O show Diaspora’S do ativista cultural, capoeirista e pesquisador Mestre Negoativo e do rapper Douglas Din representa em oito canções a música afromineira, trazendo soul, reggae, narrativa oral, berimbaus e freestyle.
Yabás, rap, mandingueiros, soul, berimbau, reggae, um pouco de francês, riffs pesados e muitos Silvas. Muita coisa, muita gente. Tudo e todos convocados pelos mineiros de Belo Horizonte Mestre Negoativo e Douglas Din para o show Diaspora’s, criado exclusivamente para o projeto Sonora Brasil, após o convite do rapper mineiro Roger Deff. No repertório, fala-se sobre relações, perdão, sobre genocídio do povo negro, cultura afromineira e afrobrasileira e que aparecem no palco de forma contundente, genuína e ao mesmo tempo afetuosa, fazendo dialogar as histórias orais da avós com o freestyle.
Ramon Lopes, conhecido como Mestre Negoativo, se apresenta com berimbaus de barriga, levando para a plateia, além de tudo, a capoeira. Em trajetória diaspórica sankofa, dos pés fincados na comunidade Maria Goretti alcança África. É pesquisador das tradições afro-mineiras de origem Banto e já dirigiu dois documentários um deles filmados no Senegal. Em 1997 fundou a banda Berimbrown, que o permitiu dividir palcos com Elza Soares, Sandra de Sá e Gilberto Gil.
O rapper parceiro Douglas Din traz em si e para o palco outros aspectos da diáspora negra transnacional. Criado na Vila Santana do Cafezal, localizada no Aglomerado da Serra, Din é duas vezes campeão do Duelo de MCs Nacional (2012 e 2013), momento a partir do qual se torna referência no hip hop. O Viaduto de Santa Tereza, onde começou a duelar em 2007, é um símbolo de resistência cultural e de ocupações de espaço público urbano.
Eles compõem uma das 10 bandas que viajam o país no projeto Sonora Brasil do Sesc, que revela potências musicais de Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Pará. Nesta entrevista, falam sobre narrativa griot, avós, influência bantu, rap indígena, da cultura afromineira e da relação dela com outras manifestações culturais negras a partir das trocas que têm feito durante as apresentações. A dupla passou por Aracaju. No dia 10 de setembro, antes do show no Sesc Comércio, Centro da cidade, eles conversaram com a Mangue Jornalismo.
Mangue Jornalismo (MJ) – Como é que foi essa experiência de formatar o Diaspora’s?
Mestre Negoativo (MN): Especificamente para o Sonora Brasil, a proposta é artistas de gerações diferentes… O grande lance é esse. Dois homens pretos retintos, periféricos, não tem como a gente não trazer no nosso som toda essa diáspora, que a gente faz parte dela desde sempre. Não só no tom da pele, mas também na nossa voz, o nosso tocar, o nosso entendimento, o nosso corpo pensante, político. A gente tem dialogado com esses gêneros diaspóricos que transitam ali. Esse Atlântico negro.
Douglas Din (DD): O Sesc tem essa temática, dos tempos, encontros e territórios. A gente teve uma orientação para trazer um pouco daquilo que é o nosso território. Eu como músico, já experimentei outros estilos, acredito que o Negativo também, mas acho que esse show traz um pouco daquilo que é mais forte em nós. A minha escolha, pelo menos, das minhas músicas, quatro minhas e quatro do Nego, foi baseada nessa coisa do que é o meu território de fato, que é o rap, que é o blues, que é uma área que eu também comecei a estudar um pouco mais.
MJ – Morei um tempo em BH e, quando cheguei, não vi de cara a afromineiridade. Aos poucos fui vendo que tinha toda essa negritude pulsante. Queria que falassem um pouquinho sobre isso, porque parece haver uma invisibilidade.
