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Sergipe tem maior índice do Nordeste de crianças na escola com atraso e renda abaixo da linha da pobreza

Esta é a segunda reportagem que a Mangue Jornalismo publica na Série Infância Sem Futuro. O material é resultado do importante estudo “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023)”, realizado e divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A pesquisa apresenta dados dramáticos sobre a situação de pobreza de crianças e adolescentes em Sergipe.

A extrema pobreza atinge 26,6% de crianças e adolescentes em Sergipe. A média no Brasil é 18,8%. (Crédito: Anderson Barbosa/Arquivo)

O estudo Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), apresenta muito mais do que a Mangue Jornalismo já publicou na reportagem de ontem, “Sete em cada dez crianças e adolescentes em Sergipe estão em situação de pobreza, revela Unicef.

O documento sobre a pobreza multidimensional no Brasil traz dados de educação, informação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento básico, insegurança alimentar e renda. É sobre essas “dimensões” que a reportagem de hoje se dedica.

Antes, vale resumir: a Unicef mostra que em 2017 o Brasil tinha 62,5% de crianças e adolescentes em situação de pobreza. Em 2023, o percentual caiu para 55,9%. Em Sergipe, ao contrário, ocorreu um pequeno crescimento. O menor estado aparece com 71,6% de crianças e adolescentes com algum tipo de privação de direito, o que representa 423,74 mil pessoas de 0 aos 17 anos de idade em situação de pobreza.

Das 423,74 mil crianças e adolescentes em situação de pobreza em Sergipe, 157,43 mil deles vivem na chamada extrema pobreza, morando com a família cuja renda é de até R$ 209 mensais por pessoa. A extrema pobreza atinge 26,6% de crianças e adolescentes em Sergipe, já a média nacional é 18,8%.

Para Lídia Anjos, bacharel em Serviço Social e mestra em Direitos Humanos, os dados mostram que a prioridade absoluta para a infância encontra resistência para sair do papel. “Sergipe vem trilhando um caminho que atende aos interesses do grande poder econômico em detrimento de sua população. Desse modo, as políticas públicas ofertadas são assistencialistas, estanques e, portanto, inoperantes frente às necessidades que o público infanto-juvenil e suas famílias necessitam para mudar suas realidades”, analisa Lídia.

Para facilitar o entendimento sobre os dados em Sergipe, a Mangue Jornalismo publica abaixo os números de educação, informação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento básico e renda, fazendo um comparativo com os demais estados do Nordeste.

Situação dramática na educação e na renda em Sergipe

Na educação, a Unicef pesquisou crianças e adolescentes de 9 aos 17 anos que frequentam a escola, mas têm atraso no desenvolvimento esperado para a idade que têm, além das não alfabetizadas. Elas foram caracterizados como em privação intermediária. No caso de crianças e adolescentes que não frequentam a escola e nem são alfabetizadas, o fundo as considerou como em privação extrema.

Nessa dimensão, Sergipe é o estado do Nordeste com maior percentual de criança (11,2%) que frequenta escola com atraso ou frequenta, mas não é alfabetizada. Isso representa 66,28 mil pessoas nessa condição. Depois vem o Maranhão (10,8%) e empatados a Bahia e o Rio Grande do Norte, com 10,1%. O menor índice no Nordeste é o do Ceará, com 5,1%. A média brasileira é de 6,6%.

Quanto à privação extrema na educação, Sergipe é o segundo estado nordestino em que crianças e adolescentes não frequentam escola e nem são alfabetizadas, com um percentual de 1,6% (9,47 mil). Na região, o Ceará lidera com 1,7%, acompanhado de Pernambuco (1,3%). O menor percentual está no Piauí, 0,6%. A média de privação extrema na educação no Brasil é de 1,2%.

Vale ressaltar ainda que crianças negras tiveram maiores privações em educação, especialmente em relação ao analfabetismo. No Brasil, a pobreza multidimensional entre crianças e adolescentes negros permanece consistentemente mais alta em comparação com adolescentes brancos. Enquanto entre meninas e meninos brancos 45,2% estão em pobreza multidimensional, entre negros o percentual é de 63,6%.

