Alguns rappers sergipanos vão aos ônibus para fazer rima e conseguir dinheiro pelo seu trabalho. Apesar de haver quem saiba acolher, nem sempre o pagamento é com dinheiro ou um sorriso de admiração, mas com violência, preconceito e estereótipo. Além de ser um trabalho, o rap desses MC’s também é uma forma de se salvar, principalmente da fome.
O rap se esforça para chegar em diferentes lugares e pessoas de Aracaju. Desde um banhista na praia até um passageiro no ônibus. E quem leva as rimas para diferentes cantos da cidade são pessoas que muitas vezes usam dessa arte também para sustentar a casa, os filhos ou sobreviver.
As rimas falam sobre quem canta e sobre quem escuta. O improviso surge pelo olhar do MC (Mestre de Cerimônia), por sua observação do mundo e, como se pintasse uma tela em branco, o MC produz a arte na frente do seu espectador, que algumas vezes lhe paga com dinheiro, sorriso ou violência.
Soma tem 24 anos, nasceu e viveu até a adolescência em Estância, Sergipe. Foi para Itabaiana, depois para Aracaju e hoje mora em São Cristóvão. No corredor do ônibus, Soma fica em pé olhando para cada passageiro. Em uma mão, ele segura a sua caixinha de som. É dela que sai o beat que vai lhe guiar para escolher as palavras certas, aquelas que se conectarão umas com as outras para formar um verso cheio de sentido.
O rapper Soma começou a usar a música como instrumento de trabalho assim que começou o período de pandemia, em 2020. “A maioria dos artistas de rua, muitas vezes você vê no terminal vendendo uma bala ou limpando um carro, ganhando um trocado. E quando explodiu a pandemia, que não pôde vender bala, eu vi que eu poderia fazer algo a mais. Usar da minha arte pra ganhar”, conta.
O seu caminhar com a rima foi com muita dificuldade. Aos poucos Soma construiu o seu nome nas ruas, mas, inicialmente, era uma questão de necessidade. “Foi uma parada que eu não pensava em levar pra vida toda e que aquilo seria a minha vida hoje em dia. Mas foi uma coisa que eu comecei pela despesa que eu tinha que pagar, pela precisão, pelo dinheiro rápido, tá ligado?”, acrescentou.
Começar a rimar nas ruas não foi uma iniciativa que Soma teve sozinho. Depois de ver uma publicação no Facebook de Mano Demo chamando MC’s para irem às ruas e aos ônibus, Soma se sentiu impulsionado para começar nessa vida. E assim foram os dois. “Há cinco anos nós estamos aí nessa correria, fazendo o rap no coletivo todos os dias. É fácil não, porque se a gente não tivesse família, fosse só pro lazer mesmo, seria bem mais fácil, mas eu estou na correria todos os dias porque são quatro filhos pra criar, a família é grande e é uma luta louca, mano”, acrescenta Mano Demo.
“O rap me salva todos os dias”
Mano Demo tem 29 anos, pai de quatro filhos, nasceu em Aracaju, na região do Jardim Centenário, e foi criado na Piabeta. O seu começo no rap não é recente. Aos 15 anos montou um grupo chamado Realidade das Ruas e utilizava o codinome The Black MC. “Eu tinha botado na cabeça que eu queria ser artista. Tinha que ter o nome de artista. No tempo eu gostava de colecionar fita demo, aí botei meu nome como Mano Demo”, explica o rapper.
Atualmente, Soma vai para os ônibus pela tarde. Durante a semana, ele consegue uma quantidade de dinheiro que dá para manter o essencial. “Eu recebo em média R$ 200,00 por semana nos ônibus. No momento eu moro com uns amigos, então dá pra se manter assim”, explicou o rapper.
O valor que ele recebe não é fixo. Nem sempre um passageiro lhe paga com dinheiro, mas quando há uma troca positiva entre o ouvinte e o rapper, isso já é motivo de alegria. “O artista que vai pro ônibus não é um pedinte. Faz o possível dele, dá o seu suor, dá o seu talento, faz a arte da melhor maneira e quer receber algo em troca, além do que só o dinheiro forçado. Eu ‘viajo’ mais quando a galera fica grata pela mensagem, às vezes chega em mim, desce do ônibus, fala ‘velho, você melhorou meu dia’. Já me deixa bem, tá ligado? Satisfeito.”
