A reportagem de hoje é a primeira de três que a Mangue Jornalismo publica como parte da Série Infância Sem Futuro. O material é resultado do importante estudo “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023)”, realizado e divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A pesquisa apresenta dados dramáticos sobre a situação de pobreza de crianças e adolescentes em Sergipe.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgou recentemente o estudo Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023). Em resumo, a pesquisa mostra que a pobreza diminuiu entre essa população nesse período. Em 2017, eram 34,3 milhões (62,5%) e, em 2023, o número caiu para 28,8 milhões (55,9%). Os percentuais são altíssimos, mas houve redução.
Em Sergipe, ao contrário da trajetória de queda dos dados nacionais, os números ficaram estáveis, com pequeno crescimento, e são bem maiores que a média do país, denunciando uma realidade dramática, longe das festas e das publicidades dos governos. O menor estado do Brasil aparece com 71,6% de crianças e adolescentes com algum tipo de privação de direito básico, ou seja, sete em cada dez pessoas de 0 aos 17 anos de idade estão em situação de pobreza em Sergipe.
Quando se olham os números absolutos, percebe-se um pouco mais dessa tragédia: em Sergipe foram encontrados 423,74 mil crianças e adolescentes em situação de pobreza. Desse total, a pesquisa revelou que 157,43 mil deles vivem na chamada “extrema pobreza”, ou seja, moram com a família cuja renda está abaixo da linha da pobreza, com até R$ 209,00 mensais por pessoa.
O estudo da Unicef sobre a pobreza multidimensional é completo e avaliou dados de educação, informação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento básico, insegurança alimentar e renda. “Os dados são bem importantes e revelam uma dura e triste realidade”, avalia Milena Barroso, assistente social e professora na Universidade Federal de Sergipe (UFS).
“A pobreza infantil é multidimensional porque vai além da renda. Ela é resultado da relação entre privações, exclusões e vulnerabilidades que comprometem o bem-estar de meninas e meninos. Crianças e adolescentes precisam ter todos os seus direitos garantidos de forma conjunta, já que os direitos humanos são indivisíveis”, explica Liliana Chopitea, chefe de Políticas Sociais do Unicef no Brasil, na divulgação do documento.
Enquanto no Brasil a média de pobreza entre crianças e adolescentes em 2023 foi de 59,5%, em Sergipe esse percentual chegou a 71,6%, o que representa 12,1% a mais que a média nacional. O ano de 2023 foi o primeiro da gestão Fábio Mitidieri (PSD).
A professora da UFS Milena Barroso reforça a visão central do estudo do Unicef. “A pesquisa é importante porque traz a compreensão da pobreza multidimensional, o que significa que a pobreza não se resume ao aspecto meramente econômico, mas pensa a pobreza como resultado de privações e diferentes exposições que meninos e meninas, crianças e adolescentes estão sujeitos, nos desafios para o acesso à educação, cultura, lazer, moradia, saneamento, entre outros”.
Sergipe foi o único do Nordeste em que a pobreza aumentou em cinco anos
Todo o estudo acaba revelando uma realidade dramática em Sergipe e que deveria ser objeto de uma série de ações de órgãos de controle, mas isso não tem ocorrido e as provas são os números do estado. A pesquisa do Unicef denuncia que de 2019 até 2023, dos nove estados nordestinos, só em Sergipe cresceu o percentual de crianças e adolescentes em situação de pobreza.
Por exemplo, de 2019 para 2023, o percentual caiu na Bahia de 72,1% para 67%; em Pernambuco reduziu de 69,8% para 64%; na Paraíba caiu de 73,7% para 72,5%. Em Sergipe, nesse mesmo período de cinco anos, o percentual passou de 71,5% para 71,6%. Veja todos os dados na tabela abaixo.
Crianças e adolescentes com alguma privação, por estado do Nordeste
Estados do Nordeste | Ano 2019 (%) | Ano 2023 (%) |
Piauí | 95,8 | 90,6 |
Maranhão | 92,8 | 88,6 |
Rio Grande do Norte | 87,3 | 81,2 |
Alagoas | 83,9 | 78,3 |
Ceará | 79,7 | 73,2 |
Paraíba | 73,7 | 72,5 |
Sergipe | 71,5 | 71,6 |
Bahia | 72,1 | 67,0 |
Pernambuco | 69,8 | 64,0 |
Tabela elaborada pela Mangue Jornalismo com dados da Unicef.
Na Região Nordeste, Sergipe é o sétimo estado em percentual de crianças e adolescentes em situação de pobreza e é o único que apresentou crescimento na privação básica de direitos no período. O Piauí é um escândalo, lidera com 90,6%.
Esse quadro de Sergipe e do Nordeste em geral se aproxima dos percentuais da Região Norte e se distanciam de estados do Sul e Sudeste, revelando as desigualdades regionais. Enquanto Sergipe tem 71,6% de crianças e adolescentes na pobreza, em São Paulo, por exemplo, esse índice é de 31,8%; no Distrito Federal, 34,1%, e em Minas Gerais, 38,3%.
