CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
(@josecristiangoes)
DÍJNA TORRES, especial para a Mangue Jornalismo
(@dijnatorres)
Antes dos homens, já existia a mangaba, uma fruta doce e pouco visguenta quando amadurecida. Melhor ainda se ele for “de caída”, catada debaixo do pé. Para recolher esse presente da natureza, ainda antes dos homens, chegam as mulheres. Elas sabiam muito bem que as mangabas não eram apenas frutas, mas davam uma liga poderosa a produzir unidade. E isso se confirmou de tal forma que mulheres e árvores têm o mesmo nome: mangabeiras.
Pode-se encontrar a mangaba em vários estados nordestinos, mais para as áreas litorâneas, entretanto, em Sergipe, a fruta e do modo de relação com ela, tornou-se cultura e se firmou como um patrimônio. Tem até lei, a de número 8918, de 11 de novembro de 2021, onde declara que o ofício das catadoras é patrimônio cultural imaterial de Sergipe, e a mangaba um patrimônio cultural material.
Para quem conhece a mangaba já sabe, mas para quem não sabe, essa fruta muito saborosa tem inúmeros benefícios para a saúde, como o efeito anti-inflamatório e auxilia no tratamento de doenças como hipertensão, ansiedade e estresse. Além disso, o extrativismo da mangaba é a principal fonte de renda de muitas famílias sergipanas que habitam majoritariamente a região litorânea do estado.
Assim como as tototós que fazem a travessia Aracaju-Barra dos Coqueiros e que a Mangue Jornalismo mostrou na semana passada que são patrimônio cultural do estado em risco de desaparecer, a Mangue também já alertou, em junho de 2023, que as mangabas e o ofício das mulheres extrativistas de Sergipe têm alto risco de extinção.
De acordo com uma pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Tabuleiros Costeiros (Aracaju/SE), ainda em 2017, estimava que Sergipe já tinha perdido 90% das áreas originais de mangaba. No caso das mangabeiras, esse processo de ataque a essa cultura não ocorre sem muita luta delas, uma força que vem exatamente da essência da fruta: o poder resistência.
Diante das principais ameaças, o desmatamento desenfreado das áreas litorâneas para atender os interesses especulativos, do agronegócio e imobiliários de governos e empresas privadas, as mangabeiras se organizaram em alguns municípios sergipanos que lidam com o extrativismo e se constituíram numa rede.
A Associação das Catadoras de Mangaba de Indiaroba (Ascamai), a primeira associação de Catadoras de Mangaba registrada em Sergipe, criada em 23 de maio de 2009, surgiu com o objetivo de organizar as mulheres extrativistas tradicionais da mangaba no município de Indiaroba para, através da organização coletiva, produzir e conservar essa cultura com práticas sustentáveis em respeito ao meio ambiente, promovendo o desenvolvimento socioeconômico e gerando renda, e, com isso, a partir do convênio firmado com o programa Petrobras Ambiental, deu forma à Rede Solidária de Mulheres de Sergipe, com cerca de 500 mulheres inscritas.
“Eu quero destacar a importância do movimento de nós mulheres, catadoras de mangaba, marisqueiras, extrativistas, porque foi a partir desse movimento, da luta coletiva, para que as catadoras se inserissem em cada município nesse processo de luta pela existência, pela defesa dos territórios. Eu sigo dizendo: Nada sobre nós sem nós, e toda essa luta é fruto disso, inclusive a minha inserção no movimento nacional para incluir as catadoras de mangaba como parte do segmento extrativista desse país”, destacou Alicia Salvador, catadora de mangaba, coordenadora geral do Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe e fundadora da Ascamai.
Atualmente, a Ascamai firmou novo convênio de patrocínio com a Petrobras para seguir desenvolvendo o projeto, enfatizando a valorização dos usos tradicionais e saberes da sociobiodiversidade em áreas urbanas e da restinga sergipana. Sua área de abrangência corresponde a três áreas urbanas e dezessete povoados situados nos municípios de Aracaju, Carmópolis, Indiaroba, Estância, Barra dos Coqueiros, Pirambu, Japaratuba, Divina Pastora, Santo Amaro das Brotas, Poço Verde e Neópolis localizados em áreas da Mata Atlântica de Restinga no estado de Sergipe.
“O projeto tem participação direta das pessoas das comunidades e conta com uma equipe técnica permanente, mas levamos muito em consideração o conhecimento cultural e tradicional da comunidade, ou seja, desenvolvemos uma metodologia participativa a partir do estudo da realidade e das condições de vida das pessoas”, informa a coordenadora do projeto, Mirsa Barreto.
