Com a reportagem de hoje, a Mangue Jornalismo continua com a série sobre o golpe civil-militar de 1964 e a ditadura em Sergipe, trazendo as histórias de Ana Côrtes e João Bosco Rolemberg, um casal de sergipanos militantes de esquerda. A jornada deles é tão ampla que será dividida em duas partes.
Grande parte do material produzido pela série da Mangue Jornalismo vem do relatório final da Comissão Estadual da Verdade (CEV/SE), organizado por Andréa Depieri e Gilson Reis e que contou com a colaboração decisiva de conselheiros e pessoal de apoio.
Em 1974, Ana Côrtes e Bosco Rolemberg foram presos em Garanhuns/PE. A prisão deles fazia parte do avanço da ditadura contra dirigentes nordestinos do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e da Ação Popular (AP). Apesar da prisão ter sido em Pernambuco, a militância de Ana e Bosco começou anos antes, em Sergipe, onde também foram perseguidos pelas forças de repressão.
Ana Côrtes e João Bosco Rolemberg se conheceram durante o ensino superior na Faculdade de Serviço Social, em um momento em que as faculdades existentes na capital sergipana estavam se unindo para implantar a Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ambos compartilharam a militância na Ação Popular e na representação estudantil de Serviço Social. Assim, acabaram engajando-se no “movimento”.
Em 1968, Ana Côrtes se formou na Faculdade de Serviço Social, porém, sob recomendação de militares do 28º BC, foi impedida de retirar o seu diploma. Ela foi obrigada a retornar a Frei Paulo/SE, sua terra natal, a fim de fugir das perseguições sofridas em Aracaju.
Em outubro do mesmo ano, Bosco Rolemberg parte para o Congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna/SP, onde foi preso junto à delegação sergipana. Segundo Bosco, o congresso permitiu a construção de um grande banco de dados da repressão política do governo militar que se acirraria nos anos seguintes.
Casamento, mudança para São Paulo e militância operária
Ana Côrtes e Bosco Rolemberg casaram-se em 1969 e, em seguida, mudaram-se para São Paulo. Nesse momento, a vida deles já estava marcada pela perseguição política: Bosco respondia a processo criminal em decorrência do Congresso de Ibiúna e, portanto, não possuía uma “ficha corrida” limpa. Ana não podia trabalhar na área de formação porque seu diploma não lhe fora entregue.
Na segunda metade da década de 1960, a AP passava por um processo de “proletarização”. A organização defendia ficar mais próxima dos mais pobres. É nesse contexto que a AP dá opção para que o casal sergipano fosse trabalhar junto à população operária na região do ABC paulista, na cidade de Mauá, para fazer formação política.
Segundo Inquérito Policial (IP) 40/78, Bosco trabalhou na Volkswagen, enquanto Ana na Troll, onde, para o IP, o casal fazia panfletagem e “pichamentos” nas paredes.
Sempre ligados à Igreja Católica, sobretudo devido à origem da AP, atuaram sob a direção de Herbert José de Souza, o Betinho, somando-se a reivindicações mais amplas quanto às necessidades da comunidade, o que diante do quadro de tensão política instaurado no país, àquela altura, representava um grande risco.
Ana Côrtes contou à CEV/SE que o clima em São Paulo era “barra pesada”: “Se você pegasse um ônibus, você sentia cheiro de repressão. Você entrava em certos espaços, era cheiro de repressão”, disse ela. Também por isso, o casal mudou cidades, mas sempre regiões de base proletária da Grande São Paulo.
Em 1972, foi aberto um processo contra Betinho e outros integrantes da Ação Popular por conta do trabalho social. Entre os indiciados estava o sergipano Bosco Rolemberg. “Minha primeira condenação pela Auditoria Militar de São Paulo foi a dois anos de reclusão e a cassação dos meus direitos políticos por dez anos, mas não fui preso. O alvo era Betinho. Ele também conseguiu escapar”, disse Bosco à CEV/SE.
Transferência para Pernambuco e trabalho na zona da mata
Entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, a AP passou por cisões internas e um dos grupos dissidentes foi incorporado ao PCdoB, dentre eles Ana Côrtes e Bosco Rolemberg.
Em 1971, o casal foi deslocado de São Paulo para Pernambuco, onde atuaram junto aos trabalhadores da zona da mata pernambucana, palco dos movimentos das Ligas Camponesas, que tinham importância política desde antes do Golpe Militar de 1964.
