CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
Manoel José Bomfim. Para muitos, um nome comum que não convoca memória nenhuma. Talvez um parente antigo. Hoje já não se batizam muitos Manoeis. Outros ligam esse nome a uma rua ou uma escola que já ouviram falar. Um grupo reduzido diz que esse sujeito traz uma vaga lembrança de alguém importante na história, mas nada que isso. Para uma minoria da minoria, sim, trata-se de um grande intelectual brasileiro esquecido.
De fato, Manoel Bomfim é um sujeito quase invisível na história, apesar de ser um dos mais importantes pensadores, formuladores e intérpretes do Brasil e da América Latina. Sim, ele nasceu na pobre Aracaju em 1868, no dia 8 de agosto. Manoel foi profundamente silenciado pela elite letrada e reacionária do Brasil por ele tinha fortes críticas ao colonialismo europeu que produziu exploração e pobreza. Também foi apagado porque fazia uma defesa enfática de que a saída para os males dos países invadidos, como o nosso, é o investir em educação popular.
Nos últimos anos, alguns pesquisadores se esforçam para jogar luzes sobre as extraordinárias contribuições de Manoel Bomfim ao pensamento crítico brasileiro e latinoamericano. A professora Terezinha Oliva (UFS), uma das mais importantes acadêmicas sergipanas, fez isso e em 7 de maio deste ano lançou o livro “Manoel Bomfim, um intérprete do Brasil”, editado pela Secretaria de Estado da Educação (Seduc). É com ela que a Mangue Jornalismo conversou um pouco sobre esse aracajuano tão pouco conhecido para sergipanos e brasileiros.
Mangue Jornalismo (MJ) – Professora, é verdade que Manoel Bomfim somente foi redescoberto em 1984, quando Darcy Ribeiro, em um ensaio, classificou esse aracajuano como “o pensador mais original da América Latina”? Em que reside a originalidade e centralidade do pensamento de Manoel Bomfim, sua importância ontem e hoje?
Terezinha Oliva (TO) – Manoel Bomfim foi um escritor muito conhecido ao seu tempo e teve livros adotados na escola até a década de 1950. Na década seguinte ocorreu o seu silenciamento; os livros didáticos deixaram de ser adotados e as obras de interpretação sobre o país e o continente, não tinham feito seguidores. Darcy Ribeiro leu “A América Latina”, obra de Bomfim, de 1905, durante o exílio, numa biblioteca de Montevidéu. Isso aconteceu entre 1964 e 1968, o período do exílio. Então ele se surpreendeu com o que leu e julgou Bomfim o “pensador mais original da América Latina”. Mas a surpresa e o estranhamento também foram revelados, no mesmo período, por outros leitores, como Vamireh Chacon, estudioso pernambucano, que em 1965 perguntou, espantado: “Por que não se fala nesse Manoel Bomfim?”
MJ – Não se fala porque seu pensamento se chocava com a ideologia oficial, não é isso?
TO – Sim, a leitura provoca choque, porque a visão de Bomfim sobre a colonização europeia e os motivos do “atraso secular” do continente latino-americano, a suposta incapacidade dos seus povos para o progresso e a atribuição, aos colonizadores, de uma superioridade racial, tudo isso é descartado pelo escritor sergipano, que mergulha na História e nos modos de exploração colonial para mostrar o que acontecia no Brasil e nos outros países da América do Sul. A atualidade desse autor decorre de aspectos para os quais ele chamou a atenção e que ganharam mais importância no processo brasileiro. Mas Bomfim foi marcado por diferentes apropriações do seu pensamento, à direita e à esquerda, ainda no seu tempo e hoje ele pode ser inspirador, mas é claro que algumas das suas leituras estão datadas.
MJ – É exatamente em razão dessa originalidade em seu tempo que Manoel Bomfim é rigorosamente invisibilizado pela historiografia brasileira? Digo “em seu tempo” porque as ideias dele estavam em contraposição ao pensamento dominante. É isso?
TO – Vários estudiosos tentam dar respostas a essa invisibilidade que atingiu a obra de Manoel Bomfim. Darcy Ribeiro, que prefaciou “A América Latina: males de origem” no seu reaparecimento, em 1993, mostra como Bomfim foi contra as correntes de pensamento predominantes e as visões de todos os grandes intelectuais brasileiros do seu tempo, como o nosso Sílvio Romero. A teoria da desigualdade inata das raças e o Darwinismo Social tinham status de teorias científicas e a coragem do autor sergipano em desmascará-las, mesmo sendo um evolucionista, o tornou alvo de terríveis ataques para desqualificá-lo. Além disso, a linguagem de Bomfim é reconhecidamente a de um militante, apaixonado e ele enveredou por uma explicação biológica que ficou datada, de modo que, quando, após os horrores cometidos na II Guerra Mundial, as teorias da superioridade da raça branca começam a ser descartadas, sua obra não foi tomada como referência. É realmente estranho o silenciamento do seu nome, mesmo quando o assunto o obrigaria, como a atual retomada dos estudos sobre eugenia e o que eles causaram no país.
MJ – Além de apagado nacionalmente, Manoel Bomfim também é um ilustríssimo desconhecido em Aracaju e em Sergipe. Isso se deu ainda pelas polêmicas discussões entre Sílvio Romero e ele? Romero defendendo, por exemplo, o branqueamento da população como solução para o “defeito de formação” do brasileiro, e Bomfim valorizando a miscigenação e negando a validade científica das teorias racistas. É isso?
