MARCOS ROBERTO SANTOS PEREIRA, especial para a Mangue Jornalismo
(marcosrsp.philosophia@gmail.com)
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.
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No dia 21 de janeiro de 2025, a vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil) protocolou na câmara municipal de São Paulo o projeto de lei conhecido como lei anti Oruam. O texto do PL pretende proibir a contratação “…de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolva, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas…”.
De lá pra cá o projeto ganhou muita força. A vereadora criou um site da lei, e através dele disponibilizou para vereadores de mais de 50 cidades, incluindo 18 capitais, o texto do projeto, para que fosse replicado e protocolado nas respectivas cidades.
Também no congresso nacional, um projeto de lei semelhante foi protocolado pelo deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil) no dia 4 de fevereiro. Apesar da semelhança, o PL 243/2025 apresenta algumas diferenças sutis em relação ao de Amanda Vettorazzo. O projeto do deputado aumenta o escopo de aplicação da lei para incluir também a apologia à prática de condutas criminosas em geral, além de não se restringir a eventos abertos ao público infanto-juvenil e atribuir suas prerrogativas para todos os níveis de governo, federal, estadual e municipal. Neste caso, todo e qualquer evento, seja ele aberto ou não a menores de idade, será impedido de obter financiamento estatal. E, por fim, propõe o estabelecimento no código penal brasileiro o crime de “…exposição de criança e adolescente a esses tipos de conteúdo”, isto é, apologia ao crime, ao crime organizado e ao uso de drogas.
O Projeto de Lei anti Oruam em Aracaju
Seguindo os passos de Amanda Vettorazzo e Kim Kataguiri, vereadores de Aracaju protocolaram na câmara municipal o mesmo projeto. Moana Valadares (PL), Lúcio Flávio (PL) e Pastor Diego (União Brasil) foram os responsáveis por protocolar, no dia 7 de fevereiro, o projeto de lei 46/2025, de autoria do Pastor Diego, que segue à risca o modelo da vereadora paulistana.
Com isto, o PL aracajuano, assim como o original no qual se baseia, se apresenta como um mecanismo de defesa da infância e juventude. Apesar disso, as peças publicitárias com as quais os políticos o divulgam e os argumentos que utilizam para a sua proposição divergem do texto da própria lei.
Em vídeo para o instagram, o vereador Lúcio Flávio, apresenta trechos de músicas com conteúdo sexual explícito. Mc Pipokinha e Oruam são alguns dos artistas que aparecem no reels e servem de exemplo para a imposição do vereador: “Essas músicas lixo, obscenas, porcaria, você vai ter que cantar em outra cidade, não aqui.”
Omite o vereador, propositalmente ou não, que o PL 46/2025 não cita em nenhum momento o teor dessas músicas obscenas. Em âmbito municipal, a lei anti Oruam tem como alvo exclusivamente a apologia ao crime organizado e ao uso de drogas. É apenas quando a lei chega ao congresso nacional que qualquer ato criminoso passa a ser contemplado. E mesmo nesse nível, a obscenidade, enquanto teor lírico por si só, não é um crime previsto no Código Penal brasileiro.
Fica claro, então, que a roupagem de proteção à infância e juventude vestida pelos projetos em questão, se desbota revelando suas tonalidades morais conservadoras. E enquanto tal, estabelecem inimigos específicos à revelia de figuras artísticas do meio conservador que reproduzem em suas músicas o uso abusivo de bebida alcoólica. Esta, que é, também, uma droga. Lícita sim, mas ainda assim uma droga. E essa distinção entre consumo de drogas lícitas ou ilícitas não é feito pelo texto da lei.
Segundo reportagem do G1, em sua dissertação de mestrado, Mariana Lioto, já em 2012, apresentava 243 letras do gênero sertanejo que abordam o tema da bebida alcoólica com naturalidade e positividade. A relação que daí surge é a do incentivo ao consumo da droga em questão, partido de músicas, principalmente, do sertanejo universitário. E, além disso, a pesquisadora mostra como o rap se posiciona contrário a tal incentivo, e justamente por isso cita, no início de sua dissertação, a letra de ‘O homem na estrada’ do Racionais MC’s:
“Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam sobre o poder destrutivo dela
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é vendido na favela.”
Portanto, a atribuição do que é ou não apologia ao crime, ao crime organizado e ao uso de droga da lei anti Oruam, serve a pautas conservadoras voltadas contra a manifestação cultural da juventude negra periférica de todo Brasil. E parece ter como combustível os editais de leis de incentivo à cultura do governo federal.
Assim sendo, os possíveis impactos da aprovação desses projetos são enormes para o hip-hop sergipano. Muito recentemente, diversos produtos culturais foram produzidos justamente por editais de incentivo à cultura, especificamente os da Lei Paulo Gustavo (LPG), que gratificou trabalhos de uns dos principais nomes do rap em Sergipe entre os anos de 2023 e 2024.
