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Negro e gay. Policial militar se debruçou sobre o ciclo de violência contra “corpos pretos de almas coloridas” e trabalho é finalista de prêmio nacional

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

“A minha pele preta é meu manto de coragem, impulsiona o movimento e envaidece a viadagem”. Esta frase, da música Bixa Preta, de Linn da Quebrada, abre a conclusão da dissertação de Mestrado em Sociologia de Tiago Damasceno Pereira na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Esse trabalho é um dos finalistas do mais importante prêmio acadêmico do Brasil, o da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).

Tiago Damasceno é sargento da Polícia Militar em Sergipe há 18 anos e buscou uma outra trajetória nesse campo. Fez Administração e Psicologia na UFS, é mestre em Sociologia e doutorando nessa mesma área e instituição. O policial é também membro da Rede Nacional de Operadores em Segurança Pública LGBTQIA+ (RENOSP) e realiza pesquisas políticas públicas, LGBTQIA+, racismo, preconceito e discriminação, saúde mental, trabalhando com minorias, diferenças, desigualdades e conflitos sociais.

Tiago: “tenho o dever em lutar pela existência das pessoas” (Foto arquivo pessoal)

“Ser policial militar, declaradamente gay, não é fácil. […] Como agente da segurança pública, como ativista de movimento social, como cidadão, tenho o dever em lutar pela existência das pessoas”, respondeu Tiago Damasceno à entrevista da Mangue Jornalismo no final da manhã de ontem.

A dissertação dele, que é finalista do prêmio da ANPOCS, recebeu o título de “Negro e gay: do fetiche à discriminação”. O trabalho foi orientado pelo professor Petrônio José Domingues e também já foi transformado em livro pela editora da Secretaria de Estado da Educação e Cultura. O livro está disponível gratuitamente em formato digital. Baixe aqui.

Em seu trabalho, Tiago “questiona os processos de invisibilização do ser negro e gay aos vínculos afetivos, perpassando ao seu apagamento nos movimentos sociais, findando às excludentes nas políticas públicas”. Para ele, “numa sociedade racista, capitalista e patriarcal, discutir sobre afetividades negras configura-se como um elemento importante no processo de descolonização do pensamento e, sobretudo, de resgate à humanidade que lhes foi negada em séculos de escravidão”.

Na entrevista para a Mangue, Tiago afirma que “a cor da pele e a orientação sexual influenciam significativamente as relações afetivas, no acolhimento dos movimentos sociais, assim como o acesso à saúde, à educação e aos serviços sociais básicos, reforçando, assim, o ciclo de violências em que o negro gay vem sofrendo no Brasil”.

Dissertação transformada em livro pela Editora Seduc

Segue a entrevista:

Mangue Jornalismo (MJ) – O que motivou você, quais incômodos, percepções, problemas fizeram o sujeito-pesquisador mergulhar no tema do racismo e da lgbtfobia?

Tiago Damasceno (TD) – A luta das minorias sociais faz parte da minha trajetória pessoal, profissional e acadêmica enquanto psicólogo (voluntário de ONGs da comunidade LGBTQIA+) e policial militar do estado de Sergipe, além de membro do movimento social – RENOSP (Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública – LGBTQIA+), com a perspectiva em investigar o enfrentamento e sobrevivência a todo e qualquer preconceito e discriminação. Ainda na graduação em psicologia, realizei uma pesquisa inerente ao preconceito explícito e implícito de policiais militares heterossexuais contra policiais militares homossexuais e suas manifestações de discriminação dentro da corporação. Os achados apontaram para a não manifestação de preconceito e discriminação explícito, até aqui confirmando a tese que o combate à intolerância é uma das mais importantes áreas de avanço do Direito característico das modernas democracias ocidentais. Porém, ao aprofundar os estudos, foi evidenciado o preconceito implícito e suas práticas excludentes dentro da corporação. Esta trajetória de pesquisas sobre preconceito e discriminação teve continuidade, assistir ao documentário de Dagmar Schultz Audre Lorde – The Berlin Years 1984 to 1992 (2012). Audre Geraldine Lorde é uma escritora caribenha-americana, feminista, negra, lésbica e ativista dos direitos civis. Ao estudar sobre racismo, abri os olhos para a maior violência humana.

MJ – Como você encara essa pesquisa sendo sargento da Polícia Militar? Ao que parece, estamos falando de um local historicamente atravessado de preconceito e discriminação seja contra o negro e, talvez com maior força, contra gays. É isso?

TD – Ser policial militar, declaradamente gay, não é fácil. Entretanto, sendo de classe média, pardo, comportamento heteronormativo, traz alguns privilégios de pertencimento. Como agente da segurança pública, como ativista de movimento social, como cidadão, tenho o dever em lutar pela existência das pessoas e a academia é um veículo que dissemina informação, ciência, mas também, propaga resistências. Precisamos desafiar os sistemas para podermos avançar em todas as esferas, sociais, políticas, econômicas, culturais e encorajar outros. Este é um exercício do movimento social do qual faço parte, a RENOSP.

MJ – O que a relação negro e gay indica em termos de fetiche na sociedade brasileira? O que você chama de fetiche? Você avalia que isso é estrutural em nossa sociedade?

