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“No Nordeste, a quantidade de escolas sem banheiro é assustadora”. Sophia Filipin, diretora-presidente de ONG sergipana de combate à pobreza menstrual

Sophia Filipin é diretora-presidente da Ciclo Fraterno (Foto: Reprodução/Ciclo Fraterno)

Atualmente, há cerca de 1 bilhão de pessoas menstruantes em todo o mundo, mas nem todas elas têm acesso a cuidados durante o período menstrual, o que vai além de ter, por exemplo, absorventes descartáveis. Foi para combater o que é conhecido como pobreza menstrual que a organização não governamental Ciclo Fraterno foi fundada em Sergipe ainda no auge da pandemia de Covid-19.

A Mangue Jornalismo entrevistou Sophia Filipin, diretora-presidente da Ciclo Fraterno, que destacou que “a dignidade menstrual é uma problemática multifatorial e multisetorial”, e envolve desde ações voltadas à saúde pública, como também à educação e saneamento básico.

O interesse pela temática e a experiência na Ciclo Fraterno levou Sophia para o mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde pesquisará sobre políticas públicas de combate à pobreza menstrual na América Latina.

Leia abaixo a entrevista, que foi editada para efeitos de clareza e concisão.

MANGUE JORNALISMO (MJ) – O que é pobreza menstrual e por que usar o termo pessoas menstruantes?

Sophia Filipin (SF) – Vamos lá, primeira pergunta: pobreza menstrual basicamente é a ausência de um cuidado no processo da menstruação. Isso envolve diversos fatores, como a questão do acesso a produtos menstruais adequados (absorvente, coletor, calcinha menstrual etc.), o atendimento médico (pois há as cólicas, quadros de ovários policísticos, endometriose etc.), informação, acolhimento da temática e infraestrutura (como saneamento básico e banheiros adequados). Essa última questão, por sinal, é gritante. A nível de Nordeste – isso está em nosso site – a quantidade de escolas que não têm banheiro é assustadora.

Por que é importante falar pessoas menstruantes? Porque as pessoas são diversas, os corpos são diversos, e não necessariamente haverá apenas mulheres nesse recorte. Há homens trans que menstruam, pessoas intersexo, ou seja, há uma diversidade de corpos. Para que a gente possa pensar de maneira mais inclusiva, é importante falar pessoas que menstruam, inclusive para desmistificar. Por exemplo, nas mais diversas transmasculinidades, há muitos entraves quanto à menstruação e isso é uma questão de gênero também. Não é porque a pessoa está menstruando que ela menos homem, no caso dos homens transexuais. Eu tive oportunidade de conversar com algumas lideranças [de movimentos trans] e é uma intenção da Ciclo Fraterno se unir com as organizações que trabalham com as transmasculinidades aqui em Sergipe.

ONG sergipana combate a pobreza menstrual com distribuição de produtos, informação e ações para garantir legalmente os direitos de pessoas menstruantes. (Foto: Reprodução/Ciclo Fraterno)


MJ – Como nasceu a ideia de criar uma ONG de combate à pobreza menstrual?

SF – Durante a pandemia, eu ouvi de uma das meninas que hoje é voluntária da Ciclo sobre uma pessoa em situação de pobreza menstrual – é o relato norteador da Ciclo.

Num período de chuvas aqui em Aracaju, ali na região, se não me engano, do Santa Lúcia, teve um alagamento e muitas pessoas perderam suas casas, teve um processo de realocação para uma escola pública. Uma das pessoas que estava ajudando nesse processo acolheu uma senhora que estava extremamente sem graça de pedir um absorvente. Essa voluntária compartilhou o relato e fez uma campanha de arrecadação de absorventes.

Nós ficamos extremamente chocadas com aquela situação, porque a pessoa acabou de perder tudo, não sabe a situação da casa, se vai voltar ou não. Os voluntários se preocuparam com alimentos, colchão e roupas, mas se esqueceram dessa questão dos absorventes. Isso marcou muito a gente, principalmente essa voluntária.

Foi a partir daí que ela pensou “Como é que a gente pode ajudar?”. Ela chamou algumas pessoas, inclusive eu. “O que é que a gente pode fazer? Como é que a gente pode ajudar?”. No primeiro momento [era uma ajuda] de maneira bem pontual. Só que quando a gente começou a pesquisa para procurar um lugar com o qual a gente pudesse se aliar para fazer esse tipo de ação, percebemos que não tinha uma associação ou iniciativa aqui em Aracaju, aqui em Sergipe, que realmente trabalhasse com a questão da pobreza menstrual. Eram campanhas muito pontuais, por exemplo, uma pastoral que fez [campanha de arrecadação] para doar para pessoas em situação de rua no dia das mulheres. Mas não tinha uma instituição que realmente trabalhasse com a questão da pobreza menstrual. A partir disso, a gente falou assim “Por que é que a gente não faz?”.