A mangaba e as relações sociais, política, econômicas, culturais da ação extrativista das mulheres estão produzindo uma consciência de que a luta ambiental localizada é, na verdade, uma luta pelo direito de existência, a começar pela própria fruta, amplamente ameaçada de desaparecer, mas que se estendeu para a luta em defesa da vida, da existência. Hoje, são mangabeiras, artesãs, costureiras, mães e mulheres múltiplas.
“Eu sou uma mulher que não faço nada pensando só em mim, por isso, acredito que o projeto foi maravilhoso para a nossa comunidade. Fomos acolhidas e acolhemos as mulheres de tantas outras comunidades. Crescemos todas juntas”, disse Ednalva de Jesus, catadora de mangaba em Capuã, na Barra dos Coqueiros.
A mangaba como portas e janelas abertas para a consciência e unidade
A atuação da Rede Solidária de Mulheres de Sergipe deveria servir de referência para outros vários movimentos, especialmente porque ela dialoga com princípios de existência muito caros, a exemplo: produzir sem explorar o ambiente a níveis de degradação e que não coloquem em risco a extinção das espécies.
Para a rede de mulheres, a igualdade e equidade de gênero e, racial são recortes importantes para que as participantes se sintam incluídas em processos de geração de renda para reconstruir sua identidade cultural e sua condição de produção econômica.
“Mais de 60% da população que vive nos municípios da área de abrangência do projeto são de negros e negras e, constituem os grupos mais vulneráveis e excluídos dos postos de trabalho. Dessa forma, o projeto tem o compromisso com essa população e coloca como grupos principais de envolvimento nas comunidades”, afirma a coordenadora do projeto, Mirsa Barreto.
Cursos, artes, alimentos, artesanato, turismo e agora cartões postais
Algumas das palavras-chave para entender todo o trabalho das mulheres na Rede Solidária são autonomia, solidariedade, saberes, territórios, biodiversidade e sustentabilidade. Tudo isso se manifesta de forma muito viva e potente em uma série de ações que a iniciativa realiza, principalmente focando na educação e no trabalho, na educomunicação, processamento de alimentos e agroecologia, oficinas fixas do projeto, além de cursos complementares diversos, a exemplo de corte e costura, macramê, automaquiagem, design de moda, padaria, entre outros.
Para Dilva de Souza, catadora de mangaba do povoado Manoel Dias, em Estância, a chegada do projeto trouxe nova perspectiva de vida para as comunidades, sobretudo na área do trabalho, valorizando a produção das mulheres e fortalecendo seus grupos. “Agradeço demais a oportunidade que o projeto deu para as jovens e para as coroas como eu. Muitas jovens da nossa comunidade não tiveram oportunidade de fazer cursos, algumas por causa dos filhos e do marido, e o projeto deu essa oportunidade. Isso foi muito importante pra gente continuar sonhando com o futuro e sendo grata ao presente”, disse.
O fato é que são tantos produtos nascidos das mãos e sonhos das mulheres, que a rede inaugurou uma LOJA VIRTUAL. Lá estão bebidas como os licores de mangaba, jenipapo, cambuí, murici, acerola, tamarindo e abacaxi, além das famosas geleias, doces, biscoitos, compota, balas, tudo de mangaba, compota de jaca e de caju, bolacha de tapioca e geleia de tomate com pimenta.
Também impressiona a quantidade e qualidade dos artesanatos produzidos pelas guerreiras da Rede Solidária de Mulheres. Tem canecas, bolsas, tapete, trilho de mesa, colares, almofadas, cestos, bonecas, além de uma infinidade de objetos de renda irlandesa, a exemplo de vários tipos de colares e brincos. Além dos produtos, a loja virtual oferece o serviço de Turismo de Base Comunitária (TBC), experiências vivas nos povoados Manoel Dias e Ribuleirinha, em Estância, e Pontal, em Indiaroba.
E a mais recente novidade no E-commerce são os cartões postais com as imagens dos territórios que fazem parte da iniciativa, tudo para eternizar e divulgar as paisagens símbolos de resistência de muitas mulheres sergipanas. A escolha das paisagens se deu a partir das fotografias realizadas durante as oficinas e visitas técnicas da equipe do projeto, que, cuidadosamente, escolheu as imagens para representar os territórios que fazem parte da rede.
De acordo com a jornalista do projeto, Rita Simone, atualmente, com todo o imediatismo que a chamada “sociedade líquida” atravessa, o cartão postal é um contraponto que pode fortalecer inclusive a memória social de grupos sociais distintos. “Ele pode emoldurar a defesa de modos de vida e da própria territorialidade, pois tem a capacidade de fazer circular palavras, inclusive as simbólicas, que denotam senso de identidade e pertencimento, favorecendo a mitigação de muitas maneiras que existem de se perpetuar a exclusão social, inclusive a linguística”, disse Rita.