A professora Milena Barroso chama atenção para um aspecto muito relevante: “ao considerarmos os dados da vulnerabilidade de crianças e adolescentes, estamos também tratando de desigualdades e ausências enfrentadas por famílias, especialmente de mulheres responsabilizadas pelo cuidado, que estão em situação de pobreza”. Veja os dados comparativos nos mapas abaixo:
Vale registrar um outro dado estarrecedor. Com relação à pobreza multidimensional extrema, o número no Brasil passou de 13 milhões (23,8%) em 2017 para 9,8 milhões (18,8%). Em Sergipe, crianças e adolescentes em situação de extrema pobreza chegaram ao percentual 26,6% (157,43 mil de 0 a 17 anos), ou seja, mais alto que a média nacional registrada em 2027.
Destaca-se que a pobreza multidimensional entre crianças e adolescentes negros permanece consistentemente mais alta em comparação com brancos, destacando disparidades raciais significativas no que diz respeito às condições de vida e acesso a recursos essenciais. Enquanto entre meninas e meninos brancos, 45,2% estão em pobreza multidimensional, entre negros o percentual é de 63,6%.
O mapa a seguir mostra o número absoluto de crianças e adolescentes com alguma privação em 2023. Nessa representação geográfica, o tamanho populacional de cada estado também é relevante: a maioria das crianças e dos adolescentes com alguma privação está em São Paulo, seguindo-se Bahia e Pará.
SE: único do Nordeste com aumento da pobreza excluindo a condição monetária
O estudo do Unicef também apresentou o percentual de crianças e adolescentes que enfrentam algum tipo de privação não monetária em 2019 e 2023. Essa análise exclui a dimensão monetária, que frequentemente apresenta disparidades mais acentuadas, devido às diferenças econômicas relacionadas aos níveis de desenvolvimento de cada região.
Ao focar nas privações não monetárias, segundo os dados do Unicef, “é possível obter uma visão mais equilibrada das desigualdades sociais e de acesso a serviços, essencial para direcionar políticas públicas mais eficazes em áreas críticas além da renda”.
Nesse quesito, Sergipe também foi o único estado do Nordeste em que o percentual de crianças e adolescentes com alguma privação não monetária aumentou, revelando gravíssimos problemas de acesso a serviços essenciais, como saúde e educação, e aqueles relacionados à infraestrutura.
Crianças e adolescentes com alguma privação não monetária, por estado do Nordeste
Estados do Nordeste | Ano 2019 (%) | Ano 2023 (%) |
Piauí | 95,5 | 89,5 |
Maranhão | 92,8 | 85,3 |
Rio Grande do Norte | 84,9 | 75,8 |
Alagoas | 76,1 | 72,3 |
Ceará | 74,2 | 65,1 |
Paraíba | 66,0 | 65,2 |
Sergipe | 61,9 | 63,3 |
Bahia | 62,8 | 63,3 |
Pernambuco | 59,6 | 51,5 |
Tabela elaborada pela Mangue Jornalismo com dados da Unicef.
“Essa constatação pode ser um indicador de que políticas focadas em renda, embora necessárias, não são suficientes por si só para garantir o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Essa percepção sugere a necessidade de uma abordagem mais abrangente nas políticas públicas, que considere a multidimensionalidade das privações para endereçar eficazmente às necessidades nessas faixas do desenvolvimento em todas as regiões, porém com especial atenção para áreas onde o progresso em dimensões não monetárias é menos perceptível”, esclarece o documento do Unicef.
Vale registrar que enquanto Sergipe tem um percentual de 63,3% de crianças e adolescentes com alguma privação não monetária em 2023, no Distrito Federal esse índice é de apenas 25,6%; em São Paulo chega a 26% e em Minas Gerais o percentual é de 31,9%.
Sergipe precisa avançar em proteção econômica e social para as famílias
Para a assistente social e professora da UFS Milena Barroso, Sergipe precisa avançar em políticas de emprego e renda e de proteção econômica e social para as famílias em situação de pobreza.
“A gravidade dessa situação guarda relação também com a ausência de políticas públicas que atendam as reais necessidades das famílias sem ou com renda de até um salário mínimo, que estão na informalidade e vivenciam as diversas formas de desproteção”, analisa a professora.
Milena aponta para a incapacidade e ineficácia das políticas municipais e da política estadual de garantir uma proteção econômica e social que enfrente a insegurança alimentar, por exemplo. “A descentralização dessa responsabilidade é condição para avançarmos na proteção às crianças, especialmente nos municípios onde uma parcela da população tem renda familiar inferior a meio salário mínimo”, complementa a professora.