MN: Sim, verdade. Uma coisa que eu tenho percebido pelas minhas andanças em outros territórios é isso. Essa manifestação bantu afromineira é muito preservada, fica muito no cantinho de Minas Gerais. A nossa cultura é diferente, por exemplo, das culturas que eu vejo, a grande maioria do Nordeste, que são mais para fora, são mais festivas, muitas das vezes. Essa cultura preta, belorizontina, mineira, ela é mais para dentro. E toda a nossa coisa que vem dos vissungos, do congado, dos candombes, enfim, dos catopês, é uma coisa mais para dentro. Nosso canto é mais lamentado, é um pouco mais arrastado. É como se fosse o blues em New Orleans, é um canto de trabalho, é um canto de lamento, essa cultura de raiz afromineira. Então, não é uma cultura que outras pessoas, principalmente pessoas que vêm de outras regiões, vão encontrar assim facilmente. Você tem que se aquilombar para encontrar esses elementos diaspóricos no estado de Minas Gerais. Ao redor de Belo Horizonte tem muitos quilombos, inclusive dentro de Belo Horizonte tem quilombos urbanos. Então é muito presente. Claro que de uns anos para cá, né, Douglas, a gente tem manifestado mais. Acho que é uma retomada, que toda a comunidade negra, não só no Brasil, pelo que eu tenho percebido, no mundo todo, nesse processo mesmo de retomada. Claro que em Minas Gerais também, todo um estado de plena branquitude , que sempre tentou nos silenciar… Mas agora não tem jeito mais, não. É isso que eu sinto, né, Din?
DD: Sim. Eu acho que a problemática é porque um corpo negro continua sendo um corpo político, e ele é atravessado por isso, por todas as questões políticas e sociais. Eu acho que essa coisa do entrosamento é um negócio que não é só de lá para cá, é daqui para lá também. Pra gente conseguir interpretar, entender o fluxo da cidade, onde que esse corpo negro ocupa, onde ele habita. Ele não habita qualquer região, ele não se manifesta em qualquer região, ainda existem muitas repressões com o processo cultural, desde lá do período ditatorial, mas sobre a comunidade negra jovem, inclusive. Belo Horizonte, por exemplo, é uma cidade onde tem muitas batalhas de rima. Essas batalhas reúnem milhares de jovens e estão por toda parte. Então, assim, eu acho que existem pontos estratégicos onde esses corpos ocupam com possibilidade de ocupar. Porque a gente sabe que no Brasil, que é um país que tem muito racismo, isso pega e afeta a segurança desses corpos, a produção cultural da cidade, o fluxo cultural da cidade.
MJ – Queria aproveitar que citou o viaduto de Santa Tereza, onde você conheceu os duelos. Ali foi um aquilombamento também para os rappers, para a população negra ou ficou para uma classe mais “descolada”, que pode ocupar os espaços?
DD: Então, eu acho que existe, como que vou dizer? Existe, sim, uma certa apropriação por parte de uma parcela da sociedade que tem vantagens muito específicas, vantagens que decorrem da cor, decorrem da posição social, e que é um facilitador dessas pessoas ocuparem esses espaços. Porque quem está na periferia, às vezes, a informação nem chega. Mas acho, sim, que as batalhas, por exemplo, que são o movimento cultural que mais teve expressão ali, que ganharam mais força ali naquele ambiente, se espalharam para a periferia, sim. E as pessoas também passaram a ocupar os próprios bairros, sabe? Mesmo que a classe média, que as pessoas que vivem nos bairros que não são periferia ali em Belo Horizonte, mesmo que eles tenham mais acesso a qualquer tipo de produto cultural ali no centro, a periferia também acessa. Isso tenho certeza, porque eu estou lá, eu ainda vou para o viaduto ali, assisto os projetos culturais que acontecem ali, e com certeza existe.
MJ – Vamos para o show. O que destacariam das fusões que vocês fizeram para esse repertório? Sempre tem alguma coisa que a gente faz assim “Pô, isso aqui ficou muito bom!!”. O que vocês destacariam nesse repertório?