Bidu, NG Lampião da Rima, Dani DK, Lukush, Pardal MC, Lokun, Feroz, Apollo 808, Dalvam Dext, Yala Souza, Anne Souza, Ação Crítica, Feirinha das Quebradas, Slam da Norte, Slam de Duplas Aracaju, os shows O Arauto dos Novos Tempos e A Quem Possa Emocionar são alguns dos artistas e projetos culturais do movimento hip-hop em Sergipe que foram aprovados, habilitados, premiados, não classificados, não selecionados ou ficaram excedentes pelos editais da LPG.
Essa lista nos deixa claro duas coisas: primeiro, a importância crucial das leis de incentivo à cultura, especificamente da Lei Paulo Gustavo; e segundo, a necessidade de sua expansão. Os nomes citados correspondem a uma parcela relevante das manifestações culturais do movimento hip-hop sergipano, mas, certamente, não é sua maioria. E mesmo no caso dos nomes apresentados anteriormente, alguns deles não foram classificados ou selecionados nos editais para os quais concorreram e, portanto, não receberam parte de sua verba.
O caso de NG Lampião da Rima
Um conhecedor do hip-hop sergipano sabe que tais projetos não praticam apologia ao crime, ao crime organizado ou ao uso de drogas. Apesar disto, a lei anti Oruam, em âmbito municipal, estabelece que “qualquer pessoa, entidade ou órgão da Administração Pública poderá denunciar o descumprimento da cláusula de não apologia ao crime e ao uso de drogas à Prefeitura de Aracaju…”. E aqui é importante lembrar da repercussão de uma das apresentações de NG Lampião da Rima, na qual o conceito de Novo Cangaço foi duramente criticado.
No dia 8 de dezembro de 2023, Lampião da Rima se apresentou no festival Trapzin, junto a grandes nomes do cenário nacional. A cobertura do evento ficou por conta do portal Ajufest, que divulgou no seu instagram um reels da apresentação do sergipano. A publicação furou a bolha do público do rap de Sergipe e chegou ao conhecimento de gente que não conhecia o trabalho artístico, nem o conceito de Novo Cangaço como utilizado por Lampião da Rima, o que motivou a publicação de comentários depreciativos na rede social.
A partir de uma relação ficcional entre o Novo Cangaço de NG com o cangaço de Virgulino Ferreira, o Lampião original, comentários se espalharam pelo instagram atribuindo a NG a prática de apologia ao crime e ao crime organizado. Sob aval de uma lei como a que aqui se analisa, esses comentadores de rede social poderiam denunciar a apresentação de NG, se financiada com dinheiro público, e, no pior dos casos, a apresentação poderia simplesmente não acontecer.
O que ocorre, contudo, é que nada do cangaço original persiste no Novo Cangaço a não ser o ideal de subversão do status quo de uma sociedade que marginaliza e invisibiliza a existência de comunidades pretas. Num sistema como esse, o Novo Cangaço se apresenta como oportunidade de inversão do jogo ao dar protagonismo justamente a essas comunidades e sua cultura. Religiões de matriz africana, a vitória do jovem preto periférico, a maternidade/paternidade preta e outros são temas abordados e defendidos pelo Novo Cangaço.
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Tampouco existe relação do conceito criado por NG com as práticas criminosas do cangaço contemporâneo. Assim, no conceito de NG, a criminalidade é vista não como uma opção de gosto, mas sim um lugar relegado ao povo preto pela aristocracia branco-burguesa. Lugar esse cuja não participação é de extrema relevância para a própria defesa da comunidade e cultura do jovem preto periférico.
Portanto, não é exagero afirmar que o PL 46/2025 da Câmara Municipal de Aracaju, ou o PL 243/2025 do Congresso Nacional se configuram numa ameaça a manutenção sadia e digna da cultura hip-hop do estado de Sergipe. Obviamente, ela sobreviverá, com incentivo estatal ou não, mas a que custo isso se dará? Às custas da marginalização ainda maior da juventude preta periférica, que vê no rap uma válvula de escape e de trabalho digno? Às custas de uma maior escassez das manifestações culturais que, muitas vezes, permitem a sobrevivência dos sujeitos culturais do movimento no estado?
Para além de um corte nos gastos públicos para proteção da infância e juventude, a lei anti Oruam parece representar o anseio pelo encarceramento real ou metafórico das classes que se encontram na base da estratificação social. E, assim, de nada importa estabelecer distinções reais entre aqueles que cantam rap de mensagem ou funk proibidão.
Essas categorias, por si só, são nubladas, e o esforço dos proponentes e defensores desta lei para distinguir o que é, de fato, apologia ao crime ou não, é nulo. Justamente por ser fruto da guinada conservadora que se desenrola no Brasil nos últimos anos, não interessa, de fato, ao conteúdo ou ao espírito desta lei defender a infância e a juventude, mas sim cercear a cultura periférica pelo que representa no seu âmago, a vitória do povo preto.
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Marcos Roberto Santos Pereira é doutorando em filosofia pela UFS e pesquisador informal da história do rap sergipano.