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Quadrilhas precisam se reinventar entre o contemporâneo e a falta de verba

As festas acabaram e as quadrilhas juninas agora só levantam a poeira ano que vem? De jeito nenhum. A rotina intensa será retomada em breve, e a tradição fica sendo gestada para o ano seguinte. As que não conseguem verba necessária acabam ficando pelo caminho e desistem de continuar indo para as ruas.

Junho passou, as ressacas de julho também. E o que acontece com as quadrilhas juninas neste intervalo de quase um ano? Para os quadrilheiros, as pausas para descanso são bem pequenas. Daqui a pouco começa tudo de novo: reuniões, pesquisas aprofundadas, definição de tema, busca de patrocínios, e por aí vai. É diferente para os espectadores que, depois do meio do ano, ficam saudosos pelo próximo São João no chamado “País do Forró”. E a verdade é que, de um ano para o outro, nem todas as quadrilhas voltam.

Em um mapeamento realizado em 2012, pela professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe, Eufrázia Cristina Menezes Santos, foi destacado que em Sergipe havia um total de 102 quadrilhas no estado de Sergipe.

Em 2024, de acordo com a Associação das Quadrilhas de Sergipe (Asquaju-se), há cerca de 40 quadrilhas em atividade. Esse número representa um desaparecimento de aproximadamente 60% das quadrilhas do estado em relação a 2012.

Durante o Campeonato Brasileiro de Quadrilhas Juninas, que aconteceu em Aracaju no final de julho, o marcador da quadrilha Pau Melado, do Distrito Federal, expressou preocupação com o desaparecimento das quadrilhas. “Cadê as outras quadrilhas juninas?”, bravejou Hamilton Tatu ao microfone.“Vocês precisam renascer a força do movimento junino. Sergipe é respeitado em todo o Brasil”, completou.

A transformação da quadrilha em espetáculo traz consigo uma bagagem que muitos grupos não conseguem sustentar, como por exemplo, o custo em armarinho, tecidos, costureiras, como destaca Gilson Sousa, diretor da quadrilha Século XX. “Tem 30 damas e a indumentária de cada uma custa em média 2.500 reais. Tem, também, 30 cavalheiros, que cada roupa custa, em média, 1.000 reais. Mas também tem transporte de deslocamento para os eventos, alimentação, estrutura, cenários e o grupo musical, que dá um custo muito alto”, explica.

Também é tradição que algumas quadrilhas precisem improvisar para angariar recursos, realizando bingos, bazares e recebendo doações. A quadrilha Unidos em São João, por exemplo, foi fundada em 1980, e, ao longo de 20 anos, a quadrilha fez apresentações em eventos e até em asilos. No entanto, em meados dos anos 2010, a Unidos em São João resolveu parar as suas apresentações em concursos, pois o dinheiro que recebia não era o suficiente para se igualar às outras quadrilhas.

O que se vê nas apresentações está longe de traduzir todas as atividades realizadas por quadrilheiras e quadrilheiros. Quando junho dá os seus primeiros sinais de que está chegando, muitos quadrilheiros já estão com suas roupas prontas, as alpercatas justinhas no pé e a vontade de dançar pulsando no peito. Essa garra permanece, chega julho, começa agosto, e ainda é possível ouvir a batida do xaxado e voz de Luiz Gonzaga nos mostrando o céu de São João.

Em 2024, o Campeonato Brasileiro de Quadrilhas Juninas encerrou a parte do ciclo que mais fica na memória da população. Durante o campeonato, quadrilhas de muitos estados, a maioria do nordeste, vieram concorrer ao prêmio de 25 mil reais. A vitória e o incentivo financeiro são combustíveis importantes para a continuidade das quadrilhas, mas infelizmente frente à planilha de gastos, ficam abaixo de 50%.

De acordo com Marcos Borges, integrante da quadrilha Unidos em Asa Branca, para uma quadrilha entrar no Ciclo Junino, precisa aplicar uma quantidade exorbitante de dinheiro. “Hoje para quem faz parte do Ciclo Junino os investimentos são absurdamente altos, chegando a casa dos 250 mil reais a 300 mil reais. Estamos falando de quadrilhas juninas que geralmente competem no cenário regional. Sem investimentos mais vultosos e aportes maiores é quase que impensável manter essa tradição viva nos próximos anos, a nível competitivo”, afirmou.