Para retornar para o Nordeste, o PCdoB viabilizou documentos falsos para Ana e Bosco para que pudessem proteger suas identidades. Eles passaram a viver a realidade do trabalhador do campo, morando em casa de chão batido e fogão a lenha. Viveram dois anos na mata pernambucana e lá, assim como no ABC, tiveram muitos empregos.
Morando em Palmares/PE, eles vendiam roupas compradas em Recife. Durante esta atividade, suspeitaram de que estariam sendo seguidos. “Bosco percebeu que nós estávamos sendo cercados. As coisas diferentes, umas personagens diferentes na cidade. Aí mudamos para Garanhuns/PE”, disse Ana.
Em 6 de junho de 1974, cerca de duas semanas após chegarem à nova cidade, Rolemberg foi até Caruaru para ter um encontro com um outro militante do PCdoB. Ao comparecer ao local, Bosco não o avistou. “A nossa alternativa era esperar 24 horas. No dia que cheguei, fui na pousadinha e uns caras fizeram perguntas idiotas. Eles já estavam me rastreando”, revelou Bosco.
“Me agarraram, arrastaram e me colocaram numa Rural”
Para completar as 24 horas de espera na cidade, Bosco pegou um ônibus e circulou pela cidade, quando percebeu que começou a “subir os caras à paisana, né, pedindo documento. Percebi que era repressão. Vieram pedindo documento, documento, documento, documento, quando chegaram a mim já me agarraram, arrastaram e me colocaram numa Rural”, lembrou Bosco.
Esta captura marca sua trajetória sob a tutela ilegal do Estado. Segundo Bosco Rolemberg, ele foi levado algemado até o que seria um oficial superior que provavelmente comandava a operação. Neste momento, o militar mostra ao sergipano uma foto tirada em Ibiúna, comprovando que ele já era um alvo estudado.
“Eu disse ‘Não, não sou essa pessoa’. [O militar perguntava] ‘Você é esse aqui?’. [O militar] disse ‘Olhe, ou você conversa comigo aqui agora ou vou entregar você a um bando de facínoras’. Eu sabia que o destino era o quartel, o DOI/CODI de Recife. Eu neguei”, lembrou Bosco.
Em Caruaru, Ana, ciente da demora do retorno de Bosco, preparou-se para a escapada com base em um dos métodos de segurança que o PCdoB possuía: caso um militante não voltasse no momento anteriormente planejado, devia-se evadir do aparelho — que neste momento era a casa em que viviam em Garanhuns — mesmo que para isso tivesse que deixar seus pertences para trás. No entanto, ela decidiu esperar até o outro dia na esperança que o marido retornasse.
“Coloquei os livros em cima da cama, e quando estava pronta para sair, no dia seguinte pela manhã, minha casa foi invadida por quatro ou cinco. Homens à paisana com metralhadoras, entraram por detrás, entraram pela frente e me imobilizaram na cadeira da primeira sala. A casa era simples, aquela casa de interior. Aí quanto mais eles apontavam a metralhadora, mais eu gritava alto pedindo socorro à vizinha. E ele [o militar falava]: ‘se não calar, vamos atirar’. E eu continuava gritando. Eles levaram tudo. Esses livros nem se fala, e outros pertences, e um dinheiro, que eles acharam e queriam botar no bolso”, disse Ana Côrtes à CEV/SE.
Assim como Bosco, Ana relata ter sido colocada em um veículo e tirada do local sem informá-la ou a qualquer outra pessoa para onde ela estava sendo levada. Uma vizinha, dona da casa alugada, teria chamado a polícia para relatar o sequestro da inquilina e a informação do primeiro posto policial encontrado era de que não teria sido vista nenhuma movimentação nesse sentido.
Os relatos de tortura no DOPS do Recife
Tanto Bosco quanto Ana foram levados para o DOPS de Recife, segundo o livro Dossiê Itamaracá de Joana Côrtes (2015, p. 24-29). À CEV/SE, Bosco relatou que, em sua chegada ao órgão, foi colocado em uma sala refrigerada, onde ficou suspenso por argolas em seus pulsos, em uma altura que não conseguia firmar seus pés no chão.