Segundo Milena, uma das possíveis explicações da não alteração da situação de pobreza multidimensional em Sergipe, pode ser apreendida pela insegurança alimentar. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2023), Sergipe é o estado que mais apresenta insegurança alimentar no país, em média 50% dos domicílios enfrentam a insegurança alimentar em algum nível, o que incide, em grande medida, na situação das crianças e adolescentes. Uma das reportagens desta série da Mangue Jornalismo será exclusiva sobre a insegurança alimentar de crianças e adolescentes em Sergipe. Acompanhe.
Ampliação do Bolsa Família e melhora no acesso à informação reduzem a pobreza
Segundo estudo do Unicef, a redução no Brasil do número de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos vivendo na pobreza em suas múltiplas dimensões tem participação direta da ampliação do Bolsa Família e do melhor acesso à informação.
“Além do aumento substancial no valor do benefício, o Auxílio Brasil e, posteriormente, o novo Bolsa Família, também houve um crescimento expressivo no número de famílias atendidas. No primeiro trimestre de 2022, cerca de 17,9 milhões de famílias eram beneficiárias do programa. Esse número aumentou para aproximadamente 21,6 milhões de famílias no primeiro trimestre de 2023, representando um aumento de cerca de 20%.
O relatório Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil foi elaborado com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) e analisa dimensões básicas de direitos, como renda, educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. A dimensão de alimentação também foi avaliada a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Esta é a quarta edição desta pesquisa, realizada pelo Unicef. Leia aqui o estudo completo.
Governo de Sergipe diz ter compromisso com erradicação da pobreza infantil
Em nota oficial enviada para a Mangue Jornalismo, o Governo de Sergipe, por meio da Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania (Seasic), disse reafirmar “seu compromisso com a erradicação da pobreza infantil e a inclusão social, por meio de ações concretas e investimentos contínuos que garantam proteção e dignidade às famílias sergipanas”.
Segundo o governo, “os dados do Unicef refletem um cenário herdado de um contexto de crise sanitária global e desafios estruturais, que vêm sendo enfrentados com determinação pela atual gestão desde 2023”.
Para a Seasic, “a pobreza multidimensional infantil em Sergipe é influenciada por diversos fatores históricos e conjunturais, como desigualdades regionais persistentes e os impactos econômicos da pandemia de Covid-19. O Governo do Estado tem atuado com compromisso e determinação para mitigar esses desafios, com ações e programas que já demonstram impactos positivos na vida das famílias sergipanas”, garante.
Na nota, o governo relacionou ações implementadas em 2023 e 2024: “Cofinanciamento Estadual: Repasse total de R$ 43 milhões aos municípios, garantindo a sustentabilidade dos serviços socioassistenciais e fortalecendo os serviços de Proteção Social Básica e Especial. Cartão Mais Inclusão (CMais): Beneficiou 320 mil sergipanos, com investimentos totais de R$ 82 milhões, assegurando alimentação e suporte financeiro para famílias em situação de vulnerabilidade. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,4 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo e aquisição de 3.000 toneladas de alimentos pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), beneficiando 500 agricultores familiares e 157 entidades assistenciais. Inclusão Social: Expansão do programa Ciranda Sergipe para 37 municípios, atendendo 1.917 cidadãos com serviços essenciais e apoio técnico. Política Estadual da Primeira Infância: Lançamento do Plano Estadual da Primeira Infância, abrangendo os 75 municípios e fortalecendo as políticas intersetoriais para o desenvolvimento infantil”.
Para o Governo de Sergipe, “de acordo com os dados oficiais do IBGE, a taxa de pobreza reduziu de 45,6% em 2023 para 43,2% em 2024, refletindo os impactos das ações implementadas”.
Para este ano, Seasic informou que estão previstas ações estratégicas, como: “Expansão do Cofinanciamento Estadual: Totalizando R$ 34 milhões, garantindo maior suporte aos municípios e ampliação da cobertura dos serviços assistenciais. Cartão Mais Inclusão (CMais): Ampliação para 350 mil beneficiários, com investimento de R$ 60 milhões, garantindo maior segurança alimentar e suporte financeiro às famílias sergipanas. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,2 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo, expandindo o acesso à alimentação saudável. Infraestrutura: Construção de mais 50 creches-escolas pelo Programa Amei, assegurando espaços adequados para o desenvolvimento infantil. Inclusão Social: Fortalecimento dos programas de apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, com ampliação da cobertura e melhoria dos serviços prestados”.
A nota conclui informando que “o Governo de Sergipe reafirma seu compromisso com a promoção da dignidade e do bem-estar da população, por meio de políticas eficazes, planejamento estratégico e ações de impacto que asseguram direitos e oportunidades para todos”.
NA PRÓXIMA REPORTAGEM DA SÉRIE: Os números da pobreza intermediária e extrema de crianças e adolescentes no estado de Sergipe, destacando-se educação, informação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e renda.