MN: Eu não sei o Din, porque a gente nunca falou disso! (Risos) A gente abre o portal com uma cantiga com o nome Irmandade, Irmandade dos Homens Pretos. Então ela é muito enraizada nos moçambiques afromineiros. E, de repente, no meio da cantiga, eu vejo o Dinho num freestyle. Muda tudo. Entra toda essa textura dessa música urbana preta, interpretada pelo Din. A gente conseguiu ali acessar, sabe? O lance da antiguidade com a modernidade, se comunicando e transitando. Isso pra mim ficou bem, bem escurecido que “Isso é música preta”. Essa mesma manifestação que vem lá dos nossos antepassados, dos nossos moçambiques, mas também o freestyle que está ali debaixo do viaduto também está manifestando. É incorporado ali um corpo político manifestando, falando e representando a África!
DD: Eu acho que é essa mesmo, primeiro porque a gente tá ali interagindo. Cantando nós dois dentro desse mesmo projeto. E eu acho que como a gente está falando de música negra, essa ideia de irmandade é o que perpassa o show inteiro, porque eu não preciso ser do samba – do samba, eu falo de ‘ser um compositor de samba’ – pra me sentir bem com o samba, porque eu sei que ali estão os meus irmãos. Eu sei que é música negra, sendo feita por pessoas que entendem o meu corre, entendem o meu corpo político, entendem o espaço que eu ocupo, e valorizam isso. O fato da gente, nós dois homens negros, estarmos compartilhando o palco já é uma espécie de irmandade. Nosso projeto enquanto banda, essa reunião, já é uma irmandade.
MJ – O Diaspora’S traz a narrativa oral griot, que aponta esse reconhecimento da experiência de cada pessoa e do compartilhar com os seus – que está na capoeira e também no rap. Como foi levar isso para o palco?
DD: Eles pediram que a gente falasse um pouco do tema [em cada apresentação]. E aí, em todo lugar que a gente passa, a gente expressa isso com palavras que são griots também. A gente está ali falando de tempo, não só do nosso tempo. Negoativo está falando do tempo do Maria Goretti. Eu tô falando do tempo do rap. Quando eu faço freestyle é improviso, então, sou obrigado a trazer alguma coisa do momento, do local ali. Não é nada que seja ensaiado e que não seja mutável. Eu acho que essa palavra mais precisa acerca desse encontro, do nosso território, desse show, de ser música negra, do nosso posicionamento, está presente ali no show, não só no momento musical, mas no momento da pausa entre uma música e outra, como introdução de uma música e outra, como interlúdio de uma música e outra.
MN: Eu estou num momento da minha vida, ali, já cheguei no topo do morro, agora descendo para desaguar em algum rio. E é um momento que cada vez mais eu sinto que eu tenho feito um regresso. O que é esse regresso? Eu sinto que minha avó cada vez mais está presente nas minhas ações. Onde eu ando, eu sinto que minha avó vem nas minhas falas, a figura da minha avó, aquela senhora preta, de pé no chão e tal. Realmente, como se fosse um movimento sankofa, parece que cada vez mais eu vou incorporando nele. Essa coisa de olhar para trás, de buscar o que é meu de fato, o que realmente me pertence. Então quando eu falo assim do Din, ele tá aí, no freestyle, a coisa que ele manda ali do momento. Minha avó contava histórias assim para gente, ela improvisava isso. Então isso é uma coisa antiga do povo preto, de improvisar, de acalentar. De repente é uma situação de família… De repente tinha pouca comida, contava uma história de fartura, e aquilo funcionava. Isso são memórias que estão vindo da minha avó. Então, quando ele [Din] manda um freestyle e as pessoas vibram lá embaixo, é a minha avó, as nossas avós, contando história no passado. Isso aí do século 20, isso que você faz hoje na modernidade, isso é uma coisa que já existe.