Já Mano Demo conta que o valor que recebe rimando nos ônibus é o suficiente para sustentar a sua casa e por isso vive apenas disso. Segundo o MC, em alguns dias ele consegue cerca de 80 a 100 reais. “Hoje em dia o rap me salva todos os dias com aluguel, alimentação, água, energia. O rap é minha vida, mano. Sempre vem me salvando todos os dias. E eu não pretendo parar com ele nunca”, explicou.
Em alguns bairros de Aracaju, acontecem eventos de hip-hop, a exemplo das batalhas de rimas. São nesses eventos que os artistas conseguem um espaço para expor as suas artes, ganhar visibilidade e, em alguns casos, receber algum dinheiro. Mas participar desses eventos não é uma prioridade para os rappers Soma e Mano Demo.
Segundo Mano Demo, rimar nos ônibus já o sustenta e não sente a necessidade de participar de batalhas. “Eu consigo vários espaços aqui nos eventos aqui. A galera me chama, me convida. Só que eu sou hoje em dia um cara mais travado”, conta.
Já Soma gosta de participar desses eventos. Ele conta que as batalhas de rimas são feitas por quem vive o hip-hop e entende essa cultura. “Quem organiza o bagulho de rima são pessoas que também são invisibilizadas. E quando uma pessoa é invisibilizada, ela consegue ter empatia por outras pessoas que também estão invisíveis”, explicou o MC.
Em um mapeamento feito por Marcos Vinicius Santos, do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS), o hip-hop chegou em Aracaju por volta da década de 1980, por meio do breakdance, e a partir daí o hip-hop foi sendo disseminado entre os jovens sergipanos. Em seu artigo, “Os primórdios do movimento hip hop em Aracaju”, Vinicius aponta que cada elemento da cultura do hip-hop o rap, grafite, breakdance e os dj’s possui a sua particularidade. O rap, segundo o autor do artigo, é feito por MC’s, que com o uso de rimas demonstram os descontentamentos e reivindicam melhorias para suas comunidades, expressam suas ideias e denunciam desigualdades sociais e falta de políticas públicas para os moradores das periferias.
Já de acordo com o doutorando em Filosofia e que estuda o trabalho de alguns rappers brasileiros, Marcos Roberto Santos, o rap se destaca, principalmente, por trazer uma forte representatividade. “São pessoas que, por falarem do cotidiano, estão retratando a cidade”, explicou. Marcos ainda acrescenta que o rap Sergipano, por se situar no Nordeste, não fala apenas do sertão, mas também do meio urbano, que é onde ele se destaca. “Então são as letras que se encarregam de trazer essa representatividade. O que não é, por um lado, uma representatividade estereotipada de vivências do sertão sergipano, que existe, sim, mas é uma parcela pequena”, acrescentou.
Violências cotidianas, outras nem tanto
Para Soma, a rima é muito mais que uma música, é uma arte. E para ele, é mais importante que a pessoa que esteja ouvindo entenda que o seu trabalho é arte. Por ser uma forma de se expressar, essa arte salvou e salva o rapper todos os dias. “A arte já me salvou de outras paradas, principalmente da fome. Mas também tem influências pela questão de eu ser conhecido artisticamente. Teve uma certa opressão que rolou aí. Uma de inúmeras. Mas um caso isolado foi com a Guarda Municipal no ônibus. Se as pessoas não me conhecessem pelo artista que eu sou, muitas vezes estaria escrito na minha testa: bandido. Porque muita gente julga você pela cara, pela cor, pela etnia, tá ligado? Mas não sabe quem você é realmente por dentro daquela casca. Pessoas me conhecem, sabem o meu valor e chegam a me defender.”
Esse acontecimento com a Guarda Municipal de Aracaju, citado por Soma, aconteceu em um dia em que o MC estava no ônibus fazendo rima. Em uma abordagem truculenta, a Guarda Municipal chegou a agredir o rapper. No entanto, pessoas que estavam naquela condução o conheciam pelo seu trabalho diário e interviram, uns pedindo para que a Guarda parasse; outros com o celular estendido, filmando.
Esse tipo de situação não aconteceu somente com Soma. Em um dos seus dias normais rimando dentro dos ônibus, Mano Demo foi surpreendido por um passageiro. “Um cara chegou pra mim e falou ‘você é de onde?’, aí pra tirar onda eu falei ‘sou de Salvador, cara’. Ele falou ‘e, é? Então vá fazer seu trabalho lá, vagabundo’. Desde o começo eu já tinha o ensinamento de que não vou estourar com as pessoas e responder as pessoas no mesmo nível. Continuei o meu trabalho, mas me doeu muito”, contou o MC.
