Anne Carol é uma artista sergipana, independente, negra, periférica e lésbica.
A cantora e compositora cresceu sob influência musical de seu avô paterno Mestre José Ranulfo, tocador de São Gonçalo e de sua tia Nadir da Mussuca, do Samba de Pareia.
Dona de uma voz marcante, Anne Carol canta a vida, a vivência de amigos da periferia e do seu mundo.
Em suas músicas, a jovem fala de resistência, afeto, de amor, de aquilombamento e negritude.
Com uma musicalidade que transita pelo Reggae, Soul e outros gêneros, Anne afirma cantar a Música Preta Brasileira. Apesar de ter aptidão para cantar desde a infância, inicialmente, Anne Carol despertou interesse apenas pelo violão.
“Vivia cantando no banheiro, minha irmã, minha mãe e meu pai me falavam que eu cantava, só que eu não sabia que eu poderia ser cantora”, lembra ela.
Após se convencer de que gostava de cantar, Anne fez aulas de canto e passou a cantar na igreja. Depois de um período, a jovem se afastou do templo, participou das bandas PrimozRoots (junto com seus primos), e Anne Carol e os Afrodrums.
Após um período, a jovem e os integrantes da Afrodrums seguiram por caminhos diferentes e Anne Carol iniciou sua carreira solo. Ela chegou a representar Sergipe em algumas audições do The Voice Brasil e, apesar de não avançar na competição, conta que a experiência a ajudou a ter certeza de que queria ser cantora profissional.
Em 2023, a artista ganhou a premiação de melhores do ano do programa Combinado. Atualmente, Anne Carol que já cantou na Igreja Católica, passou a cantar no farol, nas casas, nos palcos e nos corações dos sergipanos.
Confira a entrevista da Mangue Jornalismo com essa artista que respira arte, política, vida, cantos e sonhos.
Mangue Jornalismo (MJ) – Sua música tem várias influências, mas não parece difícil definir um gênero. Você pode falar um pouco sobre isso?
Anne Carol (AC) – Eu falo que canto a música preta brasileira e posso seguir em várias vertentes. A indústria da música em geral tem muitos padrões. Assim como tem padrões na estética, desfiles e outros meios, também existem os musicais. E eu quebro padrões. Para mim, o Reggae foi e ainda é uma base muito forte. A partir dele, eu tive referência para criar as minhas músicas, mas eu queria permear entre outros gêneros e tirar esse padrão. E assim, trazer a minha música para outros gêneros musicais. Não só o Reggae, não só a MPB, mas o Soul, a Black Music. Eu fui estudando mais músicas, mais tempos e aí construí o álbum Semblantes. Então, eu digo que minha música é música preta brasileira, ela anda e faz vários gêneros, anda pelo Reggae, Black News, e também pelo Pagodão. Então, por mais que em algum ou vários momentos você tenha que enquadrar ela no gênero, minha música permeia por todos esses gêneros aí. Quero alcançar outros também.
MJ – Você diz que o álbum Semblantes representa a sua essência, por quê?
AC – Eu o eu criei e só nele que me reconheci enquanto cantora profissional. O Semblantes significa muito pra mim. Ali estão as minhas vivências, o que eu passei e que passo até hoje. Às vezes, eu vou lá e ouço as músicas que fazem parte de mim, elevam um pouco a minha autoestima e me dão direcionamentos. Por mais que o próximo álbum possa ser totalmente diferente, o meu ponto de início é o álbum Semblantes. Até as músicas autorais de outros compositores, como Lennon que é Epidérmica e Negra Mulher fizeram parte da minha vivência e fizeram parte do que eu sou. A música Semblantes, sou eu repelindo e falando que nada vai me parar, que as coisas acontecem e tudo passa pela nossa frente e a gente não vê no cotidiano. Cantar no farol, sou eu leve cantando ali e sendo eu. No rolê sou eu falando de amor, falando de outra pessoa, falando de uma outra mulher negra. Em Epidérmica sou eu ali falando e me posicionando, que eu não vou deixar de cantar Epidérmica por ela ser uma música muito política, mas você vai ter que ouvir a Epidérmica e você vai cantar Epidérmica. Entende que faz parte de mim? Não só de mim como de outras pessoas também que se reconhecem nela.
