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Cuidado e acolhimento: o necessário reconhecimento dos espaços tradicionais de matriz africana como ambientes de promoção da saúde em Aracaju

DÍJNA TORRES e PRISCILA VIANA, da Mangue Jornalismo

Entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960, Aracaju tornou-se o destino prioritário para a migração de famílias moradoras do interior de Sergipe e que enfrentavam a escassez financeira, especialmente oriundas do Alto Sertão. As promessas de desenvolvimento socioeconômico que se alardeavam na nova capital do Estado, aliada a expectativas de emprego e moradia digna, davam o tom para as grandes expectativas em torno da já alardeada “qualidade de vida”.

Nessa época, Sergipe era governado por Luiz Garcia, aliado dos interesses das famílias oligarcas e grandes empresários, e conhecido pela implementação de políticas de estado eugênicas, diante das necessidades da classe trabalhadora e das pessoas que, deslumbradas com a promessa da melhoria de vida, acabavam em situação de rua. A “Operação Higiene”, conduzida pelas Secretarias da Saúde e da Segurança Pública, visava o bem estar dos “cidadãos bem-nascidos” ou seja, a “captura”, nas vias e logradouros públicos, de “adultos, crianças que não tivessem endereço fixo, mal vestidos, morando embaixo de marquise, doentes deitados em calçadas ou vagando a esmo”, para internação no Serviço de Atendimento à Mendicância (SAME). 

A condução policialesca e de limpeza étnico-racial a que eram submetidas as pessoas em situação de rua, especialmente a população negra, levava essa população excluída de uma política pública de saúde realmente eficaz a procurar outras vias para cuidar de si e dos seus e lutar pela vida. Segundo o professor Roberto Amorim Ferreira, autor do livro “A Gazeta de Sergipe como aliada da banalização da violência de raça e de classe em Sergipe (1959-1979)”, “os desassistidos pelo poder público” recorriam “aos cultos de origem afro, às prescrições dos pais e mães de santo, às pajelanças, às curandeiras e às benzedeiras, que lhes aviavam defumadores, plantas medicinais, chás e remédios a partir de ervas naturais” (FERREIRA, 2023: 51). 

A pesquisa do historiador Ferreira mostra o percurso histórico da população negra em Aracaju quanto aos cuidados com a saúde e o necessário acolhimento encontrados nos espaços das religiões de matriz africana. Recentemente, mais precisamente no dia 20 de julho deste ano, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou a Resolução nº 715/2023, a partir das diretrizes aprovadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada entre os dias 2 e 5 de julho, em Brasília. A Resolução apresenta 59 orientações estratégicas voltadas à formulação do Plano Nacional de Saúde, elaborado pelo Ministério da Saúde. 

Dentre os 59 pontos, o número 46 tem gerado polêmicas ao reconhecer “as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde”.

Além disso, a Resolução também reconhece que esses mesmos espaços e manifestações também são a “1ª porta de entrada para os que mais precisavam e espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar”, orientando assim que sejam respeitados como “instrumentos previstos na política de saúde pública” e como espaços de “combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras”.

Em um país de formação marcadamente racista e colonial como o Brasil, não é de se espantar que esse ponto específico da Resolução do CNS venha causando polêmica, especialmente no contexto político atual, caracterizado pela expansão do conservadorismo neopentecostal. Porém, o reconhecimento das manifestações e dos espaços dos povos tradicionais de matriz africana enquanto equipamentos promotores de saúde nada mais é do que a confirmação simbólica de algo que já acontece na prática desde tempos ancestrais, e não só no Brasil. 


Cura e acolhimento

Para a Yalorixá Martha Sales, do Ilê Axé L’odò Omiró, a aprovação da Resolução é o resultado de uma luta histórica do movimento dos povos de terreiro pelo reconhecimento como espaços de promoção da cura, “porque o terreiro já é um espaço que atua nesse sentido. Historicamente, eles eram os espaços do primeiro acolhimento da comunidade onde estavam inseridos. Até hoje, muitas pessoas das comunidades buscam nos terreiros processos de cura, tratamento, acolhimento. Então, esse reconhecimento nada mais é do que referendar exatamente o que sempre se fez”. 

A Yalorixá destaca que, apesar de ser uma luta já existente e que há organizações que sempre buscaram meios para que essas práticas sejam reconhecidas, a exemplo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO), nos últimos anos o país tem sofrido um grande retrocesso. Por isso, a Resolução é motivo de comemoração. “Eu vejo com muita alegria, diante do retrocesso que a gente tem vivido nos últimos tempos. Com esse reconhecimento, ainda que tardio, temos um caminho para avançar na política de saúde da população negra, já que os espaços de terreiros são um chão preto, efetivamente de ancestralidade negra e que acolhe nesse sentido”, complementou Martha Sales. 