Depois de se envolver com coisas ilícitas, Mano Demo acabou sendo preso. O seu trabalho como MC já era reconhecido por muitas pessoas, inclusive por alguns detentos do Complexo Penitenciário Dr. Manoel Carvalho Neto, o presídio localizado no município de São Cristóvão, mais conhecido por sua sigla Copemcan. Quando ele chegou lá para cumprir pena, outros detentos conversaram com ele, falaram que prestigiavam o seu trabalho e que não deixariam ele se envolver com outros tipos de crimes.
Alívio maior foi quando o rapper soube que recebeu o seu alvará de soltura 3 meses antes do previsto por causa do trabalho que ele se orgulha em fazer: a palavra musicada. “Os advogados conseguiram provar que hoje em dia eu sou artista, eu fiz muito projeto aí com a galera. Então, o rap me salvou até na cadeia mano, tá ligado?”, contou Mano Demo.
Além de ser uma válvula de escape, Mano Demo entende o poder que as suas rimas têm sobre as outras pessoas. A maioria dos seus versos falam da luta que precisou passar para chegar onde está, ou o que ele enfrentou para conquistar algo grandioso. “Só que se o cara tiver ali uma pessoa que fala a ele, não só por um rádio, por um som, um cara que seja da sua cultura, da sua quebrada, e fala ‘pô, mano a vida é sofrida mesmo, tá ligado? Passei altas dificuldades, hoje em dia eu não tenho dinheiro com rap, mas o rap vem abrindo várias portas pra mim.’ Então o cara vai olhar e falar ‘a arte salva’”.
Afeto, arte e política
Daiane Santos conhece Mano Demo desde o início da sua trajetória com o hip-hop. Ela admirava Mano Demo fazendo dança de rua na região onde cresceram, na Piabeta, mas desconhecia o potencial do MC em fazer música. “Um certo dia ele me mostrou uma letra dele. Eu achei muito boa. Desde que ouvi ele rimando, eu percebo que o processo dele é de luta, batalha, correria, e que cada dia ele está melhor”, contou a amiga Daiane.
Daiane também percebe o quão instigante é o papel de MCs dentro das conduções levando a rima para os passageiros. Segundo ela, as pessoas estão muito imersas na correria do dia-a-dia, e com isso a música falada aparece como um suspiro nessa rotina caótica. “Levar alegria através da rima faz com que as pessoas riam e comentem uns com os outros. E o rap nas ruas é isso: fortalecer a cultura, levar alegria e manter vivo”, afirmou Daiane.
Cleciano Ferreira está presente na vida de Soma desde quando o rapper morava em Aracaju, na região da Piabeta. Amigos, eles viviam a rima dia e noite. E até hoje continuam assim. Cleciano tem um grande orgulho de Soma pela vida artística que ele leva e admira o seu amigo por levar a rima para os ônibus dia a dia.
“A arte traz um alívio tão grande que quem escuta se distrai ao ponto de esquecer o que está passando. Então, o rap é muito importante por causa disso, por ser transformador, tanto para quem está escutando quanto para está exercendo o rap”, detalhou Cleciano.
As rimas de Soma são misturadas entre a descontração do cotidiano e questões políticas. “Eu tento misturar ao máximo a revolução do rap, a mensagem que tem que passar, a conscientização junto com a descontração, está ligado? Porque eu creio que é até um tema muito pesado. A gente já passa por isso todo santo dia. Muitas vezes a gente não precisa estar falando porque todo mundo sente na pele”, afirmou Soma.
Não muito diferente de Soma, Mano Demo também enxerga o rap como uma forma de se expressar e de protesto. “Eu não gosto de política, mas a gente vive a política vinte e quatro horas. Então eu debato muito isso, eu falo muito do racismo, da falta de igualdade que tem na favela, né irmão?”, explicou Mano Demo.
O filho mais velho de Mano Demo tem 12 anos, e já nessa idade ele enxerga o pai com olhos de admiração. Certo dia, o garoto chegou no colégio em que estuda e falou que queria ser que nem o pai quando crescesse, um MC, mas ninguém ali entendeu muito bem, como contou Mano Demo. Ao saber disso, o rapper foi até o colégio e fez uma rima para os alunos e professores que estavam lá. “A galera falou que ele se orgulha muito. E eu já falei a ele ‘pô, você vai ser o que você quiser quando você crescer, tá ligado, mano? Não é obrigado você ser o que seu pai é.’”, contou, também com um sentimento de orgulho.