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“Olho para o meu lugar, olho para Sergipe e digo ‘porra, era para a gente ter muito mais’”, diz Lucas Tsuru

“Não adianta você ter projeto, ideias miraculosas, se você não tem quem apoia e quem acredita” (Foto: Valter Davi).

Criador da marca de grife artesanal Tsuru, Lucas Lemos completa dez anos de produção criativa em Sergipe. O artesanato dele é voltado especialmente para a utilização do couro. Começou fazendo pequenos acessórios, e com o passar do tempo e da demanda, Lucas foi se reinventando. Hoje, o carro-chefe da sua marca são as sandálias, inspiradas nas famosas priquitinhas de São João.

O caminho para chegar até aqui não foi solitário, mas a falta de incentivo público é o que mais o desanima, como ele mesmo diz. Lucas destaca um desapontamento em relação à visibilidade sobre o seu trabalho artístico, tanto pelas pessoas como pela gestão pública de Sergipe. Segundo o artista, ele já bateu às portas do governo do estado à procura de um incentivo para o seu trabalho incontáveis vezes. Em todas, lhe foi negado.

Dentre tantos acontecimentos durante esses dez anos de carreira, Lucas aponta que nos últimos três meses aconteceram coisas muito interessantes, tanto para ele quanto para a sua marca. Em outubro, participou da 9ª Semana Criativa de Tiradentes, em Minas Gerais, expondo o seu artesanato à venda.

Durante o Festival de Artes de São Cristóvão (Fasc), que aconteceu entre os dias 29 de novembro e 1 de dezembro, Lucas abriu a Casa Tsuru, um espaço colaborativo. Além das suas artes expostas, havia também uma loja com quatro marcas sergipanas, uma cantina e um espaço para que artistas apresentassem as suas artes. Logo em seguida, ainda em dezembro, foi a São Paulo para participar, pela segunda vez consecutiva, da Brasil Eco Fashion Week, um evento que reúne marcas de moda voltadas para a sustentabilidade.

Para a execução da Casa Tsuru, no Fasc, Lucas investiu cerca de R$ 40 mil, sem nenhum apoio da prefeitura ou do governo do estado.

“Hoje eu não tenho o interesse que a Tsuru somente ganhe. Hoje eu quero dar visibilidade a outras pessoas. Hoje eu quero preparar o terreno, e eu tenho feito muito esse exercício para que os próximos possam provar de um terreno arado, de um terreno fértil, para que outras ideias possam vingar”, conta Lucas.

Antes de partir para São Paulo, Lucas Lemos abriu as portas do seu ateliê para receber a Mangue Jornalismo. Um lugar que representa a sua veia artística, com artesanatos, quadros e obras espalhadas por todo o espaço, não sobra nem uma fresta sem arte.

Mangue Jornalismo (MJ): Como você gostaria que os poderes públicos estimulassem os artistas locais?

Lucas Lemos (LL): Por mais que eu queira dar uma resposta linda, bonita, a gente precisa de dinheiro. Ninguém faz nada sem dinheiro, certo? É o fortalecimento. Então, não adianta você ter um projeto, ter ideias miraculosas, se você não tem quem apoia e quem acredita nesse negócio. Existe uma trajetória construída. O que eu e muitos artistas queremos é esse olhar. A gente tem uma ferramenta em Sergipe, que é o Mapa Cultural de Sergipe. Tanto a Funcaju como a Funcap tem esse Mapa Cultural. Então, por que não existe uma política de apoio, de valorização para esses artistas? E aí eu vejo o tempo inteiro os mesmos indivíduos serem beneficiados. O que eu preciso desse poder público é o incentivo, é a oportunidade para que eu possa mostrar o que eu acredito, o que eu penso, a minha contribuição, que não é alguém que está começando a fazer uma coisa hoje, é alguém que já tem uma caminhada. Só vai estar bom quando estiver bom para todo mundo. E se não está bom para todo mundo, não está bom.

MJ: Você inscreveu projetos na Lei Paulo Gustavo (LPG) deste ano? Quais foram os projetos?

