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A luta dos invisíveis das periferias. Mesmo vivendo em áreas com péssimos saneamento, transporte, saúde, segurança, alguns chegaram na ExpoFavela

ANA PAULA ROCHA, da Mangue Jornalismo

“Quem não é visto, não é lembrado”, disse a artesã Sandra Monteiro, ao justificar sua inscrição como expositora na primeira edição do ExpoFavela Innovation Sergipe, evento realizado pela Central Única das Favelas (CUFA) e Favela Holding, iniciativas fundadas pelo empresário e ativista social carioca Celso Athayde.

Nos dias 04 e 05 de agosto, o Centro de Convenções AM Malls Sergipe, no Distrito Industrial de Aracaju, recebeu dezenas de empreendedores que seria de áreas periféricas da capital, da região metropolitana e de outras cidades de maior porte, além de palestras e apresentações culturais. Mas, quem da favela estava mesmo no ExpoFavela?

No site oficial do evento, afirma-se que “em Aracaju, o número estimado de pessoas que moram em favelas é em torno de 53 mil, representando 7,37% do total da população sergipana”. Segundo a organização, 41% dos moradores dessas localidades em Sergipe empreendem.

Muito associado à realidade urbana do Rio de Janeiro, o termo “favela” aplicado a Sergipe causou estranheza a alguns. Sandra Monteiro, que desde 2018 administra o @perolas.encantadas, confeccionando tiaras em pedrarias e pérolas, disse que “o nome favela é muito pesado”.

A artesã definiu favela como “a comunidade menos favorecida com relação a tudo: educação, transporte, estrutura e saneamento básico. Eu acredito que a comunidade que tem todas essas características, independentemente de ser zona sul ou norte, pode ser considerada como favela.”

Desde 1991, o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) usa o termo “aglomerações subnormais” para definir áreas urbanas ocupadas para moradia de forma “irregular” – porque pertenceriam a outros, seja o poder público ou “proprietários privados” – e onde os serviços públicos básicos não chegam ou são precários. Essas áreas incluem, por exemplo, o que os cariocas chamam de favelas.

Periferia como realidade cultural

Para além dos inúmeros problemas de infraestrutura enfrentados por residentes em aglomerações subnormais sergipanas, há também variedade nas soluções desenvolvidas a nível cultural e econômico. Victor Hugo, mais conhecido como @opiordearacaju, é um artista plástico do bairro Santos Dumont que viu no picho uma maneira de lidar com os problemas que enfrentava. Por meio da pichação conheceu o grafite e mais sobre a cultural hip hop. 

“Quando eu fui para a arte, foi num dos piores momentos da minha vida. Foi quando eu estava passando necessidade com a minha mãe. Como eu já tinha um conhecimento no movimento hip hop em relação à pichação, eu comecei a fazer quadros, e as pessoas foram abraçando.” Além de grafite, o jovem de 27 anos assina uma marca de roupas que produz peças únicas feitas a mão em patchwork, técnica que usa retalhos.

“É complicado pra a pessoa que é empreendedor de favela, porque o apoio da pessoa é ela mesma. Hoje em dia, eu consigo participar de eventos grandes, fazer colab com marcas grandes porque eu coliguei com pessoas que têm contatos”, disse Victor Hugo.

“A gente só conseguiu chegar aqui porque a escola deu oportunidade”

Jeferson Gonzaga, estudante do Ensino Médio, morador do bairro São Conrado e um dos integrantes @vizy.startup, concorda. “Acho que, de modo geral, isso se dá mais por falta de oportunidade. Por exemplo, a gente só conseguiu chegar aqui porque a escola deu oportunidade pra a gente de fazer parte de um projeto específico.”

Junto com os colegas Gabriel Lima e Izabely Fernandes, Jeferson desenvolveu um protótipo de assistente virtual que visa auxiliar pessoas com perda parcial ou total da visão a usar aplicativos. Os adolescentes e Victor Hugo estão à frente de dois dos dez projetos selecionados na ExpoFavela pra representar Sergipe em São Paulo.

