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60 anos do golpe de 1964. Para combater a tradição golpista da extrema-direita no Brasil é urgente a retomada do debate sobre memória, verdade e justiça

FERNANDO SÁ, especial para a Mangue Jornalismo

A memória dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964 traz-nos reflexões sobre aspectos éticos e políticos para a profissão de historiador, especialmente para os que tem compromisso com a democracia, o que torna impossível escrever de maneira neutra o passado e o presente, diante da permanência da cultura política autoritária no Brasil (ARAÚJO, 2020: p. 33).

Ao invés de “descrições neutras do passado e do presente”, o giro ético-político tem produzido discursos que, muitas vezes, manifestaram uma dimensão de “performatividade” pela qual se “estabelecem ativamente quebras ou ‘distâncias’ temporais entre passado e presente” (BERVENAGE, 2018: posição 444).

As datas redondas, como essa, são “conjunturas em que as memórias são produzidas e ativadas. São ocasiões públicas, espaços abertos, para expressar e atuar os diversos sentidos que se outorga ao passado – reforçando alguns, ampliando e mudando outros” (JELIN, 2004: p. 150).

Contudo, as rememorações se modificam ao longo do tempo, de acordo com as disputas políticas de cada conjuntura, como podemos ver na última década no Brasil, com a emergência e crescimento da extrema-direita, que defende a ditadura empresarial-militar como modelo de governo.

Um museu apenas

No Brasil, diferentemente de outros países do Cone Sul, somente existe um museu ligado à temática “memória, verdade e justiça” no Brasil, que é o Memorial da Resistência, em São Paulo, demonstrando que não conseguimos avançar “na construção da memória das perseguições, torturas e assassinatos do período da ditadura civil-militar”.

A força da memória militar na sociedade brasileira demonstra a fragilidade das nossas instituições democráticas, principalmente porque as Forças Armadas mantêm “sua própria versão do passado”, obstaculizando o acesso aos documentos da repressão política, que poderia responsabilizar o Estado por atos de violações dos direitos humanos (SANTOS, 2021: p. 75).

“A ausência de uma severa crítica ao Regime Militar, no pós-1985, e o caráter pactuado da transição, foram exatamente as brechas que permitiram a contra narrativa antidemocrática” (SILVA; SCHURSTER, p. 285), que estava “assentada no negacionismo sobre as violações do passado e na afirmação de um caráter positivo do passado autoritário”.  A desconstrução da política de memória do Estado brasileiro, operada durante o governo Bolsonaro, colocou dificuldades para as Comissões de Anistia e a de Mortos e Desaparecidos Políticos executarem “suas atividades de buscas e identificação de pessoas desaparecidas políticas, bem como nas políticas de reparação pelos danos causados aos familiares de mortos e desaparecidos” (BENETTI, 2020: p. 4 e 13).

Perguntas que não querem calar

Como as iniciativas governamentais anteriores foram desestabilizadas e apagadas, com tamanha facilidade por parte deste governo autoritário e da mobilização de movimentos reacionários, na última década, no sentido do apagamento e falsificação do passado nacional? (SANTOS, 2021: p. 59). Será que manter a política de esquecimento colocada em prática pela conciliação da transição democrática é a melhor forma de seguir em frente, como propôs o atual presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, contra a participação governamental nas batalhas da memória dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964?

Pensamos que não. Para combatermos a tradição golpista da extrema-direita no Brasil, presente nos golpes de 1964 e de 2016 e na intentona de 8 de janeiro de 2023, cujo eixo comum é o discurso anticomunista, a conjuntura atual coloca a mais que necessária retomada do debate sobre “memória, verdade e justiça”, pois o “silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da ditadura, acostuma a silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje”.

Nossa tarefa de análise deve “produzir instrumentos de reflexão para esclarecer também o presente, para evitar a repetição incessante, sob novas formas, das políticas de exclusão” (GAGNEBIN, 2010: p. 185 e 184).