TO – Sim, Sílvio Romero escreveu nos jornais e publicou, depois, uma obra com o mesmo título do livro de Bomfim que ele desqualificou, “A América Latina”, na qual, em mais de 400 páginas ele procura destruir o pensamento do seu conterrâneo e apequena-lo intelectualmente. As visões dos dois sobre a questão racial no Brasil são completamente opostas, com Manoel Bomfim vendo na miscigenação racial um fator que facilitaria o progresso no Brasil e Sílvio Romero propagando a tese de que a imigração europeia seria necessária para branquear a população brasileira e assim tornar possível o progresso. O que aconteceu em Sergipe, ao meu ver, é fruto, em parte, da força e do respeito para com a tradição dos intelectuais da Escola do Recife, como Tobias Barreto, Fausto Cardoso e Sílvio Romero, em que não se inclui Manoel Bomfim e o fato de que nenhum dos intelectuais sergipanos do seu tempo retoma as suas ideias. Além disso, embora tendo revelado o seu amor por Sergipe – a quem ele dedica o livro “A América Latina” – Bomfim teve uma passagem pela política local que não prosperou. Ele ocupou a vaga deixada na Câmara Federal pela morte de Fausto Cardoso, um ídolo em Sergipe; em 1907 ele se tornou deputado federal por Sergipe, mas não conseguiu fazer carreira. Hoje temos ruas, escolas, a biblioteca do Instituto Histórico e uma medalha instituída pela Assembleia Legislativa, com o nome de Manoel Bomfim, além de estudiosos locais e obras importantes, publicadas sobre o seu pensamento. Esperemos que isso o faça mais conhecido dos conterrâneos.
MJ – Manoel Bomfim tinha um pensamento crítico sobre a exploração do povo e o saque de nossas riquezas. Em que medida, esse pensar se articula com suas importantes produções no campo da Educação Pública, da Psicologia, da História, da Cultura e do Jornalismo? Desses campos (Educação, Psicologia, História, Cultura e Jornalismo), o que podemos destacar?
TO – Manoel Bomfim fez parte de uma geração de intelectuais que tinha, na frase feliz do historiador Nicolau Sevcenko, “a literatura como missão”. Intelectuais que queriam “salvar” o país do atraso, de certa forma, redimir a nossa trajetória histórica. A questão reside em que ele não repete as teorias externas sobre o Brasil e a América Latina e na contramão delas, não vê a presença europeia no continente como fruto de um processo civilizatório, mas como fruto da exploração capitalista mais brutal, destruindo o meio ambiente, os saberes acumulados, as culturas construídas e os povos. Então, além de teorizar sobre aquele processo, ele acreditou que a saída para os países colonizados estava na educação popular e admitia que a única inferioridade dos seus povos era a ausência do acesso à educação.
MJ – E Manoel publicou sobre isso, não foi?
TO – Sim, sim, ele usou a imprensa, os livros – e ele escreveu vários títulos didáticos – esteve no grupo que criou a primeira revista infantil no Brasil, O Tico-tico e exerceu cargos de direção nas áreas da educação pública e da formação de professores. O livro didático escrito em parceria com Olavo Bilac, “Através do Brasil”, foi usado nas escolas de vários estados, entre 1910 e a década de 1950. É um compêndio para o Curso Primário com noções de Geografia, de História, de fundamentos da economia e uma mensagem sobre o valor do povo brasileiro. Mas ele escreveu obras de Psicologia, de Composição (escrita), de Ciências, de Didática, foi um incansável divulgador do conhecimento e se dirigiu especialmente aos professores, sobre como tratar as crianças, como fazer funcionar as escolas, enquanto, ao mesmo tempo, mergulhava na História e na Cultura Brasileira, chegando, no seu último livro, “O Brasil Nação”, a formular um programa político para o Brasil.
MJ – Em que medida podemos afirmar que Manoel Bomfim é um dos intérpretes do Brasil no mesmo patamar, ou mesmo superior, de um Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Josué de Castro, Milton Santos, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Maria da Conceição Tavares?
TO – Darcy Ribeiro citou a maioria dos nomes enumerados nessa pergunta, descobrindo neles “ressurreições” das ideias de Manoel Bomfim, mas diz que eles não foram leitores de Bomfim. Ou seja, ele quis dizer que o nosso conterrâneo divulgou interpretações que se tornariam, em parte, correntes mais tarde. Ele não admite a velha história de “pensador adiante do seu tempo”, porque todo autor é filho do seu tempo, mas dá a entender que o que Bomfim viu e analisou, antes deles, terminou se impondo aqui e ali, embora nunca como um todo, nem mesmo como resultado do conhecimento da sua obra. Vários foram os leitores de Manoel Bomfim que destacaram diferentes aspectos do seu pensamento.
MJ – Por exemplo?
TO – A nossa professora Thetis Nunes, desde os anos sessenta mostrava Bomfim como um dos criadores do nacionalismo brasileiro e do pensamento sobre o desenvolvimento nacional ; Dante Moreira Leite destacou a singularidade do seu pensamento sobre a formação do brasileiro e sobre a natureza da exploração colonial; Flora Sussekind e Roberto Ventura destacaram nos anos oitenta, no livro “História e Dependência”, a interpretação da colonização como uma leitura biológica, descobrindo na linguagem usada por Bomfim uma possível dificuldade à sua divulgação. Zilda Lokói chamou a atenção para a atualidade do seu nacionalismo revolucionário e a preocupação com as classes desprotegidas. Enfim, a partir dos anos noventa do século passado houve um interesse na obra do pensador sergipano, foram reeditadas vários dos seus livros, que hoje são totalmente acessíveis, ele foi biografado, inclusive numa obra premiada, “O rebelde esquecido”, de Ronaldo Conde Aguiar e eu mesma estudei a sua visão do Brasil através do pensamento geográfico, que foi publicada pela editora Seduc, sob o título “Manoel Bomfim, um intérprete do Brasil”.