Martha é também sócio-fundadora da Organização Não-Governamental (ONG) Casa de Mar, localizada no bairro Areia Branca, na Zona de Expansão de Aracaju. Há 05 anos, desde que foi fundada, a Casa de Mar desenvolve ações educativas nos âmbitos da saúde, da educação e da cultura junto à comunidade da Areia Branca. “Nós desenvolvemos ao longo desses anos diálogos e ações junto aos pescadores artesanais e às mulheres da comunidade, especialmente as mulheres marisqueiras, que são acometidas por uma série de problemas de saúde devido ao seu trabalho na coleta dos mariscos. O projeto “Mulheres de mar” é um exemplo disso, no qual abordamos saúde e cultura popular, por meio do samba de coco. Não podemos esquecer que o movimento corporal também está ligado à saúde”, explica Martha Sales. 

Além disso, a Casa de Mar também se junta às mobilizações da comunidade pela preservação e o cuidado do rio Vaza-Barris, que circunda o bairro. “Nós somos uma comunidade ribeirinha, então a saúde comunitária está diretamente ligada ao rio. Por isso, participamos das ações do projeto “Anjos do rio”, onde debatemos e conduzimos ações de limpeza local, de recolhimento do rio, conscientizando também a própria comunidade sobre o necessário cuidado da nossa própria saúde em convergência com a do meio ambiente”, destaca a Yalorixá. 

Yá Martha Sales em ação pela ONG Casa de Mar (Foto: Arquivo pessoal)

Corpo, mente e espírito, de forma integral

Além do cuidado com o meio ambiente e ações voltadas ao fortalecimento da saúde comunitária, os terreiros também atuam no âmbito da saúde coletiva a partir de ações de solidariedade que contemplam a promoção da segurança alimentar e nutricional, entre outras movidas pelo sentimento de solidariedade. 

O sacerdote do Centro de Formação Espiritual Águas de Aruanda, Fábio Dantas, explica as ações direcionadas às pessoas mais vulnerabilizadas pela ausência de políticas públicas efetivas de Estado. “Nós realizamos atendimentos espirituais com os mentores da casa por meio de ervas, benzimentos, argilas e passes magnéticos, além da formação de cursos de autoconhecimento com vistas ao alinhamento energético das pessoas assistidas. No âmbito da segurança alimentar, fornecemos cestas básicas e comidas para pessoas em situação de rua e comunidades assistidas pelos projetos sociais”, explica Fábio, ao destacar o cuidado com a saúde a partir da integralidade corpo, mente e espírito. 

O Águas de Aruanda também tem mobilizado doações e promovido o sentimento coletivo de solidariedade, com a doação de alimentos, roupas, produtos de higiene para pessoas em situação de rua e para casas que cuidam de pessoas idosas, deficientes, crianças. “Nós desenvolvemos Recicláguas, através do qual costuramos mantas térmicas para moradores em situação de rua com caixas de leite e suco. E o Francisco de Assis, por meio do qual arrecadamos alimentos para os animais de rua”, complementa o sacerdote.

Horta mantida pelo Centro Águas de Aruanda (Foto: Arquivo pessoal)

Combate ao racismo ambiental e ao religioso

Esses e outros projetos são desenvolvidos por diversos terreiros sergipanos ao longo de décadas com as suas comunidades. Com o reconhecimento da Resolução 715, os povos de comunidades tradicionais de terreiros esperam que seja mais uma forma de combate ao racismo ambiental e ao religioso. 

“Observo que a resolução nos coloca num lugar de acolhimento/atendimento em várias perspectivas. Uma é a de sermos a porta de entrada daquela pessoa/paciente nos equipamentos de saúde. Outra possibilidade é de utilização da nossa tecnologia ancestral para o acolhimento das pessoas/pacientes. O mais importante é o entendimento de que nossas práticas são curativas”, ressaltou a Yá Sônia Oliveira, Iyalorisá do Ilè Àsé Ojú Ifá Ni Sahara. 

Yá Sônia Oliveira e a preparação de alimentos para a comunidade (Foto: Arquivo pessoal)

Ela ainda destaca que, além de colaborar com as organizações no entorno da comunidade em que o terreiro faz parte, no Bairro Santa Maria, no período da pandemia, ela e sua família de fé iniciaram um projeto chamado Ilerá Ara (corpo saudável, em Yorubá), destinado à manutenção da saúde mental dos filhos e das filhas da casa.

“Após a pandemia, abrimos a edição para a sociedade em geral e trabalhamos com mulheres. Além disso, também trabalhamos com alimentos da agricultura familiar de um projeto do Governo do Estado, que era o de aquisição de alimentos (PAA), onde fizemos a distribuição de alimentos saudáveis à comunidade. Afinal, a saúde é um processo integrativo e deve ser uma preocupação de todos e para todos”, concluiu a Yalorixá. 

Referência Bibliográfica

FERREIRA, Roberto Amorim. A Gazeta de Sergipe como aliada da banalização da violência de raça e de classe em Sergipe (1959-1979). Aracaju: J. Andrade, 2023. 

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