a Mangue mostrou que em 2019, Ezequiel Leite foi autuado em R$ 82,5 mil por infrações cometidas em Capela. Dois anos depois, ele recebeu multa de R$ 170 mil, acusado de destruir a Mata Atlântica em Nossa Senhora das Dores. Na época, o ex-prefeito não respondeu aos pedidos de entrevistas. “A vegetação natural existente de um lado e do outro da rodovia equilibrava a força da água. Com a derrubada quase total da mata e o armengue [improviso] feito no pedaço que caiu, veio a tragédia que ceifou a vida das pessoas”, denuncia um morador de Capela.

De um lado e do outro a rodovia, mata foi destruída para plantação de cana (Crédito: Maycon Santos)

O completo descaso ambiental junta-se à irresponsabilidade do poder público diante de tantas denúncias de moradores de que alguma tragédia poderia ocorrer na rodovia com as pequenas manilhas colocadas e que não suportavam o volume de água que descia, agora, sem qualquer anteparo das matas.

“Por meses, a estrada ficou em meia pista porque a encosta dela cedeu. No ano passado, às pressas por conta da Festa de São Pedro e das eleições, o governo fez as obras, manteve as manilhas pequenas, fechou assim mesmo e pronto, entregou a rodovia. Deu no que deu agora. Quem será responsabilizado pelas mortes. Vai ficar por isso mesmo?”, pergunta uma moradora de Capela e parente de uma das vítimas.

Em janeiro de 2024, o mesmo trecho que desabou agora já tinha sido afetado com as chuvas de verão e o Departamento de Estradas e Rodagens (DER/SE) tinha prometido reparos. Meses depois, também às pressas, o que gerou dúvidas sobre a compactação do terreno e com o uso de manilhas adequadas, a rodovia foi entregue.

Em maio do ano passado, o ex-prefeito Manoel Sukita fez um vídeo denunciando a situação da rodovia.

Nas redes sociais, também em maio de 2024, o deputado estadual Cristiano Cavalcante (União), líder do governador na Assembleia Legislativa, fez um vídeo com o diretor-presidente do DER, Anderson das Neves falando dos problemas da rodovia e das obras que estariam sendo feitas. A estrada foi entregue no segundo semestre do ano passado e agora cedeu novamente com pessoas mortas.

No Diário Oficial do Estado de Sergipe – edição de 17 de abril de 2024, página 10 – o governo publicou a informação que recebeu a autorização ambiental da Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) para realizar “obras de recuperação de drenagem e recomposição do aterro devido à erosão da Rodovia SE-438, KM 2,69, povoado Santa Clara, no município de Capela”.

Logo depois, já no Diário Oficial do Estado de Sergipe – edição de 30 de abril de 2024, página 16 – o governo publicou um Extrato de Contrato, feito por Dispensa de Licitação, com a empresa Novatec Construções e Empreendimentos Ltda para “recuperação de drenagem e recomposição do aterro devido à erosão da Rodovia SE-438, KM 2,69, povoado Santa Clara, no município de Capela”. O valor do serviço foi de R$ 261,5 mil e o prazo de execução foi de 60 dias.

“Passou quase um ano sendo meia pista neste local. Deixei de circular por lá. Ano passado ajeitaram e hoje resultou nessa tragédia. O governador falou que vai ser construída uma ponte, pois os bueiros não suportaram o volume das águas. Foi preciso uma tragédia para verem isso? Esse volume de água quando chove não é novidade para nós, capelenses”, disse uma moradora da cidade.

Depois da tragédia já indicada, o diretor-presidente do DER/SE, Anderson das Neves, informou que a drenagem não suportou, causando o colapso. “Vamos iniciar os estudos para construir uma ponte que atenda às necessidades de segurança e infraestrutura da região”, afirmou. O DER estima que levará cerca de 20 dias para concluir o planejamento de uma ponte, que deve substituir as manilhas que existiam e não resistiram.

“Manilhas que não suportaram a força da água”, disse Fábio Mitidieri (Crédito Secom)

Governo de Sergipe se solidariza com as vítimas
Segue a nota oficial do Governo de Sergipe sobre a tragédia em Capela/SE
O Governo de Sergipe se solidariza com as vítimas da tragédia natural ocorrida na madrugada do último domingo, 12, no município de Capela, e tem monitorado a ocorrência de chuvas por todo estado, por meio do Comitê de Gerenciamento de Crise. Em decorrência das informações divulgadas pelo Mangue Jornalismo, em reportagem intitulada “Descaso político ambiental provoca tragédia anunciada com mortes em rodovia estadual”, o governo informa que o trecho da Rodovia SE-438, conhecida como Rodovia Santa Clara, passou por uma ampla reforma, incluindo a ampliação da drenagem, após a erosão sofrida em maio de 2024. A obra foi realizada pelo Departamento Estadual de Infraestrutura Rodoviária de Sergipe (DER/SE), cumprindo todas as normas técnicas de engenharia e ambientais, com documentação validada pelos órgãos de fiscalização.

O Governo de Sergipe ressalta que o rompimento da Rodovia SE-438 foi provocado pelo alto volume de chuvas ocorrido num curto período, ocasionado pelas mudanças climáticas que vêm afetando diversas regiões do país e do mundo. Para exemplificar a força da natureza, a região de Capela registrou, em apenas dois dias, um total de 181 milímetros de chuva, o equivalente à média de precipitação prevista para o mês de janeiro inteiro. Diante deste cenário, o Governo do Estado continuará monitorando a situação não apenas em Capela, mas em todo estado, e reforçando as ações de apoio às vítimas e suas famílias, buscando mitigar os impactos dessa tragédia e garantir a segurança da população.

A Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) explica que, em Sergipe, a Autorização Ambiental para Queima Controlada de cana de açúcar é normatizada pela Lei nº 8.497/ 2018, que dispõe sobre o Procedimento de Licenciamento Ambiental, e detalhada pelo Resolução nº 53/2013 do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Cema), fundamentada no Decreto Federal n° 2.661/1998.

Os requerentes devem obedecer ao Plano de Queima aprovado e cumprir condicionantes, dentre as quais, que as áreas de queima estejam a pelo menos um quilômetro de aglomerado urbano e 500 metros de perímetro urbano; 15 metros de rodovias, linhas de transmissão e distribuição de energia elétrica, conforme estabelece a legislação. A Adema enviou equipe ao local nesta segunda-feira, para verificar as condições ambientais da região onde ocorreu o colapso da rodovia.

O Governo de Sergipe emitiu também o Decreto nº 924, publicado na edição do Diário Oficial desta segunda-feira, 13, que estabelece luto oficial de três dias pelas vítimas das intensas chuvas em Capela.


ATUALIZAÇÃO: O texto da reportagem foi atualizado com uma nota oficial do Governo de Sergipe e porque na manhã desta segunda-feira, 13, o corpo do motorista Bruno Andrade foi encontrado pelo Corpo dos Bombeiros.

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