Sobre a renda, os dados também revelam uma tragédia. Em situação de privação intermediária, ou seja, crianças e adolescentes de 0 aos 17 anos que residem em moradia com família cuja renda está abaixo da linha de pobreza monetária (R$ 355 mensais por pessoa), Sergipe e Pernambuco lideram com o percentual de 19,7%. A média no Brasil é 11%. No caso de Sergipe, são 116,59 mil pessoas de até 17 anos nessa condição.

Quando se olham os dados de privação extrema de renda em Sergipe, o estado é o terceiro do Nordeste, com 15,5%, o que equivale a 91,73 mil crianças e adolescentes que residem com a família cuja renda familiar está abaixo da linha de pobreza monetária extrema (R$ 209 mensais por pessoa). Nesse quesito, Sergipe só perde para o Maranhão (18,9%) e para o Piauí (15,8%). A média nacional de extrema pobreza observando-se a renda é de 8,1%.

“Em Aracaju, por exemplo, apesar do maior acesso à renda formal, a política criada nesse campo foi um auxílio municipal especial (AME), destinado a pessoas em situação de extrema pobreza, que exige que a pessoa não possua outro benefício para acessá-lo, excluindo grande parte da população que necessita de uma complementação de renda para conseguir suprir o básico, ter o que comer diariamente”, informa Milena Barroso, assistente social e professora na Universidade Federal de Sergipe (UFS).

A professora avalia que os programas de transferência de renda do governo federal não dão conta de suprir e/ou enfrentar essa realidade, de mudar a condição de vida dessas pessoas, “ato que pode ser comprovado na enorme discrepância entre o valor dos benefícios e o valor da cesta básica”, complementa Milena.

Em Sergipe, mais de 19% de crianças e adolescentes residem em moradia com renda abaixo da linha da pobreza (Crédito: Anderson Barbosa/Arquivo)

Estudo revela graves problemas com moradia e trabalho infantil

Os dados mostram ainda grandes privações para crianças e adolescentes quanto à moradia e ao trabalho infantil. Sobre moradia, o fundo considerou que a situação é de extrema privação no caso de criança de 0 a17 anos que residem com mais de quatro pessoas por dormitório ou em moradia cujas paredes e teto são de material inadequado, como madeira aproveitada. Nessa dimensão, Sergipe é o segundo estado do Nordeste, com 4,1%, ou seja, 24,26 mil pessoas nessa condição, perdendo apenas para o Maranhão (6,3%). A média brasileira é de 4,6%.

Em Sergipe, mais de 26 mil crianças e adolescentes vivem com até quatro pessoas por dormitório ou em moradias precárias, sendo considerados em privação intermediária, com percentual de 4,4%. Nesse ponto, o Maranhão lidera no Nordeste com 7,4%. A média nacional nesse caso é de 6,6%.

Quanto ao trabalho infantil, Sergipe é o terceiro estado da região com o maior percentual (1,4%) de crianças de 10 a13 anos que trabalham por mais de 14 horas ou realizam tarefas domésticas por mais de 20 horas durante a semana de referência. Essa porcentagem também inclui os jovens até 17 anos que trabalham por mais de 30 horas semanais, condição considerada de extrema privação. Sergipe só perdeu para a Bahia (1,9%) e o Piauí (1,7%). No Brasil, a média é de 1,1%.

Encontrar 1,4% de crianças e adolescentes em Sergipe com extrema privação em relação ao trabalho infantil implica chegar ao número absoluto de 8,29 mil pessoas nessa condição. Se for levada em consideração a condição intermediária de privação, o menor estado do Brasil chega a ter 18,35 mil crianças e adolescentes na faixa de idade de 10 aos 17 anos exercendo algum tipo de trabalho infantil.