Não esqueçamos que os direitos humanos remetem a algo muito mais amplo que as violações que ocorreram em tempos de ditaduras. Os direitos dos presos nas cadeias, o direito ao trabalho e toda a gama de direitos econômicos, sociais e culturais, assim como as reivindicações territoriais por parte dos povos originários, são parte da agenda de direitos humanos” (JELIN, 2014: p. 234).

A efetivação de uma política de memória estatal e não governamental é o primeiro passo para avançarmos na construção de uma cultura política democrática. Por isso, manter e reativar iniciativas memoriais institucionais sobre a herança da ditadura na democracia, como a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP (Lei nº 9.140 de 1995) é da maior importância, mas que, infelizmente, o atual governo não tem dado a devida atenção para a consolidação institucional da defesa da memória e da democracia.

Do mesmo modo, a retomada do projeto Memórias Reveladas e a implementação das ações educacionais propostas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade são imprescindíveis para o avanço da democracia no Brasil. Por isso, insistimos na “memória das ditaduras” para a emergência de uma multiplicidade de lugares de fala dos diversos atores como enunciadores de uma memória da violência e do arbítrio e, de outro, o engajamento na luta pela salvação de acervos, depoimentos e lugares de memória (SILVA in ASSIS, 2001).

Denunciar os crimes da ditadura empresarial-militar

Se a conjuntura atual não possibilita-nos ir além da “política do possível” da Nova República, que limitou a luta pela justiça em relação aos crimes da ditadura “ao discurso do direito à memória e à verdade” (TELES, 2018), ao menos denunciar os crimes da ditadura empresarial-militar, criada a partir do golpe de 1º de abril de 1964, e dos ataques à democracia, perpetrados em dois momentos históricos mais recentes, como o golpe de 2016 e a intentona bolsonarista de 2023, podem reiterar que a memória “pode trazer aprendizados e evitar repetições” (SANTOS, 2021: p. 76), já que “… historicamente, o autoritarismo no caso brasileiro não se manifesta apenas sob a forma de ditaduras”.

A continuidade da cultura política autoritária esteve presente desde as práticas oligárquicas da Primeira República, passando pela “dita ‘vaga’ democrática entre o Estado Novo e a ditadura de 1964, com suas tentativas de golpe e perseguição política às formas de organização autônoma da classe trabalhadora” (OLIVEIRA, 2016: p. 229).

Talvez a ideia-força do “dever de memória” possa contribuir para o “convencimento do imperativo moral ou dever cívico de lembrar o horror como antídoto para prevenir violências e horrores futuros” (JELIN, 2018: p. 280), ainda que nem sempre são tão diretas as relações entre memória e democracia, geralmente, marcadas pela incerteza das conjunturas políticas em disputa.

Um dos caminhos possíveis para o enfrentamento dos “passados atrozes” pode ser a criação de lugares de memória, pois memoriais e museus “fazem parte da construção de pontos de referência que servem como denúncia às arbitrariedades perpetradas no passado e precisam superar desafios e obter o apoio de um público maior” (SANTOS, 2021: p. 76).

O símbolo do abandono do patrimônio ferroviário

Em Sergipe, temos um complexo ferroviário de Aracaju, localizado na Praça dos Expedicionários, no bairro Siqueira Campos, que representa um significativo patrimônio histórico da cidade, abandonado desde a desativação das atividades, em 2012.

Além de se constituir em patrimônio ferroviário, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o local, se transformado em Centro de Memória, pode conectar as lutas contra o fascismo, presente na Praça dos Expedicionários, com a resistência da luta operária contra o golpe de 1964, conforme registrado em vários depoimentos na Comissão Estadual da Verdade.