MJ – Na sua música “Semeia Semente”, você fala que a cabaça é seu corpo. O que isso significa?
MN: Cada vez mais, enquanto homem preto, eu entendo que o berimbau é uma extensão do meu próprio corpo. Isso é africanidade. Cabaça é um elemento feminino, um elemento de ressonância, amplifica as nossas vozes. É a nossa voz amplificada. A cabaça é um elemento fantástico, cara. Eu estive em África, dois, três anos atrás. O quanto que a cabaça é um elemento presente na casa das pessoas. Enquanto utensílio, é usado para tudo. E minha avó também manuseava. Tem um trecho da música que fala: “No norte lá de Minas, cabaça tem outras funções. Gamela pra lavar arroz, cuia de catar feijão”. Então, era tigela de cabaça. Carregava água. Até hoje, na Rocinha, lá no cerrado mineiro, na nossa Rocinha, os homens, os cavaleiros que passam, que vão trabalhar na lavoura, eles trazem a cachaça nas cabacinhas. Então, a cabaça é um elemento que foi se perdendo, porque nós também, nesse mundo moderno, nos distanciamos dos elementos da natureza.
MJ – Falando em natureza, Din, o rap nasceu nas cidades, fala principalmente da vida urbana, mas ele está distante da natureza?
DD: O rap é uma cultura universal. Ele está presente tanto nos grandes centros urbanos quanto no interior também. Até porque o rap é música eletrônica. A modernização, a globalização, novas tecnologias, tudo isso possibilitou que as outras pessoas acessassem. E a partir desse acesso, elas refizessem ou fizessem o seu próprio modelo. Então hoje tem rapper que discute só questão indígena. Tem várias rappers indígenas despontando. A Catumirim, por exemplo, é um grande exemplo disso,. É uma rapper que leva essa temática. A Brisa Flow também. A gente está sempre aprendendo, então, ao mesmo tempo que tem esse movimento da construção de muros, da elevação dos muros, tem o movimento de construção de pontes também. Ao mesmo tempo que tem gente destruindo os elementos culturais do nosso território, tem gente construindo e fazendo e dando um jeito de manobrar e ser resistência nesse meio. Então, o rap, como ele é estilo musical popular que trata de diversas temáticas populares, acho que ele só carece de alguém que queira usufruir desse veículo e participar dessa missão.
MJ – Como tem sido a receptividade do público por onde vocês têm passado?
DD: Eu, por exemplo, como eu já tinha rodado o Brasil em 2022, através desse campeonato que rola debaixo do viaduto, fiz muitos amigos nas capitais. Então, sempre que a gente passa em algum lugar e eu conheço alguém ali que conhece batalha, fala “É o Douglas Din, tal”. Isso traz as pessoas pra assistirem os shows, e a galera tem gostado muito. É uma música nossa, é uma música afromineira, é uma música tradicional, uma música regional. É popular do nosso território, do lugar que a gente ocupa. Então, eu acredito que as pessoas têm uma grata surpresa de ver esse negão aqui [aponta para Mestre Negoativo], e esse negão aqui cantando alguma coisinha assim.
MN: Me veio na memória o final do nosso show no Acre, Rio Branco. Rolou uma coisa muito louca. Acabou o show e as pessoas estavam comovidas. Foi muito forte. Era um lugar muito pequenininho, muita aconchegante, e a moçada vibrando, vibrando. Aí terminou o show, a gente sugeriu: “Ó, se alguém quiser se manifestar, fique à vontade”. Foi forte. Cara, foi cada depoimento. Tinha um senhor que falou assim: “Ah, me lembrou da minha mãe”. Nesse dia eu tive certeza que a nossa proposta, Diaspora’s, ela acessa as memórias afetivas. E olha que a gente nem tinha falado disso depois. Nós estamos falando disso aqui agora. É o processo.