TAUÃ FERREIRA, da Mangue Jornalismo
@taua_ferreiraa
CRISTIAN GOES, supervisão
@josecristiangoes
No dia 20 de fevereiro de 1976, Aracaju testemunhou um dos episódios mais sombrios de sua história recente: a Operação Cajueiro. Esta ação militar sigilosa desencadeou uma sequência de sequestros, prisões e torturas, visando investigar alegadas atividades subversivas em solo sergipano.
Mais de 40 anos depois, alguns detalhes dessa operação vieram à público após investigação da Comissão Estadual da Verdade em Sergipe (CEV/SE), que, no período entre 2016 e 2019, se dedicou a analisar e documentar os inúmeros casos de violações dos direitos humanos ocorridos no estado, abrangendo o período de 1946 a 1988.
No último dia 20 foram lembrados os 48 anos do início da Operação Cajueiro. Algumas vítimas, familiares, políticos e membros da sociedade civil se reuniram na Câmara Municipal de Aracaju para lançar o Comitê Memória, Verdade e Justiça de Sergipe, sem qualquer vinculação com poderes públicos.
O propósito deste comitê é resgatar e esclarecer os eventos relacionados às violações perpetradas durante o período da ditadura militar, aprofundando o relatório final da CEV/SE, que ainda apresenta algumas lacunas e imprecisões históricas.

“Nós precisamos exumar a memória e a história do nosso Sergipe, da nossa Aracaju e do Brasil, especialmente no que toca a questão da ditadura militar de 64. Mais de 50 mil brasileiros até o mês de julho foram presos, torturados e violentamente perseguidos pela ditadura.” disse Marcélio Bonfim, ex-vereador preso político e coordenador do Comitê Memória, Verdade e Justiça de Sergipe.
Marcélio, aos 79 anos, é uma testemunha vívida dos horrores daquele período. Suportou três prisões pelas forças militares, sujeitado a torturas brutais no Exército, o 28ºo Batalhão de Caçadores em Aracaju, e foi exilado em Moscou, na antiga União Soviética. Mesmo diante disso, seu compromisso político em preservar a memória das vítimas da ditadura militar permaneceu inabalável.
Na liderança do recém criado Comitê Memória, Verdade e Justiça de Sergipe, Marcélio enfatiza a importância da sociedade ter acesso às informações desse período histórico. “O povo que não conhece a sua história e sua memória não tem condição de reagir, de resistir e lutar em defesa da liberdade e da democracia” afirmou Marcélio.
Mesmo com as inúmeras violências sofridas durante os períodos de prisão, Marcélio reconhece hoje que foi no enfrentamento à ditadura militar que descobriu os caminhos para a construção de uma nova sociedade justa e democrática.
Quem também esteve na fundação do comitê foi Wellington Mangueira, uma outra vítima das violações de direitos humanos cometidas pelos militares. Parte da história dele também está registrada no relatório final da CEV/SE.
Wellington relembra que, ainda menor de idade e estudante secundarista do Colégio Atheneu, deu início à sua militância política no grêmio estudantil. “Nós fazíamos um grupo forte que buscava lutar por um Brasil cada vez mais progressista, em que todos pudéssemos estudar, comer e viver com dignidade”.
Foi nesse contexto, no início de 1964, que Wellington se tornou vítima da crescente violência política. “Eu não tinha nem dezoito anos ainda e fui esfaqueado, porque nós do Atheneu defendemos as reformas de base propostas pelo presidente João Goulart. E isso levou os reacionários de então, a me chamaram de comunista e, ideologicamente, armaram a mão assassina de um colega estudante que disse que comunista merecia morrer. Ou seja, não é de agora que tem os Bolsonaros da vida, não é de agora que existe essa violência contra o livre pensar”.
Após 31 dias de internação, com parte do intestino comprometido pelos ferimentos, Wellington recebeu alta do hospital. No entanto, o seu alívio não durou muito, pois logo teve que enfrentar as perseguições desencadeadas pelo golpe militar no final de março de 1964. Naquele ano, Wellington foi preso duas vezes.
Além de Wellington, existem muitos relatos ditos e não ditos ainda sobre esse longo período da ditadura em Sergipe. Por isso, uma das principais diretrizes do Comitê Memória, Verdade e Justiça de Sergipe é elucidar e disseminar os eventos destacados no relatório da CEV/SE e diante deles, possibilitar que a sociedade possa lembrar das dinâmicas de um estado autoritário, além de buscar o fortalecimento da atual democracia do Brasil.
“A gente tentou contar algumas dessas histórias de forma a ilustrar problemas na modelagem da democracia contemporaneamente, então a gente olhava para trás pensando nos problemas contemporâneos” disse Andréa Depieri, professora de direito na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e que trabalhou na CEV/SE.