A partir do que eu tive de experiências e vivências tanto na universidade quanto nos voluntariados, eu meio que tomei a frente, “Bora fazer!”. Fomos no cartório e resolvemos toda a questão de documentação.

MJ – Isso ocorreu em qual ano?

SF – A gente começou a conversar em 2021 de maneira remota. Quando começou a flexibilizar [as medidas de distanciamento], poucas pessoas se reuniram e aí a gente começou a fazer os trâmites. Em dezembro de 2021 a gente foi oficializada em cartório – estatuto social, tudo bonitinho. Um pouquinho depois a gente começou a se organizar.

Foi interessante, porque logo depois que a gente fundou [a Ciclo], veio o veto à legislação pelo ex-presidente [à distribuição de absorventes]. Foi algo muito interessante, porque a pauta se tornou de opinião pública de uma maneira muito abrangente. O veto ocorreu pouco depois da nossa oficialização. Todo mundo começou a discutir [sobre pobreza menstrual], houve manifestações em Brasília. Eu acho que foi muito interessante por um lado, porque a gente sentiu a força da discussão e ficamos felizes também porque já estávamos agindo.

Deu muitas oportunidades para a gente também, porque as pessoas vieram nos perguntar. Um pouco depois, a gente foi convidado pela Pants, que é uma empresa de calcinhas menstruais reutilizáveis, para discutir essa pauta no dia da dignidade menstrual. Então, foi um momento muito interessante para a gente sentir esse movimento das pessoas.

MJ – Quantas iniciativas dessa você conhece? Você já fez algum mapeamento no Nordeste e a nível nacional sobre organizações que tenham como foco dar assistência a pessoas menstruantes?

SF – Existem algumas organizações em São Paulo que são mais estabelecidas a nível de organização social, uma delas é o Fluxo sem Tabu. Tem um coletivo chamado Sobre Nós que é nacional, então ele tem grupos em vários estados, alguns deles aqui no Nordeste.

Em Sergipe, há algumas iniciativas do tipo coletivos. Por exemplo: tem um grupo chamado Pepeca UFS, que levanta justamente a discussão sobre dignidade menstrual. Nós descobrimos mais depois [da fundação da Ciclo Fraterno], porque quando a gente começa a fazer os trabalhos, as pessoas nos trazem essas informações e nós meio que vamos ampliando a rede.

Tem também um grupo do curso de Secretariado Executivo da UFS [Universidade Federal de Sergipe]. As próprias associações que trabalham com gênero volta e meia fazem eventos. Há algumas organizações fortes a nível nacional. A que me vem mais na memória é a Fluxo sem Tabu, porque é a mais conceituada. Ela tem parcerias muito bem firmadas, inclusive com empresas que produzem os produtos, o que facilita a distribuição.

MJ – A Ciclo tem parcerias com empresas a longo prazo?

SF – Não, elas são sempre pontuais. Hoje, as nossas principais fontes de doações são pessoas físicas ou campanhas e eventos. Por exemplo, o evento Ecoando Conversas, da UFS [realizado no último dia 8 de março], cedeu um espaço para arrecadarmos absorventes, falarmos sobre a causa e vendermos produtos. [Há também] Pessoas que se sensibilizam e, ao promover eventos, pedem doações para a gente. Temos pontos de coleta pela cidade [para doações de pessoas físicas] e campanhas.

Logo no começo, quando lançamos a Ciclo, eu fiz uma campanha de aniversário para pedir doações. Eu falei “Oi, gente, tudo bom? Se você gosta de mim, se você me acha legal, doe um absorvente para que a gente comece nossas ações”. Outras pessoas também já fizeram campanhas de aniversário, empresas… A primeira doação da Ciclo este ano foi da Constat, que é uma empresa de cuidados médicos do tipo home care. No início do ano, eles doaram para a gente vários fardos de absorventes. Aos poucos a gente vai conseguindo mais espaços.

Um dos eixos de ação da Ciclo Fraterno é a sensibilização quanto à saúde menstrual por meio de palestras em escolas, por exemplo. (Foto: Divulgação/Ciclo Fraterno)

MJ – Como funcionam as ações da Ciclo Fraterno?

SF – A Ciclo tem quatro eixos de atuação que colocamos como foco. O primeiro é o levantamento de dados, é entender como funciona a pobreza menstrual aqui em Sergipe tanto de maneira quantitativa como qualitativa. Nas nossas ações, aplicamos questionários, conversamos, fazemos perguntas. Levantamos dados oficiais também buscando bancos de dados sobre os quais a gente já tenha algum tipo de informação, seja nas escolas ou IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], tentando entender para facilitar nosso desenvolvimento estratégico, para sabermos como a gente pode atuar.