LL: Duas exposições, um documentário e um fashion filme. Tentei tanto aqui, em Aracaju, com a Funcap, como também tentei no interior dos meus pais, porque eu tenho uma dupla residência. O artista pode ter dupla residência. E aqui foi essa coisa de você perceber que você foi tirado do jogo, que você foi tirado da avaliação. E aí você entra com um recurso, o recurso não sai, o recurso não é disponibilizado, ou eles botam a nota que eles quiserem, mas tal pessoa já tá lá, ocupando o primeiro, o segundo, o terceiro lugar. Esse projeto do fashion filme, eu tinha tentado no Brasil Eco Fashion Week no ano passado, que eu participei de uma seletiva do Instituto C&A com a Nordestesse. Eles fizeram uma seleção de 25 marcas, que iriam receber cursos de formação, curadoria, minicursos e palestras. E dessas 25 marcas, 6 iriam para rodada de negócios. Então eu fui, o meu projeto foi selecionado, passei por essa peneira, cheguei até o final, fui pra São Paulo, apresentei parte da coleção, e esse fashion filme seria a ideia de receber o recurso para produzir toda a coleção. E após essa produção, fazer um evento e mostrar pra sociedade, compartilhar isso com a sociedade sergipana. Mas esse também não foi aprovado por eles [Funcap], então eu não tive nenhum projeto, e você pode consultar em toda a capital, não vai ter nenhum projeto de Tsuru de Lucas Lemos Pereira aprovado. Todos os projetos desclassificados, e numa excedência lá, bem distante.

MJ: E você chegou a se inscrever em outros editais?

LL: Já tinha tentado, já. Inclusive, quando eu fui para o Brasil Eco Fashion Week, eu me inscrevi em editais, eu mandei propostas para a Funcap e nunca foram atendidos. Tanto eu buscava a Funcap como buscava o Sebrae, e a resposta sempre era a mesma: “que não podia”, “não tinha como”, “era muito em cima”. Sendo que era o tempo suficiente pra que se eles quisessem fazer, eles podiam muito bem fazer e não foi feito.

MJ: E em relação à Casa de Tsuru em São Cristóvão, você também não teve apoio?

LL: A Casa de Tsuru é um projeto que eu já venho amadurecendo há mais de seis meses, e eu vim construindo esse projeto sozinho, depois eu resolvi compartilhar com algumas pessoas, chamar alguns amigos – que tinham marca – perguntando se tinham interesse em participar. Eu busquei o Sebrae, não tive apoio, eu busquei também a Prefeitura de São Cristóvão, conversei com eles, eles disseram que não tinha recurso pra apoiar. E aí eu falei: tá tudo bem, já que não tem, eu vou meter as caras e vou fazer sozinho. Porque eu queria muito fazer a celebração dos 10 anos de existência da marca. E o projeto foi realizado com recurso próprio, que inclusive foi gasto mais de R$ 40 mil para fazer o projeto da Casa de Tsuru.

MJ: Nos processos do Fasc, a Prefeitura de São Cristóvão tinha lançado edital para artistas, você chegou a se inscrever?

LL: Não, eu tinha feito a inscrição em 2022, e depois decidi não participar mais, por dois motivos. Tanto o valor, que era um valor muito esdrúxulo, era um valor muito baixo, e que não iria conseguir custear o projeto no nível do que eu estava buscando, e também o que eu buscava nesse ano específico, uma atuação independente. Então, os valores que eram disponibilizados eram valores de R$ 2 mil, de R$ 1.500… então eu nem me dei ao trabalho de fazer parte de um edital desse, porque não iria suprir a minha necessidade. Então eu resolvi não participar, se fossem valores maiores, talvez eu tivesse gastado meu tempo com isso. E que normalmente os projetos lá [do edital] são de ocupações de galerias, que eles acabam criando durante os eventos, então assim, era uma obra que ia participar da galeria. A minha ideia era construir um projeto massa, uma casa com várias estruturas, que no caso foi uma exposição, uma loja colaborativa, uma cantina, um palco aberto com performance e tudo mais.

