WAGNER LEMOS, especial para Mangue Jornalismo
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.


Família de indígenas sumiu e deu lugar apenas ao cacique Serigy (Crédito Wagner Lemos)
Sei que há muito não se deve usar a terminologia “índio” para fazer referência aos povos originários, os povos indígenas.
No entanto, a expressão é aqui utilizada numa retomada da época dos filmes de bang-bang em que não apenas se falava “índio”, mas também havia horas de tela com tiroteio de cowboy matando índio como coisa corriqueira, naturalizando a violência colonialista na aura de faroeste.
Aracaju é uma curiosa cidade de faroeste em um jeito muito peculiar de ser. Na visão enviesada de alguns, como nas cidades dos filmes de faroeste, não há leis e nem critérios para estabelecer a ordem. Cria-se uma realidade particular descolada do todo o resto do mundo e isso basta para que uns e outros façam o que bem querem e causem o mal coletivo.
Há um bom número de anos, muita gente reclamou, grupo em que me incluo, da falta de ações na cultura da cidade de Aracaju. O Palácio Inácio Barbosa, sede do poder municipal abandonado há quase duas décadas; o Museu da Bandeira e o Museu do Mangue largados aos escombros; monumentos sem manutenção e um deles em escabrosa situação: o conjunto de três estátuas que homenageava os povos indígenas deste estado.
O conjunto formado por homem, mulher e bebê ficava na Praça da Catedral Metropolitana. Os escombros se reduziam a pó como a pó deveria se destinar a mediocridade disfarçada na frase mentirosa da “capital da qualidade de vida”.
Não tem zabumba certa que salve a tosca visão de cultura de certas figuras desta terra. Nas raspas do fim de governo, em um arremedo de solução, tomou-se uma atitude. Decidiram “salvar o patrimônio cultural”.
Os mais velhos tinham um ditado para avaliar coisa malfeita: “parecendo a cara de quem fez”. Não sei se é o caso de aplicar a frase da sabedoria popular, mas o que é certo que não se fez como deveria.
O monumento da família indígena foi removido. Encomendaram e puseram uma nova estátua no lugar. O artista de real valor que fez o novo monumento não tem culpa de nada: cumpriu a tarefa que lhe atribuíram. Requereram uma estátua maior de um homem indígena, o Cacique Serigy, assim, com engenho e arte, fez. Isso mesmo, a família foi desfeita e apenas restou a representação masculina em um grande pedestal.
Um pouco mais atrás da nova obra tiveram a “brilhante” ideia de colocar um pedestal com apenas uma das estátuas do conjunto anterior. Desapareceram a mulher e o bebê. Ficou apenas uma estátua decapitada com uma placa ridícula com os dizeres “Estátua remanescente do monumento ao Cacique Serigy, de autoria de Eurico Luiz”.
Desapareceram a mulher e o bebê. Ficou só a estátua decapitada com uma placa ridícula (Crédito Wagner Lemos)
Onde está a gestão de restauro e conservação que não pôde agir no monumento da família indígena? Onde estão as partes da peça referentes à mulher e ao bebê indígenas? Houve a política do faroeste do “mata índio”? Houve mais uma vez a política da exaltação masculina já que só se fez novo monumento do homem? Com trilha sonora de zabumba, inaugurou-se em Aracaju nova modalidade de feminicídio e infanticídio, o de assassinato da memória dos bens culturais?
A qualidade de vida nestas terras é bem às avessas e, ao que tudo indica, se traduz em eliminar árvores, espalhar cimento nas áreas permeáveis, ignorar a existência das pessoas em situação de rua, abandonar prédios históricos, museus e a novidade de reproduzir nas estátuas o genocídio.

Doutor em Literatura (USP), professor universitário (UNEB), membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e cidadão sergipano