Este era o começo de uma série de torturas que durariam dias: “Choque elétrico com pinça na orelha ou na língua. A outra pinça no pênis ou nas nádegas. Choque elétrico e espancamento generalizado. Murro, pontapé, pedaço de pau nos testículos. Uma voz que devia ser um oficial superior. ‘Porrada não, choque. Porrada não, choque’. Eu uma hora acordei estava no chão, um cara me examinando, perguntou o que é que tinha acontecido e me deu um papel em branco pra eu assinar”, lembrou Bosco.
Ao longo das sessões de espancamento, Bosco relata que as torturas eram associadas a um interrogatório que durou dois dias e que visava chegar a nomes da resistência que possuíam contato com ele, a exemplo do militante de Caruaru/PE que ele encontraria. Segundo ele, quando não estavam sob tortura, era posto em uma cela que não podia ficar de pé. Era colocada uma garrafa no lugar para que pudesse urinar.
De dentro da cela, ele ouvia outros presos serem levados para a tortura, o que ele alegou, em depoimento, ser uma tortura psicológica que reverberou para anos depois da prisão: “Ainda hoje você escuta o tilintar de uma chave sabendo que pode ser você ou vai ser o seu vizinho que vai ser torturado, é terrível ainda hoje”, lembra ele.
Bosco disse que quando cessavam as torturas, a turma presa ia conversar para saber quem era que estava ali nas celas ao lado. “Arthur Geraldo de Paula estava numa cela. ‘Porra, Arthur, você tá aí?’ Luciano Siqueira estava na outra. A gente conversava baixinho. O tempo todo era isso. Era a gente escutar o tilintar da chave e sabia: ‘Vai levar alguém pra tortura novamente’”, afirmou Bosco.
As torturas contra Ana Côrtes no DOPS do Recife
A chegada de Ana Côrtes ao DOPS também foi marcada pelo mesmo tipo de tortura que Bosco havia sofrido. Ana foi içada por argolas de ferro e por conta disso não conseguia pôr sequer a ponta dos pés no chão e gritou por toda noite: “Tira-me daqui, tira-me daqui”.
Naquele momento ela ainda não tinha informações do paradeiro de Bosco, pensava que ele havia sido assassinado pela repressão. Ela apenas teve um sinal de Bosco e, consequentemente, de que ele poderia estar naquele prédio quando avistou a camisa com a qual ele havia saído de casa dia antes, para o contato com o companheiro de Caruaru/PE.
Depois disso, Ana foi levada para uma cela onde ficou por quase dois meses e só saia de lá para ir ao banheiro ou para novas sessões de tortura, as quais ela descreveu em depoimento à CEV/SE. “Choque elétrico na ponta da orelha, na ponta do dedo da mão, do pé”, disse Ana.
Ela lembra também que a alimentação que recebia não era de boa qualidade, reclamação comum a presos políticos que estiveram encarcerados em Pernambuco naquela época, como registra o livro Dossiê Itamaracá (CÔRTES, 2015). “O carcereiro ia chamar a gente para depor, eu sabia que ia passar por choque elétrico. Que ele queria informações. Informações de quê? Eu não tinha. Em Garanhuns, a gente não tinha viajado para entrar em contato com ninguém”, disse Ana.
Ana Côrtes e Bosco Rolemberg só voltaram a se encontrar no traslado aéreo de Recife para o Sudeste. Além da transferência e prisões ilegais, a violação de direitos humanos acontecia na maneira em que o casal era transportado.
Segundo o depoimento de Ana Côrtes, ambos tiveram os olhos vendados e foram encapuzados desde a saída de carro do DOPS de Recife até o avião, provavelmente pertencente à FAB. Os agentes de Estado deram a Ana uma roupa que não lhe cabia direito. “Aí eles pegavam uma espécie de pena e ficavam passando no início da minha coxa aqui, nas pernas. Frio, o avião frio, eu fiquei gelada. E esse avião não chegava nunca”, contou Ana em seu depoimento à CEV/SE.
Eles foram levados para o DOI/ CODI do Rio de Janeiro e de São Paulo
A primeira parada dos sergipanos foi o DOI/ CODI do Rio de Janeiro, onde eles foram fichados e novamente interrogados. De acordo com o depoimento de Ana Côrtes à CEV/SE, a cela em que ficaram presos tinha um nível tão grande de claridade que ela teve dificuldade de mensurar quantos dias passou nesse local, tendo em vista a dificuldade que tinha para dormir.