Exposição de Lucas Lemos na Casa Tsuru, em São Cristóvão, Sergipe (Foto: Valter Davi).

MJ: Você vai para o Brasil Eco Fashion Week, eu queria que você me falasse mais um pouco sobre esse seu projeto que você está levando para lá, como estão as suas expectativas, também.

LL: Estou indo pela segunda vez participar do Brasil Eco Fashion Week, que é o maior evento de moda sustentável e ecológica da América Latina. Ano passado eu participei da edição junto com a Nordestesse, que é uma hub de marcas nordestina, e o Instituto C&A. Esse ano eu estou indo de forma independente representando Sergipe. No Mercado Eco eu vou estar levando os meus produtos, calçados e bolsas para comercialização, e além disso eu vou estar participando do desfile de duas marcas. A Kunpi, idealizada pelo peruano Adrian, e a outra é a Adriana Meira, que é uma estilista baiana que trabalha com patchwork, tem uma linha muito autoral de roupas. A gente está com várias cores, está uma proposta multicolor, e no caso da Adriana Meira a gente vai estar elevando a identidade, a cor típica do couro, a identidade do couro, que é o marrom, o caramelo, e aí todos os calçados da Adriana Meira vão ser na cor marrom. Já os calçados do Adrian vão ser coloridos.

MJ: Vamos voltar um pouquinho, de onde é que Lucas vem e constroi a Tsuru?

LL: Bom, eu venho do povoado Saúde, no município de Santana de São Francisco. Tanto minha mãe quanto minha avó são artesãs, meu pai agricultor, então desde cedo eu tenho uma educação empreendedora muito forte. Desde cedo eu fui ensinado a fazer crochê, bordado, escultura em tronquinho de cajazeira, fazia souvenirs. Eu lembro que na época, em 2012, eu usava muito aquela priquitinha de São João no dia a dia, e a minha inquietação veio daquilo ali. Meu pai e minha mãe frequentava muitas festas de vaqueirama, pegar boi no mato, eles gostavam dessas festas tradicionais do interior, e aí eu comecei a olhar para aquele produto com uma inquietação e que aquilo ali podia ser um motivo de orgulho, porque a gente tem um produto identitário, característico nosso, mas as pessoas olhavam para aquele produto com um olhar de menosprezo, aquilo me incomodava, então veio um estalo daí. Nessa época da faculdade, comecei a fazer alguns acessórios menores, colares, cintos, pulseiras, fui vendo aula na internet, fui começando a fazer coisas menores e pesquisando como que eu poderia entrar nesse universo. A Tsuru começou a crescer, começou a tomar volume, começou a tomar amplitude. E aí eu comecei a me dedicar única e exclusivamente à Tsuru, ao meu trabalho.

Produção da bolsa que desfilou na Brasil Eco Fashion Week 2024 (Foto: Valter Davi).

MJ: A maior parte da Tsuru que você faz é de calçados, de sandálias. Então como é essa relação de calçar os pés das pessoas, onde é que elas pisam? Para onde é que elas vão?

LL: Desde sempre o carro-chefe da Tsuru foram os calçados. Só que em 2021, com o advento da pandemia, eu começo a me lançar no universo das artes plásticas e a entender outras possibilidades da Tsuru. Porque, por exemplo, na época da pandemia as pessoas não estavam calçando. As pessoas não estavam comprando calçados. As pessoas estavam em casa, não tinham para onde sair. Mas tenho trazido outros elementos, incorporado a essa cena, outros produtos e que acaba, muitas das vezes, imprimindo mais do meu pensamento artístico, da minha veia artística, do que os calçados propriamente ditos. Os calçados estão lá naquele lugar consagrado, imaculado. Mas eu venho cada vez mais me lançando nas oportunidades, nos eventos e tudo mais, mostrando outras facetas minhas, outras possibilidades, outras personas em relação à Tsuru. Que são os quadros, as obras de arte, os figurinos e que isso também acaba imprimindo, até mais no caso, essa ideia, essa veia puramente artística. A Tsuru tem um público muito seleto. Porque as pessoas que valorizam esse trabalho são pessoas que entendem que é um elemento artístico cultural, identitário. É feito uma peneira não só a partir do fator aquisitivo, propriamente dito, mas pelo gosto mesmo. Elas são pessoas que se debruçam sobre esse universo do que é artístico e do que é autoral, do que é único.

