WAGNER LEMOS, especial para Mangue Jornalismo
A colonização cometeu e ainda comete crimes diversos. Outrora, navios de tráfico humano traziam nações inteiras relegadas à condição de mercadoria para a mão de obra escrava.
Para os colonizadores, nem sequer a vida pertencia àqueles que eram mera fonte de lucro. Os ventres das mulheres negras eram armazéns para dinheiro e seus corpos eram para o uso na violência sexual. Os homens negros eram, além de força física para trabalhos pesados, fonte de fertilidade para ampliar o número de cativos.
A cultura dessas nações negras, quer fosse através de canções, línguas, comidas, vestimentas, acessórios ou religiões, era elemento tachado como sujo e demoníaco.
Hoje, é bem verdade, anos de luta e resistência dos povos negros têm muito lentamente revertido um pouco dessa violência contra nossas matrizes.
Nós, que temos a noite gravada em nossa pele, sabemos exatamente onde dói e o que dói. Ninguém por mais boa vontade e boa intenção que tenha (coisa que preenche certo lugar como diz o dito popular) consegue andar em nossas alpercatas e saber como são nossas alegrias e lamentos.
Além do que a ninguém é dado o direito de dizer que está a nos “dar voz”. Temos voz e não precisamos que ninguém dê o que temos. Não há de ser o outro, criado em esfera bem distinta, atravessada por privilégios de séculos que há de ser ponto de reverberação do que somos e o que sentimos. Não há de ser o outro a contar a nossa história, pois o que a mim pertence deve sair da minha boca e da minha pena: isso é legítimo, reto, justo.
O cotidiano em nossa época
As marcas da escravidão se fazem todos os dias em nossa época. Elas se manifestam sob diversas formas. É o segurança da loja que segue somente o homem preto; é a impossibilidade de usarmos uma roupa mais despojada ou mesmo usar roupa com capuz, sob pena de ser tratado como bandido; é a destruição dos terreiros; é a sala de aula quase sem negros, mas as celas repletas com a mais escura das cores; é a gritante ausência de homens e mulheres de cor negra em espaços de poder.
No entanto, a sanha de colonizador não se satisfaz com os séculos de enriquecimento e opressão.
Cada vez mais são recorrentes os casos de pretensos artistas e pseudopensadores se apropriarem de um espaço que não lhes pertence e quererem se erguer no palco, tendo como escada as costas e os ombros do povo que descende dos construtores do Kemet e de outras gloriosas nações.
A lei 11.645/2008 que preconiza o ensino das culturas dos povos originários e da matriz afrobrasileira deu margem ao aparecimento de uma série de oportunistas e que, sem cerimônia, entram na casa alheia cometendo escancarados roubos.
Homens e mulheres brancos que nunca souberam o que é a dor do racismo têm se arvorado a escreverem, desenharem e cantarem nossa história, em um evidente ato de oportunismo e roubo.
Cometem suas fétidas atitudes à luz do dia, ensaiam um discurso de que estão a prestar uma homenagem e até mesmo forjam medalhinhas e certificados com o mentiroso atestado de glória, de valor. E, talvez, em um gesto incauto muitos homens e mulheres negros comparecem nessas torpes cerimônias e com sua presença servem de claque a essas pessoas que se valem de uma estrutura que as beneficia e utilizam de nossas características como bibelôs do exótico.
Infelizmente, nem todos nós enxergamos a inadequada posição de receber atestado de quem não tem legitimidade para o dar.
Se abrimos as tais obras, vemos uma infinda barbaridade de estereótipos preconceituosos. Em larga escala são mal escritas como as demais produções dos empulhados escritores metidos a acadêmicos de lustrosas e vazias pelerines.
Repetição de clichês, frases extensas e metidas a explicativas, períodos sem criatividade e abstração e coisas afins que já as deixariam em lugar nenhum da qualidade literária.
A sanha de colonizador vai além
Entretanto, a sanha de colonizador entranhada nessa gente vai além. Vemos desde um livrinho recolhido por uma editora haja vista a história ter dito que as crianças riam dentro do navio negreiro por brincarem de escravos de Jó e serem de fato escravos, ou de um compositor que soltou o racismo escrevendo “tem preto que é nobre” ou do trecho do livro de um parlapatão que, ao descrever sua personagem, tascou que “apesar” da origem tinha realeza e bravura. É preciso desenhar que isso equivale ao que se dizia de Inácio Joaquim Barbosa: “mulato, porém de boa família “? Precisa muito esforço para dizer que é igual a “preto de alma branca”?
Como se não bastassem as frases racistas, esses e essas fazem em seus eventos arremedos de nossa cultura ancestral relegando nossa história e religiões a cenário e figurino para que apareçam sob o holofote do palco.
Subitamente, pela primeira vez, vestem-se com batas e usam no pescoço nossos colares com os búzios e as contas de nossas preces.
Nossas origens religiosas se tornam meros acessórios, enfeites para glorificar o ego de quem não enxerga seu próprio lugar e vem usurpar como intrépido ladrão o que aos outros pertence.
Nenhuma leitura, nenhum curso, nenhum tempo de estudo fará com que eu, homem negro, sinta com a apropriada e legítima dor, a alma dos irmãos judeus em sua história de holocausto. Abraço com o sentimento que une as ancestralidades e a condição humana, mas não hei de me colocar em posição de falar por eles e de uma dor que não dimensiono com exatidão.
Todavia, o sentimento de posse sobre os negros tem feito uns e outros enveredarem em nossa terra, pisarem com galope em solo santo e se enfeitarem com o que é nosso sagrado.
Anseio que a espada de Ogum logo venha forte e impiedosa cortar as cabeças e as mãos daqueles que misturaram fogo estranho em seus instrumentos e que estão saqueando o seu povo.
Wagner Lemos é doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), recifense radicado em Aracaju.