Tem a questão da arrecadação e distribuição de produtos menstruais. Na Ciclo, temos muito o foco e interesse em trazer uma abordagem ecológica e interseccional. Nós falamos “produtos menstruais” justamente na ideia de que arrecadamos absorventes descartáveis, protetores diários descartáveis, coletores, discos menstruais, calcinhas reutilizáveis, absorventes de pano e protetores diários de pano. Por quê? Porque sabemos que determinados públicos e comunidades com os quais a gente vai atuar não têm uma estrutura de saneamento básico que permita utilizar, por exemplo, calcinhas reutilizáveis. A gente não vai deixar de lado o descartável. Mas à medida que vamos nesses públicos e trabalhamos com pessoas de recortes sociais mais diversos, a ideia é incentivar o uso de produtos descartáveis.

Outro eixo no qual a gente trabalha é o da sensibilização, com educação menstrual das mais variadas formas. Fazemos rodas de conversas, palestras e tentamos elaborar guias. Nesse sentido, um dos últimos trabalhos que a gente fez foi um guia de saúde menstrual. Conversamos com vários profissionais da saúde (ginecologista, nutricionista, fisioterapeuta pélvica, educador físico, psicólogas) para que cada profissional apresentasse um artigo utilizando do seu conhecimento dentro desse recorte de educação menstrual, e montamos esse guia que é gratuito. Há informações lá sobre qual tipo de alimentação você pode adotar para melhorar sua saúde menstrual, atividade físicas sobre a questão das emoções. A ideia é sempre fazer esse tipo de material, trazer de forma mais didática, inclusive usando as redes sociais. Ainda estamos aprendendo, mas a intenção é que o Instagram da Ciclo seja um veículo de informação de qualidade.

Por último – mas não menos importante – é o advocacy. A ideia é que a gente articule a elaboração e melhoria de políticas públicas participando de conselhos, de várias esferas de relacionamento a nível de poder público para que a gente possa dialogar e trazer a pauta. Felizmente, com os recentes avanços nas legislações tanto a nível federal como municipal [Aracaju] e estadual, a gente atua também como agente de monitoramento. Está funcionando? Está atendendo a demanda? O que está faltando? Está atendendo a todas as pessoas menstruantes? Como podemos dialogar para trazer melhorias?

MJ – A Ciclo faz parte de algum comitê ou frente politicamente estabelecida seja junto a algum representante eleito ou da sociedade civil?

SF – No momento, estamos pleiteando conselhos, mas não temos nenhum vínculo partidário. Sabemos que é uma pauta política, mas não temos a questão partidária.

Temos algumas parcerias. Por exemplo, tivemos uma parceria para o nosso primeiro projeto com a Procuradoria Especial da Mulher da Alese [Assembleia Legislativa de Sergipe], que é um setor especializado na questão do atendimento às mulheres. Temos parceria com a Liga de Ginecologia e Obstetrícia da UFS, que nos orienta e fornece voluntários do curso de Medicina para ajudar em nossas ações. Tivemos muitas parcerias com o pessoal do Hospital Universitário da UFS.

Pelo fato de ainda não termos uma estrutura grande e não regularidade de doações, geralmente desenvolvemos projetos. Dois dos principais projetos que realizamos até agora foram o Sangrando Amor e o Maloca Fraterna.

Para o Sangrando Amor, nós firmamos uma parceria com o Instituto Federal de Sergipe – Campus Socorro. A ideia era fazer uma ação de extensão no IFS Campus Socorro e nas escolas públicas estaduais e municipais de Nossa Senhora do Socorro. Nós arrecadamos absorventes, fizemos rodas de conversa em todas as escolas sobre a questão da educação menstrual, dignidade menstrual, prevenção e saúde, combate à violência doméstica (com parceria da Procuradoria com materiais e profissionais que orientavam), e um pouquinho do recorte da sustentabilidade. Ou seja, a gente tentava trazer quais são as iniciativas que poderiam ser adotadas no dia a dia.

A gente fazia essas rodas de conversa, levava os absorventes, deixávamos uma quantidade boa para que eles tivessem isso garantido. Nós nos inspiramos numa iniciativa de uma professora do [Colégio] Dinâmico e desenvolvemos um dispenser de material reciclado com caixas de whiskey que a gente deixava no banheiro. A ideia era quebrar com isso de que elas [estudantes] tinham que ir na coordenação [da escola pedir absorvente]. Numa das escolas que a gente foi, o diretor era homem. Ele tinha filhas, então era uma questão muito natural para ele [as alunas precisarem de absorventes]. Foi interessante, porque nós falamos “Gente, vocês não precisam ter vergonha, ele [o diretor] sabe o que é”. A gente tenta naturalizar, mas sabemos que não é um processo automático, então fizemos essa estratégia dos dispensers. Coloca lá no banheiro, se precisar [têm absorventes lá]. Foi um trabalho muito produtivo, recebemos o selo ODS [concedido pela ONU para organizações que cumprem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável].