MJ: Você é um fazedor de cultura e que preza muito pelos signos culturais, signos de onde você veio, de onde você está. Então, para além de criar um produto, sobretudo artístico, que vai te expressar, para você, como é querer que as pessoas olhem para o seu produto como algo cultural, como algo que o nome de Sergipe está ali?

LL: Cara, primeiro que eu fico puto quando eu chego nos lugares que eu vejo a cena acontecendo e eu olho para o meu lugar, eu olho para Sergipe e eu digo, “porra, era para a gente ter muito mais nome, era para a gente ter muito mais representatividade, muito mais representantes aqui”. E isso me deixa triste e ao mesmo tempo me empodera, ao mesmo tempo me dá a força de dizer, “é isso mesmo, você já entendeu, você precisa continuar”. Então, a minha atuação com a Tsuru, eu trago muito essa ideia dos símbolos, do símbolo não somente, mas tem uma outra coisa que é o símbolo e a simbologia. Esses dois elementos para a cena, tanto material como imaterial, na possibilidade de fortalecer essa cena cultural, pela minha relação de apego, de afetividade, pela minha afeição com a história de Sergipe. Eu chego acompanhado de uma história, eu chego acompanhado de pessoas, eu falo de pessoas, eu digo que o meu produto é feito por pessoas e para pessoas. Mas é aquela história. A gente precisa ser estimulado a continuar fazendo isso. Não adianta estar falando para o povo pensar, idealizar um projeto que vincule uma identidade, que vincule os signos de um lugar se eu não tenho um suporte, se eu não tenho o apoio desse lugar.

“Eu chego acompanhado de uma história, eu chego acompanhado de pessoas” (Foto: Valter Davi).

MJ: E de onde é que vem esse nome, Tsuru?

LL: O nome Tsuru é um origami, que é de origem japonesa. E aí eu queria trazer um nome diferente que as pessoas ouvissem e elas perguntassem o porquê daquele nome, o significado. E aí eu lembro que eu estava tendo aula de geometria na faculdade, foi quando eu conheci o origami, o Tsuru. Só que eu não sabia o que era, sendo que a gente já faz o Tsuru desde cedo, muito pequeno: o barquinho de papel, o chapéu de soldado, a pipa, o balão. E aí a minha inquietação era essa, era de colocar o nome para que as pessoas ficassem o tempo inteiro perguntando. Por quê? O que significa? E que não fosse um nome estereotipado vinculado a esse universo do couro, tipo Lampião, Maria Bonita, Cangaço. Não que isso seja feio, vergonhoso, mas que para mim soa como caricato. E a ideia não era essa. E o outro detalhe é que pelo significado do nome, que quer dizer longevidade, felicidade, fortuna, boa sorte. E aí ficou Tsuru, arte e couro.

MJ: Então eu queria que você me falasse um pouco sobre essa relação entre a duração do seu produto, da sua roupa, com o tempo da cultura, com o tempo das gerações.

LL: As pessoas que usam o meu produto, elas usam com essa consciência de que é um produto artesanal, que é um produto feito à mão, que é uma peça única, que é uma peça que tem características de um lugar, de pessoas, e que isso possivelmente vai ser um produto que, mesmo que ele quebre, que ele dê defeito, mas sempre que as pessoas olharem para ele vão ter essa memória afetiva, elas serão teletransportadas para esse lugar, esse tempo, e isso faz com que essa memória se estenda, isso faz com que esse produto, a duração dele vá para além das fronteiras do simples usar, do simples ter, mas é uma história que você passa a acompanhar.

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