Gicelma, da @fofalleti.kids, participava de seu primeiro evento. “Bombástico, né? Passou em jornal e tudo!”. A ex-recepcionista de 35 anos passou a confeccionar brinquedos, enxovais de bebê e peças decorativas infantis como renda extra depois de deixar o emprego para cuidar da filha. Foi justamente ela quem deu a ideia para a mãe confeccionar brinquedos a partir de desenhos feitos por crianças.

Gicelma produz bonecos usando a técnica japonesa amigurumi. Foto: Ana Paula Rocha.

“A gente sabe que são pessoas de baixa renda que muita gente não dá valor. Só porque mora na favela, acha que aquela pessoa não tem um valorzinho, sempre é rebaixado. Se você pensar bem, a gente tem várias ideias boas que podem expandir”, disse Gicelma.

Já o Centro Integrativo Social Carajás, da cidade Nossa Senhora do Socorro, reúne mais de 30 mulheres artesãs em prol do empoderamento e o empreendedorismo femininos. “Nós temos do artesanato convencional até o artesanato sustentável”, como explicou a coordenadora geral do projeto, Mirtes Pereira. Um dos produtos expostos pelo grupo eram absorventes ecológicos.

Entre as fotos com um e outro visitante do estande, Mirtes aponta para uma senhora de óculos que sorria e acenava para ela. “Estar nesse evento hoje foi muito importante pra mim, que represento 35 mulheres, e principalmente pra elas, porque elas hoje estão se sentindo muito valorizadas”.

A questão da terra no Brasil é vital para compreender as periferias

Augusto Cruz, assessor técnico popular na Chão Assessoria e bolsista do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC), ressalta que “a questão habitacional é um problema crônico no Brasil”. Ele cita a Lei Nº 601/1850, mais conhecida por Lei de Terras, como agravante de um processo de formação latifundiária brasileira que começou com a ocupação portuguesa do lado de cá do Atlântico. Com a lei, a aquisição de terras no país passou a ser feita somente por compra, o que não impediu a grilagem de terras no Brasil.

“A terra perde seu sentido social quando se torna propriedade privada. Uma das questões que envolve a terra é a moradia. Em cidades maiores, isso sempre foi se colocando como pauta urgente, porque as condições de moradia das populações, principalmente no meio urbano, são ruins desde o surgimento das cidades”, explicou o pesquisador.

Em artigo do livro “Reforma Urbana e Direito à Cidade: Aracaju”, publicado no ano passado e disponível para download gratuito, Sarah Lúcia Alves França, coordenadora regional do Observatório das Metrópoles Núcleo Aracaju e dois pesquisadores do grupo escrevem que “nas duas décadas do século XXI, apesar da efetivação dos novos programas de construção de moradia […] que construíram, no total, mais de 30 mil unidades habitacionais na RMA [Região Metropolitana de Aracaju], a precarização da moradia foi ampliada pela dificuldade de atendimento às famílias de até 3 salários mínimos”.

Mapa dos aglomerados subnormais na Região Metropolitana de Aracaju entre 2010/2019. Imagem: Livro “Reforma Urbana e Direito à Cidade: Aracaju” organizado pela professora do Departamento de Urbanismo (DAU) da UFS Sarah Lúcia Alves França e publicado em 2022.

As assessorias técnicas populares, caso da Chão Assessoria, são uma das iniciativas nascidas da necessidade de construir com participação direta dos interessados – as populações vulneráveis residentes em áreas urbanas irregulares – abordagens e políticas públicas de habitação com um olhar socioambiental.

“A questão central para se discutir é como a propriedade da terra criou cidades no Brasil que não são saudáveis, que não têm condições de abrigar as pessoas de forma minimamente adequada”, destacou Augusto Cruz.

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