Após a rápida passagem pelo Rio de Janeiro, Ana e Bosco foram levados, novamente de avião, ao DOI/CODI de São Paulo. Chegando a São Paulo, Ana Côrtes foi novamente conduzida para prestar depoimento.
Neste momento, dois homens estavam na sala de interrogatório e, segundo sua oitiva à CEV, um deles disse “pode tirar a roupa, porque seu depoimento vai ser nua. Naquela época, a gente não ficava nua nem na frente de uma irmã quando a gente era pequena. Aí eu firmei que não tirava. Aí ele: ‘Se não tirar, quem vai tirar sou eu. Somos nós’”, lembra Ana.
A militante disse que eram os dois homens e não teve outra alternativa, teve que tirar a roupa. “Eu não queria a mão de torturador no meu corpo. Tirei. Principalmente pelos meus seios, ele [um dos agentes na sala] descobriu que eu estava grávida. Eu fiz que não entendia. E assim eles fizeram o interrogatório, eu completamente nua”, revela.
Na CEV/Se, Bosco conta que a tortura psicológica era uma constante neste momento no DOI/CODI paulista. Os agentes de Estado se referiam sempre às torturas realizadas em Pernambuco e prometiam novas sessões. Rolemberg conta que foi cerca de uma semana de interrogatórios ininterruptos.
“Com a luz acesa, as equipes se revezavam, e o tempo todo obrigando você a se desorientar, a se desestruturar. Tão difícil e duro e desumano quanto o choque elétrico, o espancamento generalizado. O fato dessa tortura psicológica, dizer ‘Nós fazemos com vocês o que nós quisermos. E tome interrogatório. Foi uma semana isso. Foi quando soubemos da gravidez de Ana e da tortura, um crime de lesa-humanidade, a violência de gênero, e nas condições de gravidez”, afirma Bosco.
Ana Côrtes narra em seu depoimento que, após várias sessões de tortura, militares mostravam-lhe álbuns com fotografia de militantes “subversivos”, alguns desses companheiros que havia conhecido na militância e convivido em Mauá e outros municípios da Grande São Paulo.
Ela foi levada de carro por essas localidades sem capuz ou venda para que pudesse, assim, reconhecer lugares como casas de companheiros ou locais de operações do Partido. Em depoimento à CEV/SE, ela conta que, por dificuldades normais de memória geográfica, não conseguia se recordar daquilo que os militares desejavam, e quando reconhecia algo continuava negando a identificação. A esta altura, a prisão do casal continuava ilegal, ninguém sabia onde estavam.
Em depoimento à CEV/SE, Bosco afirma que ações do movimento democrático de resistência ao processo ditatorial, somadas a falas de parlamentares como José Carlos Teixeira (MDB), fizeram com que seus nomes fossem parar na lista nacional de desaparecidos políticos.
Retorno ao Recife, “legalização da prisão”, internação e volta para Aracaju
Em 1º de agosto de 1974, após retorno a Recife, ocorreu o processo de legalização da prisão. Bosco disse em depoimento à CEV/SE que esteve preso ilegalmente de 6 de junho de 1974 até aquele momento.
A recepção no regresso a Recife não foi nada amigável: “Fomos recebidos pelo torturador Luís Miranda. Bandido. Assassino em Pernambuco. Ele nos recebeu na porta da Polícia Federal espumando de ódio. Me espancou na entrada, porque ele disse que era a vontade dele ter sido da equipe da minha captura, que eu ia ver o que era bom. Aí me espancou na entrada da porta do DPF em Recife. Ficamos sob a custódia da Polícia Federal, mas presos no Dops, em Recife”, lembra Bosco.
Neste momento de legalidade, entrou em ação a advogada Mércia Albuquerque, que já representava outros presos políticos, e se tornou o elo de ligação dos sergipanos presos com seus familiares, assim que sua condição no cárcere foi formalizada.
Por conta do processo de torturas, Ana Côrtes corria um sério risco de aborto e Albuquerque entrou em contato com a família de Côrtes para que pagassem sua estadia em um hospital particular em Recife, “porque a repressão não ia colocar ninguém em hospital para salvar um filho, né?”, lembrou Ana à CEV/SE.