Nós voltamos em algumas das escolas em Nossa Senhora do Socorro. Em algumas delas, o dispenser estava lá no banheiro, mas estava vazio. Conversamos com o pessoal [da escola] e era porque, no desespero de assegurarem uma quantidade de absorventes pra si, não sobrava. Aí acabou que voltou a rotina de ir na coordenação pegar.

Depois que a gente fez essas ações, no ano passado, a gente estava no processo da mentoria do Ambev Voa. A ideia do projeto que a gente fez foi fazer um dispenser eletrônico, já que, a nível de política pública, a gente não tem como fornecer esses produtos menstruais em grandes quantidades. Dentre ONGs do Brasil inteiro, nós fomos a contemplada. O nome do projeto é “Absorvendo dignidade” e já está sendo executado.

MJ – O que é esse novo projeto?

SF – O Absorvendo Dignidade foi uma junção de duas situações: essa situação de voltarmos nas escolas e não ter absorventes nos banheiros (inclusive, vimos panos sujos de sangue no lixo de um banheiro) e uma das alunas do IFS que se interessou pela Ciclo – e hoje é voluntária – ter feito um dispenser eletrônico para uma disciplina do curso de Eletrônica.

Ela mostrou o bruto do que tinha feito para o trabalho da disciplina, e a gente pensou “Por que não juntar as coisas?”. A gente conversou com ela, e ela aceitou. Foi aí  que ganhamos o Ambev Voa.

Isso deu oportunidade para melhorarmos, ou seja, desenvolver. A aluna que fez esse “protótipo zero” já estava como voluntária da Ciclo, ela chamou um colega que já estava na graduação de eletrônica, e eles dois desenvolveram os protótipos. Por conta do valor, a gente não tem como voltar em todas as escolas [que participaram do projeto Sangrando Amor]. Então, a ideia é voltarmos para algumas e fazermos um período de teste: levamos o dispenser eletrônico, orientamos os alunos, eles fazem o cadastramento de todo mundo e sentimos deles o que acham.

MJ – Vocês da Ciclo Fraterno representam algo que, para além de ter utilidade pública, alia a tecnologia.

SF – É uma coisa que eu sinto muito na Ciclo: não é o nosso objetivo principal, mas se tornou algo muito intrínseco o incentivo à inovação. À medida que a gente foi fazendo os trabalhos, notamos que há iniciativas e estratégias, projetos de pesquisa e avanços que já estão acontecendo que por vezes ficam parados. A ideia da Ciclo é que, se o projeto atende à nossa demanda, vamos incentivar. Por mais que a gente não tenha pensado nisso, estamos incentivando a inovação de uma pesquisadora, uma menina de 16 anos.

Fabrícia, 16, é aluna do Instituto Federal de Sergipe e voluntária na Ciclo Fraterno. Junto com um colega, desenvolveu um dispenser eletrônico de absorventes descartáveis em fase de teste em escolas de Nossa Senhora do Socorro. (Foto: Divulgação/Ciclo Fraterno)

MJ – Para quem queira ajudar a Ciclo, quais os caminhos?

SF – No nosso Instagram e em pontos de coleta de produtos menstruais. Se você quiser doar um valor financeiro, a gente tem os dados para transferência (a conta da associação) e duas chaves Pix: o email e o nosso CNPJ. Também é possível comprar produtinhos! Agora, a Ciclo tem outra iniciativa bem legal: por meio de uma parceria com o IBGE, conseguimos uma doação de bolsas que foram utilizadas durante o Censo pelos recenseadores e que iriam ser incineradas. Em iniciativas do IBGE em outros estados isso [da doação das bolsas] foi adotado, e aqui eles incentivaram também. Basicamente, organizações da sociedade civil recolhem essas bolsas, descaracterizam elas e utilizam para as suas iniciativas. No caso da Ciclo, vamos fazer tanto para doações para as nossas assistidas, como também para venda. Temos também brincos feitos com uma técnica de papel, escalda-pés e kits lixo zero.

MJ – E voluntariado?

SF – Geralmente a pessoa manda uma mensagem no WhatApp da Ciclo, marcamos uma reunião inicial, de orientação, e vemos para o que podemos designar essa pessoa a depender do que ela quiser e puder ajudar.

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