MJ – Você tem uma música preferida do álbum Semblantes?
AC – Eu não tenho uma música preferida. Todas ali para mim são preferidas. Elas significam muito para mim. Não tem como falar uma que seja a minha preferida ou uma que eu mais escute, porque eu escuto todas. Raízes para mim é muito forte, é uma música que me conecta as minhas raízes e me lembra da onde eu vim e me faz dizer ‘você vai chegar nesse lugar, mas se lembre da onde você veio, das suas raízes, das suas forças e dos seus orixás ancestrais, do seu quilombo’. E aí depois vem Cantar no Farol que já é uma música mais leve, que atrai amigos e prosperidade. Tudo que Virá que também já fala de mulher, já fala de Orixá. Então, tudo isso sou eu. Tudo isso é o que eu vou fazer, é o que eu estou fazendo, o que estou caminhando pra caminhar. E que eu estou construindo também.
MJ – O que foi fundamental no processo de construção?
AC – Não construí nada sozinha, mas junto com a galera, quem acreditou muito no meu trabalho. Sem essas pessoas eu estaria onde eu estou, mas não estaria do mesmo jeito. Não com a mesma potência de tudo que está acontecendo, porque eu acredito muito que precisamos de outras mãos, de outras pessoas que se identifiquem com você, que sejam verdadeiras, reais, que estejam dispostas a realmente aquilombar e a criar sítios sem pensar em muitas coisas que acabam as competências boas durante esse percurso, durante esse processo.
MJ – Você carrega algumas bandeiras de grupos minorizados. Qual a importância de ter um posicionamento enquanto artista?
AC – Acho muito importante se posicionar. Eu sempre me posicionei, enquanto mulher negra, lésbica e periférica, que sofre todos os preconceitos. Em todos os dias da minha vida, desde quando me reconheci, e não só me reconheci, como tive coragem de falar sobre o que eu era de verdade, quando entendi que tinha esse poder e essa potência de dizer quem eu era, de dizer da onde eu vim, não ter vergonha de falar com as pessoas que eu era negra e não era morena, que eu moro na periferia, e levanto a bandeira LGBTQIAP+, passei a me posicionar. Estou sempre me posicionando quanto a isso, sempre falando quem eu sou.
MJ: Você já sofreu preconceito por carregar essas bandeiras? Já aconteceu de você ser tratada de maneira diferente por alguém que não sabia que você é parte desses grupos minorizados?
AC – Sim, já aconteceu e eu acredito que ainda acontecem coisas que não chegam muito em mim. Eu acho que por eu ter também esse posicionamento de tipo bater de frente. As pessoas, às vezes, não conseguem me acessar nesse sentido, de desestabilizar. Porque eu não dou muita abertura. Mas, eu já sofri vários preconceitos, inclusive, em cima do palco, há alguns anos. Não queriam que eu fizesse o show, mas eu fui para fazer o show, então eu fiz. Deixar de fazer o meu show por ser quem eu sou? Eu sou uma mulher negra, retinta, as pessoas já me olham e julgam sem me conhecer. Já olham a gente como uma pessoa ruim e violenta. Eu estou aqui também para quebrar isso, sabe? Eu sou uma pessoa normal, independente do que eu faço e das bandeiras que eu carrego. E eu vou estar sempre me posicionando e falando.
MJ: Você sente que é valorizada pelos órgãos de cultura de Aracaju?