Partindo do princípio de que o direito à memória se constitui em uma das dimensões fundamentais da plena cidadania, essa instituição supriria um problema estrutural na legislação mitigadora da extinção da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), que tem prescindido “do reconhecimento de memórias sociais específicas de cada localidade, ou seja, prescindiu do conhecimento dos significados da memória ferroviária em cada localidade” (PROCHNOW, 2013: p. 72).

Nessa instituição, poderíamos ter o armazenamento e/ou referencialização da documentação produzida pela Comissão Estadual da Verdade, mas também da história da luta dos ferroviários ao longo de todo o século XX, articulada com a resistência antifascista na Segunda Guerra Mundial.

Ao mesmo tempo, criar-se-ia um acervo de imagens para a realização de exposições e mostras visuais, bem como a aquisição de livros sobre a memória e democracia. A execução de oficinas e palestras proporcionaria à comunidade acesso aos projetos que fossem desenvolvidos pelo Núcleo de Documentação e Pesquisa.

Estruturada por uma narrativa democrática e antifascista, a construção de uma pedagogia da memória pode nos proporcionar futuros mais democráticos e menos violentos, desenvolvendo ações comunitárias e itinerantes.

Como apontou Hugo Achugar, os “usos do futuro são, também, fundamentalmente, usos do passado” (ACHUGAR, 2006: p. 223), pois a memória social é constituída por meio de disputas sociais e políticas que, ao lidar com traumas coletivos e individuais nos processos de consolidação da democracia, proporciona um suporte aos sujeitos históricos que batalham para definir/construir o futuro.

À luta, companheirxs.

Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe

*Comunicação apresentada no Seminário 60 anos do Golpe: Golpes e violências no Brasil contemporâneo (Departamento de Filosofia/UFS – ADUFS-SSIND, 1/4/2024).

* À Marcélio Bomfim, por sua luta em defesa da memória e da democracia

Referências:

ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.

ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. História Oral e Memória da Ditadura Militar: o papel dos testemunhos. In: GOMES, Castro de Angela (org). História oral e historiografia: Questões sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2020.

BENETTI, P. Et. al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: Entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, Vol.11, e48060, 2020. DOI: 10.12957/rmi.2020.48060|e-ISSN: 2177-7314

BERVENAGE, Berber. História, memória e violência do Estado: Tempo e Justiça. Vitória/ES: Milfontes, 2018 (e-book).BENETTI, P. Et al. Políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, Vol.11, e48060, 2020.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.).  O que resta da ditadura. São Paulo: BOITEMPO, 2010.

JELIN, Elizabeth. Fechas de la memoria social. Las conmemoraciones en perspectiva comparada, en ÍCONOS, n. 18, Flacso-Ecuador, Quito, 2004, pp. 141-151.

JELÍN, Elisabeth. Memoria y democracia: Una relación incierta. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales. Universidad Autónoma de México. Nueva Época. Año LIX, n. 221, mayo-agosto de 2014, p. 225-242.

JELIN, Elizabeth. La lucha por el pasado. Cómo construimos la memoria social. 2ª. Edición. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2018.

OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. O Golpe de 2016: Breve ensaio de história imediata sobre democracia e autoritarismo. Historiæ, Rio Grande, 7 (2): 191-231, 2016.

PROCHNOW, Lucas Neves. O Iphan e o patrimônio ferroviário: a memória ferroviária como instrumento de preservação. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2013 (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultura).

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (org.). Memória Coletiva e Justiça Social. São Paulo: Garamond, 2021.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Apresentação. In: ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe (1962-1964). Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2001.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da e SCHUSTER, Karl. Militares e bolsonarismo: um caso da transição falhada e democracia inacabada. In: SILVA, F. C. T. da e SCHUSTER, K. (org.). A República sitiada: militares e bolsonarismo no Brasil. Recife: Edupe, 2022 [livro eletrônico].

TELES, Edson. O abismo na história: Ensaios sobre o Brasil em tempos de Comissão da Verdade. São Paulo: Alameda, 2018.

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