“Apesar do modelo neoliberal e ultraconservador, pequenos avanços ocorreram em outros estados, inclusive do Nordeste. No entanto, Sergipe, na contramão dos nossos conterrâneos, piorou o seu quadro num grande retrocesso. Para mim, essa ideia e todo o empenho de forças que estão na gestão estadual para privatizar serviços públicos essenciais – a exemplo da água, mas não só – corrobora com a precarização das condições de vida de nossas crianças e adolescentes”, analisa Lídia Anjos, que também é especialista em Saúde Pública, doutoranda em Educação/UFS e militante do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Trabalho infantil é realidade em Sergipe (Crédito: Anderson Barbosa/Arquivo)

Acesso à água, saneamento e informação para crianças e adolescentes em Sergipe

O estudo do Unicef revelou que 6,1% de crianças e adolescentes em Sergipe, num total de 36 mil, residem em moradia que não recebe água canalizada, deixando-os em extrema privação. No Nordeste, a Paraíba lidera (12,2%), e a média nacional é de 3,0%, isto é, Sergipe está com o dobro do índice no país.

Sobre o saneamento, que implica para o caso de extrema privação encontrar criança que reside em moradia sem banheiro ou com vala a céu aberto, Sergipe tem mais de 39 mil pessoas de 0 aos 17 anos de idade nessa condição, num percentual de 6,6%. A média nacional é de 6,2% e, no Nordeste, o Maranhão lidera com o índice de 19,8%.

O Unicef também avaliou a dimensão “informação”, ou seja, a privação pode ser extrema de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos que tiveram acesso à internet no último ano em casa, nem tiveram uma televisão em casa. Nesse ponto, em Sergipe foram encontradas 1,78 mil pessoas nessa condição, um percentual de 0,3%, sendo que a média no país é de 0,5%. No Nordeste, o Maranhão lidera com 1,6%. Chama a atenção que Sergipe teve, segundo o estudo, mais de 23 mil crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos sem acesso à internet em casa no último ano.

PERCENTUAL de crianças e adolescentes com privações intermediária e extrema no NE (2023)

Fonte: Unicef, com destaque para o recorte regional.

MILHARES de crianças e adolescentes com privações intermediária e extrema no NE (2023)

Fonte: Unicef, com destaque para o recorte regional.

Sem nenhuma prioridade, pobreza infantil em Sergipe se consolida

Para Maria José Batista Santos, educadora popular e assistente social, não há prioridade absoluta em torno da infância. “Um fator relevante é o distanciamento dos planos, programas e ações das diversas políticas públicas municipais dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as 169 metas que integram a Agenda 2030 (propostas que combatem a fome e a pobreza, reduzem os efeitos das mudanças climáticas e possibilitam mais igualdade e qualidade de vida às pessoas, principalmente crianças e adolescentes em vulnerabilidades)”, acredita.

Maria José lembra que é baixa ou muito baixa a classificação de Sergipe com base nos dados vindos de seus municípios quanto aos objetivos de Desenvolvimento Sustentável. “Essas metas se bem sincronizada às políticas públicas existentes, impactariam positivamente, nas famílias em seus diversos territórios e alcançariam suas crianças e adolescentes do campo e da cidade em suas diversas especificidades: comunidades tradicionais, ribeirinhas, povos indígenas e ciganos, com deficiência, em situação de rua, vítimas ou testemunhas de violência, incluindo violência sexual, trabalho infantil, em cumprimento de medidas socioeducativas ou outra vulnerabilidade”, analisa.

Maria José, Lídia Anjos e Milena Barroso: infância e adolescência não são prioridades nas políticas públicas. (Crédito: arquivo pessoal)

A professora Milena Barroso defende que Sergipe precisa avançar em políticas de emprego e renda e de proteção econômica e social para as famílias em situação de pobreza. “É importante destacar outras questões que incidem para a permanência na condição de pobreza das famílias, como a exposição dessas crianças e adolescentes às situações de moradias precárias, à violência doméstica, à violência sexual, ao trabalho infantil, o que demonstra a fragilidade da rede de proteção no geral”, pontua.