AC – A valorização dos órgãos não existe. Não, não, não rola. Eu fico até com receio de falar, porque já aconteceu um episódio em que eu fui gravar uma entrevista com uma emissora de TV, para falar sobre o lançamento do meu álbum e sobre o show que iria ter. Nós [equipe] pegamos vários contatos para botar na mídia e eu fui gravar essa entrevista, super-rápida falando sobre o processo da gravação, sobre o lançamento do álbum, e sobre o show. Falei que foi um álbum gravado por conta da Lei Aldir Blanc e aí eles manipularam toda a minha entrevista, botaram como se eu estivesse a favor daquele órgão lá específico, e eu não estava. Aí eu fui pra lá pra fazer uma coisa e fizeram uma outra coisa totalmente diferente. Então eu digo que eu não tenho valorização pelos órgãos públicos daqui de Aracaju. Eu acho que a valorização do público eu tenho muito, mas conquistei isso junto com todo mundo que trabalha comigo. Não tem reconhecimento, mas a gente tem essa manipulação de que esses órgãos estão fazendo tudo por nós, e não estão. Se a gente não for atrás, eles não vêm atrás da gente. Temos que correr com as nossas próprias pernas, fazer os nossos próprios eventos, nos juntar com as casas [de show] daqui de Aracaju para poder tocar, para poder fazer show.
MJ: Você não se apresenta muito em Sergipe, mas faz shows fora. O que você tem a dizer sobre a valorização dos artistas aqui pelos governantes?
AC – Eu não estou aqui para tirar ou estar brigando por nada de ninguém. Até porque as pessoas querem que a gente seja assim, mas é muito difícil quando você sabe que está rolando eventos no estado e você não está na programação. É muito difícil você não está no Festival de Verão ou de tudo que está acontecendo na cidade saber nem que eles não botam não pra ser esquecido. Ou a gente faz o nosso próprio evento ou os órgãos públicos não botam. A gente tem que estar sempre se escrevendo em editais? A gente está trabalhando tanto e vocês não podem chegar e dizer quero te contratar? Como vocês fazem com outras bandas, às vezes mais bandas de fora do que os daqui? A gente não tem esse reconhecimento, a gente precisa desse reconhecimento. Não só eu, mas todo mundo, outros artistas como Lampião, Lari, Táia, Morgana, Pérola Negra e outros. Era esse reconhecimento daqui e fora daqui. Porque aqui é a nossa base, mas não tem como dizer que aqui é a minha base, se eu preciso sair daqui para ser reconhecida.
“É muito difícil você não está no Festival de Verão ou de tudo que está acontecendo na cidade”, Anne Carol (Foto: Pritty Reis)
MJ – Como é viver da música em Aracaju? É importante o investimento do poder público?
AC – Eu não sobrevivo só da música, estou sempre fazendo freelancer para poder suprir as necessidades. Eu vivo na base e preciso pagar contas. Não moro de aluguel, mas divido despesas com meus pais, pois a gente não é rico. De amor e carinho a gente é rico, mas de dinheiro, não. Por isso, a gente precisa de valorização dos órgãos públicos. Eu falo não só de mim, mas também de todas as outras bandas. Todos artistas daqui de Aracaju estão batendo nessa valorização dos órgãos públicos aqui de Aracaju e a gente não tem.
MJ: Apesar de ter sofrido com preconceitos na infância e na adolescência, hoje você é uma mulher empoderada. Como você aprendeu a se defender?
AC – Aprendi isso com movimentos negros. Uma pessoa chegou para mim e falou que nós negros e negras andávamos olhando para baixo, é era o que eles queriam [sistema]. Eles não querem que a gente olhe pra eles, e olhar, olho muito menos. Depois que eu escutei essa palavra, fui andando de cabeça erguida e de todos os meus traumas, eu cuidei. Quando eu vi a força que eu tinha, ninguém me segurou. Acho que ninguém me segura até hoje. É isso que o sistema não quer que a gente saiba, até porque quando a gente se posiciona é uma ameaça para eles. Porque eles vêem que a gente sabe quem é quem e onde a gente pode chegar. Eu já sofri muito, até hoje sofro, mas eu tenho que seguir com a cabeça erguida, sempre sabendo onde eu quero chegar e o que eu quero alcançar.
JOSÉ CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo (supervisão)
@josecristiangoes
ESCUTE O ÁLBUM SEMBLANTES
Uma resposta