Andréa destaca que o processo histórico de redemocratização preservou algumas estruturas que podem ser mobilizadas como instrumentos autoritários em períodos de instabilidade política.
“No relatório da CEV existe todo um capítulo que vai discutir que pessoas estavam sendo espiadas. Toda a modelagem do que era o Serviço Nacional de Informação (SNI), tem uma relação direta com a crise da ABIN paralela hoje. Porque a despeito do SNI ter sido fechado e da ABIN ter sido criada como agência, esse serviço não estava sob controle civil. Então a gente tem muitos nós na formatação da nossa democracia atualmente que foram decorrentes da não transição do período da ditadura, isso evidentemente fragiliza a nossa democracia.” afirmou Andréa.

Participação da Mangue Jornalismo
É uma das obrigações do jornalismo contribuir para a efetivação do direito à verdade e à memória. Por isso, a Mangue Jornalismo, uma organização midiática em sem fins lucrativos, decidiu trazer à luz em seu site algumas histórias em completa invisibilização sobre o golpe civil-militar em 1964 e a ditadura que se seguiu a isso, especificamente em Sergipe.
Quais as dificuldades para isso? Primeiro, a Mangue é um coletivo de jornalistas e comunicadores muito iniciante e essa condição indica uma série de incertezas. Segundo, as fontes vivas para esse trabalho não estão completamente à disposição e, além disso, retomar esse assunto também pode mexer em traumas que preferem esquecidos.
Acrescenta-se a essas duas dificuldades um terceiro desafio, que para a Mangue Jornalismo é o mais estimulante de todos para superar: a tentativa de parte da elite sergipana em querer manter apagada essa história, isso porque ela está diretamente implicada em prisões, torturas e todo tipo de violações aos direitos humanos no golpe de 1964 e da ditadura.
A incipiência da equipe da organização foi resolvida na garra e na compreensão do dever do jornalismo. Enfrentar o reacionarismo da elite sergipana foi o combustível para isso e que se vincula diretamente ao propósito da Mangue Jornalismo. Quanto às fontes, encontramos a base decisiva para esse trabalho: o relatório final da Comissão Estadual da Verdade em Sergipe (CEV/SE).
Depois de muita luta de movimentos sociais, da então deputada estadual Ana Lúcia, de várias pessoas, do Ministério Público Federal, o Governo do Estado de Sergipe foi obrigado a criar a CEV/SE. Ela foi constituída em 7 de julho de 2015 e até chegar ao relatório final em 2019 foi composta por Josué Modesto dos Passos Subrinho, Andréa Depieri de Albuquerque Reginato, Gilson Sérgio Matos Reis, Gabriela Maia Rebouças e Gilberto Francisco Santos.
Os trabalhos da CEV/SE foram desenvolvidos por servidores, estagiários, pesquisadores e também por voluntários cuja contribuição foi valiosa. Muito da mobilização da comissão buscou realizar o direito à verdade, à memória, à reparação e à reforma institucional.
O relatório final ficou pronto em 2019, com indicação de publicação e distribuição para todo o estado. Entretanto, esse importante documento não foi publicado, não foi impresso. Apenas em 2020, o relatório virou um arquivo digital em PDF com 428 páginas, editado pelo Diário Oficial do Estado. Quase ninguém soube ou leu.
É aí que entra a Mangue Jornalismo, que nasceu em 19 de abril de 2023 e já em setembro do mesmo ano começou a publicar quase que semanalmente uma reportagem, tendo-se por base o relatório final da CEV/SE, organizado por Andréa Depieri de Albuquerque Reginato e Gilson Sérgio Matos Reis.
Um direito a ser exercido
O direito à Memória e à Verdade corresponde ao reconhecimento dado às vítimas e a toda a sociedade de que o Estado e setores institucionais e/ou civis foram responsáveis por violações de direitos humanos.
O direito à Justiça pode ser compreendido de duas maneiras. A primeira delas diz respeito ao direito individual das vítimas de verem seus algozes punidos pelos crimes que cometeram contra elas mesmas ou contra seus familiares e entes queridos. A outra maneira diz respeito ao direito coletivo de que criminosos não permaneçam impunes em relação aos seus crimes.
Para além do direito ao reconhecimento de sua história, memória e verdade, as vítimas de graves violações de direitos humanos devem ser reparadas material, simbólica e psicologicamente. Com relação à reparação material, normalmente se apela à ajuda financeira ou a indenizações compensatórias pagas pelo Estado em reconhecimento da violência infringida por seus agentes às vítimas.
O direito à Reforma Institucional é um direito das vítimas e de toda a sociedade. Ele se dá quando o Estado reconhece que o legado de um período autoritário e violento necessita ser interrompido e que, ao término de um período de conflitos e violências, as instituições responsáveis por essas devem ser extintas ou reformadas, os agentes punidos e as leis autoritárias devem ser removidas.
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