“Enquanto isso, Dr.ª Mércia foi lá no Hospital Beneficência Portuguesa, em Recife, e conversou com o diretor, se ele permitia a transferência. Ele disse: ‘a jovem pode vir ser internada aqui. Mas, porém, nenhuma repressão. Polícia Federal nenhuma, nenhum membro da repressão pode entrar no apartamento dela. Só vai entrar no apartamento dela a irmã, freira e o médico’. E assim foi. Eu estava muito debilitada. Todo dia o diretor botava os pés no hospital. O cara da Polícia Federal que estava ali, disse: ‘Não vai dar alta não à moça? Ela já tá boa’”, ressalta Ana.
Mércia Albuquerque planejou, junto ao médico responsável por Ana Côrtes, para que a alta hospitalar acontecesse apenas quando houvesse decisão judicial que lhe permitisse responder ao processo em liberdade. A internação durou entre os dias 5 de setembro e 8 de outubro de 1974, quando teve alta. Não retornou mais ao cárcere, passando a responder ao processo em liberdade.
“Ela me levou para casa dela. Eu fico imaginando até hoje como é que uma advogada leva uma presa política para casa dela. E lá na casa dela eu fiquei algumas semanas. Aí algumas companheiras me levaram roupa, e ali fiquei, comendo na mesa que a família comia, a dormir na casa que era deles”, disse Ana em depoimento à CEV/SE.
Ana Côrtes voltou a Sergipe em 3 de novembro de 1974, próxima do quinto mês de gestação. No retorno, Messias Góis, que além de advogado é casado com sua irmã, Cacilda Góis, foi a Pernambuco para acompanhá-la na viagem de volta. Isto se deu pelo receio de Ana chegar ao aeroporto e haver outra detenção. Apesar de estar fora da prisão, com residência e emprego fixo, Ana Côrtes era obrigada a viajar para Pernambuco mensalmente para apresentar-se à Auditoria Militar.
A respeito da gravidez, Ana Côrtes contou que devido ao momento político do país, durante muito tempo, o casal evitou ter filhos. Isso porque havia um discurso sobre atitudes de agentes contra filhos dos subversivos que aterrorizava os militantes e fazia com que se propagasse a ideia de não natalidade neste momento considerado de guerra.
“A repressão pegava os filhos, e isso era verdade, pegava os filhos, botava nas mãos de pessoas e trabalhava a cabeça das crianças para não aceitar os pais. Então nós evitamos ter filhos naquela época. Nós tivemos essa atitude, eu e Bosco, de evitar filhos, no período da guerra, porque era risco para nós, mãe e pai, e principalmente para a criança, né?” lembra Ana.
Bosco continuava preso no Recife e foi para Itamaracá
Enquanto Ana Côrtes se restabelecia em Aracaju, Bosco continuava encarcerado sob a custódia da Polícia Federal. Ele ficou no DOPS de agosto de 1974 até janeiro de 1975, quando foi removido para a Penitenciária Barreto Campelo. Este período foi bastante difícil por conta do isolamento a que fora submetido, enquanto aguardava o parecer da Auditoria Militar:
“Era a coisa que eu mais queria: sair do isolamento do Dops e ir para o coletivo. E eu sabia que era ainda de transição, ainda sob a ameaça de voltar para interrogatório, de [sibila] voltar pro DOI. Então, eu tinha medo. E também porque eu sabia que no coletivo estavam Luciano (Siqueira) e Alanir. Então, a coisa que eu mais queria era ir pra Itamaracá, para ter um tratamento melhor. E pra me encontrar. E pra ter vida coletiva”, disse Bosco. Ele foi para Itamaracá no início de janeiro.
“O pessoal de Itamaracá está sem televisão, sem radiola, sem banho de sol e sem visitas especiais. Eu estou resolvido a viver onde tiver mais pessoas, quanto mais gente, mais suportável a vida, mais rica a experiência”, conta Bosco em carta à família.
Na próxima reportagem da série, a Mangue Jornalismo mostrará a segunda parte dessa reportagem, com a vida na Penitenciária Barreto Campelo, em Itamaracá.
Referência:
CORTÊS, Joana. Dossiê Itamaracá: cotidiano e resistência dos presos políticos da Penitenciária Barreto Campelo, Pernambuco (1973-1979). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.