Concursos juninos mudam completamente a vida de quadrilheiros que dedicam as suas vidas para manter viva a tradição e a cultura nordestina, enquanto não abandonam suas rotinas complementares, afinal quase nenhum quadrilheiro é apenas quadrilheiro. E são meses de ensaios, preparos e organizações para poder entregar um espetáculo de encantar os olhos.

Valtermir França tem 54 anos e atua como enfermeiro, além de ser pai de três filhos e avô de três netos. Duran Duran, como é conhecido, dançou em quadrilha por quase 30 anos. Atualmente, ele organiza alguns eventos juninos, como a rua de São João deste ano de 2024. “A quadrilha representa tudo para mim. Sou nordestino de corpo, alma e coração – tanto que não saí do meio junino, permaneço”, diz com convicção.

Em alguns casos, os investimentos particulares dos componentes acabam sendo cruciais para colocar as quadrilhas juninas nas ruas. Jailton dos Santos, conhecido como Janjão, viu o ofurô da quadrilha passar pelas ruas de Sergipe, mas a fogueira foi se apagando até restar algumas brasas que queimam até hoje. Hoje, com 63 anos, ele trabalha como transportador escolar. Janjão acompanhou de perto o surgimento da Unidos em São João, a sua função dentro da quadrilha era a de marcador. “A despesa é muito alta hoje. Eu já cheguei a vender meu carro pra poder pagar a despesa da quadrilha”, completou Janjão.

Em Aracaju acontecem, todos os anos, os tradicionais concursos de quadrilhas, como o Arraiá do Arranca Unha e o Gonzagão. Esses concursos são realizados pelo Governo de Sergipe por meio da Fundação de Cultura e Arte Aperipê (Funcap). Segundo a Funcap, em 2024, foram inscritas 18 quadrilhas nos concursos, o que levou a um investimento de 180 mil reais, além do valor investido para as premiações, que somando chegaram a 40 mil reais. No ano de 2023, a primeira colocada nos concursos recebeu 10 mil reais, já neste ano de 2024, o valor foi alterado para 20 mil reais.

Além dos concursos, em Aracaju acontece a Vila do Forró, que neste ano teve uma programação de  60 dias. Para cada quadrilha que se apresentou na Vila, foi pago um valor de 3.500 reais por apresentação, um aumento de 40% em relação ao ano passado, que foi de 2.500 reais.

A Funcap entende que o valor ainda é abaixo do necessário para as quadrilhas. “O incentivo financeiro concedido pela gestão estadual pode ainda não ser considerado o suficiente pelas agremiações, mas não se pode negar que já houve um grande avanço e que veio contribuir para sanar as despesas que elas possuem”, declarou a entidade em resposta à Mangue Jornalismo.

JC Santana, da Asa Branca, afirmou que a quadrilha recebeu 12 mil reais da prefeitura de Aracaju em 2024, mas o ideal seria 25 mil reais. A Mangue Jornalismo procurou a Fundação Cultural Cidade Aracaju (Funcaju), ligada à Prefeitura de Aracaju e que é responsável pelo fomento à cultura da cidade, para entender mais sobre a destinação de verbas para as quadrilhas, mas até o fechamento da reportagem não obteve respostas.

Mudanças, tradição e investimentos

As quadrilhas que se apresentam em concursos estão modificando os seus níveis de performances a cada ano que passa. José Carlos Santana, conhecido como JC Santana, faz parte da quadrilha Asa Branca. Há mais de 10 anos atrás, ao se encantar com a apresentação da quadrilha, decidiu que queria fazer parte daquilo. Foi então que em 2010 recebeu o convite inegável de ser marcador. E desde então a Asa Branca vem aprimorando as suas danças.

“A Asa Branca passou por um processo de evolução, saiu do estágio tradicional de construir coreografias para o modelo estilizado de fazer espetáculo junino, por conta da adaptação ao meio junino contemporâneo. Com esse novo tempo de competições, fomos nos adaptando ao contexto atual”, contou JC.