Lídia Anjos não tem dúvida de que “falta compromisso político com esse público [crianças e adolescentes] que não dá voto, por parte de quem tem a responsabilidade formal para implantar e implementar políticas públicas – o Estado. Isso se reflete no orçamento público, sem previsão para investimentos eficazes e efetivos nessas áreas”. 

A mestra em Direitos Humanos chama a atenção para o fato de que o Estado distorce estrategicamente política de cultura com grandes festas e shows. “No dia-a-dia, nos municípios por exemplo, não há equipamentos públicos que atraiam crianças e adolescentes e nem a juventude para saltarem essa condição de pobreza numa perspectiva de educação informal e possibilidades pedagógicas, como cinemas públicos, espaços de participação infanto-juvenil que abram possibilidades para criatividade que lhes são peculiares”, disse.

Lídia denuncia falta de investimento em arte, música, dança, teatro e, como consequência, “o público infanto-juvenil segue à mercê do tráfico de drogas para posteriormente, em razão de uma concepção policialesca de segurança pública, completamente afastada da política de direitos humanos, serem mortos, presos ou continuarem sobrevivendo à falta de perspectiva de futuro, sem emprego, renda e, muitas vezes, sem terem mais o que perder, pois nem a família lhes resta”, analisa.

Governo reafirma compromisso com erradicação da pobreza infantil

Na primeira reportagem da série, publicada ontem, a Mangue Jornalismo registrou na íntegra a nota oficial do Governo do Estado de Sergipe sobre os dados do Unicef. Em resumo, a Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania (Seasic) disse reafirmar “seu compromisso com a erradicação da pobreza infantil e a inclusão social, por meio de ações concretas e investimentos contínuos que garantam proteção e dignidade às famílias sergipanas”.

Segundo o governo, “os dados do Unicef refletem um cenário herdado de um contexto de crise sanitária global e desafios estruturais, que vêm sendo enfrentados com determinação pela atual gestão desde 2023”.

Na nota, o governo relacionou ações implementadas em 2023 e 2024: “Cofinanciamento Estadual: Repasse total de R$ 43 milhões aos municípios, garantindo a sustentabilidade dos serviços socioassistenciais e fortalecendo os serviços de Proteção Social Básica e Especial. Cartão Mais Inclusão (CMais): Beneficiou 320 mil sergipanos, com investimentos totais de R$ 82 milhões, assegurando alimentação e suporte financeiro para famílias em situação de vulnerabilidade. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,4 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo e aquisição de 3.000 toneladas de alimentos pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), beneficiando 500 agricultores familiares e 157 entidades assistenciais. Inclusão Social: Expansão do programa Ciranda Sergipe para 37 municípios, atendendo 1.917 cidadãos com serviços essenciais e apoio técnico. Política Estadual da Primeira Infância: Lançamento do Plano Estadual da Primeira Infância, abrangendo os 75 municípios e fortalecendo as políticas intersetoriais para o desenvolvimento infantil”.

Para este ano, Seasic informou que estão previstas ações estratégicas, como: “Expansão do Cofinanciamento Estadual: Totalizando R$ 34 milhões, garantindo maior suporte aos municípios e ampliação da cobertura dos serviços assistenciais. Cartão Mais Inclusão (CMais): Ampliação para 350 mil beneficiários, com investimento de R$ 60 milhões, garantindo maior segurança alimentar e suporte financeiro às famílias sergipanas. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,2 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo, expandindo o acesso à alimentação saudável. Infraestrutura: Construção de mais 50 creches-escolas pelo Programa Amei, assegurando espaços adequados para o desenvolvimento infantil. Inclusão Social: Fortalecimento dos programas de apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, com ampliação da cobertura e melhoria dos serviços prestados”.

Leia a nota na íntegra ao final da reportagem de ontem, publicada aqui.

O relatório Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil do Unicef foi elaborado com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) e analisa dimensões básicas de direitos, como renda, educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. A dimensão de alimentação também foi avaliada a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Esta é a quarta edição desta pesquisa, realizada pelo Unicef. Leia aqui o estudo completo.

Na próxima reportagem da série: Os dados sobre a insegurança alimentar de crianças e adolescentes no estado de Sergipe.

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