Originalmente, as quadrilhas possuem o intuito central de contar a história de um casamento. A união da noiva e do noivo é carregada de muita alegria pela rainha e rei do milho, eles que chamam os outros dançarinos para entrarem na roda e fazerem todo o ritual de celebração. Porém, esse estilo de dança está ficando apenas nas lembranças das pessoas e nas apresentações que não entram para os concursos.

O pesquisador, jornalista e diretor da Quadrilha Século XX, Gilson Sousa, opinou que as quadrilhas estão perdendo a tradicionalidade. “O baião, o xaxado, a ciranda, a grande roda, o túnel e o quebrar caranguejo… isso é tradição e está se acabando. Em muitas quadrilhas, hoje em dia, não se vê mais isso”, afirmou. Gilson ainda acrescentou, sob o semblante de emoção, o quanto presenciar essa mudança é doloroso. “Para a gente, que é quadrilheiro raiz, dói um pouco. Mas é um caminho sem volta, é a modernidade. Tradição não se mata. Tradição não morre. A gente pode fazer algumas adaptações, mas matar tradição junina chega a ser um crime hediondo para quem valoriza a cultura”.

As manifestações com alertas de que o São João vem perdendo a sua tradicionalidade acontecem são antigas. Em uma coluna da Gazeta de Sergipe publicada em 25 de junho de 1970, Clara Angélica, jornalista que começou sua carreira na Gazeta através da coluna Vida Social, afirmou que “já há alguns anos que as festas de São João e São Pedro vêm perdendo, aos poucos, aquele ar de grande festa”. Os tempos passaram, mas na década de 90, a Gazeta de Sergipe continuava a destacar que o São João não era mais o mesmo. “Na realidade se constata uma alteração dos hábitos e costumes que desvalorizam a cultura e tradição”, afirmou o jornal em sua edição de 23 a 25 de junho de 1991.

O processo de mudança da tradicionalidade para o espetáculo nas apresentações se tornou um dos gatilhos para que muitas quadrilhas deixassem de existir.

O renascimento

Sem conseguir se manter ativa, também por questões financeiras, a quadrilha Chapéu de Couro, depois de quase três décadas fazendo brilhar as ruas de Sergipe, precisou aquietar-se em 2016. A quadrilha virou um ícone de referência no estado, quando na década de 90 se tornou bicampeã brasileira no concurso junino.

A pausa de reunir os quadrilheiros para dançarem nas ruas deve chegar ao fim. Jean Carlo, que assumiu a liderança do grupo em 2015, após a filha do fundador Cardosinho, Adriana Cardoso, confiar que ele faria um belo trabalho, afirmou que ano que vem,  em 2025, a Chapéu de Couro estará de volta.

“Desde a sua parada entre 2016 até 2024, devido a problemas de recursos financeiros, é notável a falta que a mesma faz ao São João Sergipano. Mas agora, com algumas parcerias já firmadas, torna-se alcançável trazer aos palcos do mundo junino a quadrilha mais famosa de todos os tempos”, contou Jean.

No dia do São João, 24 de junho, o atual presidente Lula, reconheceu por meio da Lei N°14.900, que a quadrilha junina é uma manifestação da cultura nacional. A Lei foi assinada, também, pela ministra da Cultura, Margareth Menezes. Em entrevista para o Brasil de Fato, o historiador Aterlane Martins afirmou que mesmo com o reconhecimento presidencial  não há um plano de salvaguarda para esta expressão popular.

O retorno da Chapéu de Couro e o reconhecimento a nível nacional, por exemplo, é um exemplo do esforço que esses grupos, responsáveis por uma parte importante da cultura sergipana, fazem para manter as quadrilhas juninas vivas por mais tempo. Mesmo se reinventando, se redescobrindo e traçando novos planos, as quadrilhas de Sergipe, o país do forró, merecem reconhecimento por tentarem, e muitas vezes conseguirem, manter viva a cultura do povo sergipano.

EDIÇÃO: Aline Braga

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