TD – A palavra “fetiche” foi empregada pela primeira vez em 1756, pelo escritor francês Charles de Brosses. Desde então, a concepção pelo que é fetichismo variou muito. Derivada da palavra portuguesa fetisso (atualmente, feitiço), a noção proposta pelo francês era atinente aos cultos africanos e aos símbolos que deixavam os colonizadores impressionados. Mais tarde, o termo foi resgatado por pensadores como Marx, Freud, Kant, entre outros, e aos poucos um novo sentido foi adquirido. Segundo a psicanálise, “fetiche” é o desvio do interesse sexual para o corpo, ou partes deste, do parceiro (a), com a função fisiológica, para cenários ou locais inusitados, para fantasias de simulação. Na pesquisa trouxemos a realidade do negro gay, ao ser tipificado na categoria de não afeminado (hipermasculinidade) ou estereotipar a preferência sexual e seu dote, que seja o “fetiche”, que seja o brinquedo, trazendo o gay negro como o forte e reprodutor da época da escravidão, mantendo-o ainda hoje como símbolo de virilidade e potência, ou até mesmo no uso da expressão “não curto negros”.

Há um não acolhimento de sujeitos justapostos em movimentos “tradicionais” (Foto Pexels)

MJ – A gente poderia dizer que numa escala avaliativa de preconceito e discriminação social, o que mais sofre é o negro gay? E isso também ocorreria nos ambientes que deveriam ser de acolhimento, como movimentos negros ou comunidade LGBTQIA+?

TD – Percebemos que as mulheres negras foram excluídas das pautas no Movimento Negro em decorrência do machismo, assim como foram preteridas no Movimento Feminista devido ao racismo, levando-as a uma nova trajetória política e práticas mobilizatórias em prol de suas especificidades. Do mesmo modo, percebemos o percurso dos homens negros gays, os quais sofrendo racismo no Movimento LGBTQIA+ e lgbtfobia no Movimento Negro estão se articulando em novos coletivos, numa perspectiva interseccional, a fim de compreender os melhores processos ao atendimento real de seus dilemas e reivindicações. O não acolhimento dos sujeitos justapostos, invisibilizados aos movimentos “tradicionais”, vêm provocando a construção de novos grupos de luta, fomentando a tese que os indivíduos acumuladores de condições minoritárias tendem a se organizar entre aqueles que se identificam em todo o conjunto do seu eu, entre o aglomerado de suas subjetividades, viabilizando suas existências perante o afeto, às lutas sociais e o pertencimento enquanto cidadãos.

MJ – A gente poderia falar numa tripla e profunda camada de preconceito e discriminação diante de uma pessoa negra, gay e pobre? Ou seja, você chegou a perceber no seu trabalho a condição de classe?

TD – As políticas de afirmação do negro continuamente incidiram à questão da mobilidade social. Seus defensores asseguram que desalinhando a disfunção de classes, solucionaria o problema do negro, o qual teria mais acesso à educação e à profissionalização, por exemplo. Mas, segundo Kabengele Munanga, a discriminação racial é um dos obstáculos fundamentais à mobilidade, pois alguns são preteridos, apenas por seus atributos físicos. O racismo é uma “desumanização”, o que aloca a vítima em um arranjo inferior sempre que acareada com um branco. Existem inúmeras formas de relacionar questões como raça, classe, gênero, identidade sexual e uma série de outras categorizações sociais, que não são binárias e que na maioria das vezes são impostas por grupos para exercer poder sobre determinados sujeitos. Diante dos papéis presumíveis que a sociedade pode expor, Foucault nos proporciona duas tecnologias de poder, divididas em duas séries: série corpo — organismo/disciplina/instituições, que são os mecanismos disciplinares e a série população — processos biológicos (que são os mecanismos regulamentares)/Estado. Não tem como não correlacionar a condição de classe com esta temática.

Resistência, renascimento e empoderamento são as perspectivas em que os negros homossexuais vêm se amoldando (Foto Pexels)

MJ – Na vida, o que implica a relação do corpo negro e gay, por exemplo, no campo das políticas pública, no acesso à saúde, à educação, à segurança e aos serviços sociais básicos? Estamos falando de sujeitos e políticas invisíveis?

TD – Sob este segmento de políticas públicas, trago em meu artigo “Percepção de professores LGBTQIA+ negros acerca da lgbtfobia e do racismo no mundo do trabalho”, pesquisa apresentada em julho de 2020, no 20º Congresso Brasileiro de Sociologia, uma análise acerca da identidade social e a conjuntura organizacional sob a ótica da discriminação em local de trabalho direcionada a professores LGBTQIA+ negros de escolas públicas e privadas. Quanto à saúde pública, de acordo com meu artigo “Da população LGBTQI+ negra, covid-19 e crise da democracia”, trabalho apresentado ao III Seminário Nacional de Sociologia do PPGS/UFS, em outubro de 2020, desde dezembro de 2019, o mundo vinha registrando crescentes casos de infecção respiratória por um novo vírus, o SARS-CoV-2, o qual causa a COVID-19, as pessoas LGBTQIA+ negras continuam a sofrer discriminação, atitudes hostis e falta de entendimento tanto de funcionários quanto do sistema de saúde em si e, como resultado, muitos relutam em procurar atendimento médico, exceto em situações que parecem urgentes – e talvez nem quando a este nível. Quanto à Segurança Pública, segundo meu artigo “Interlocução policial: critérios na escolha dos abordados”, trabalho apresentado no XLIV encontro anual da Anpocs, percebe-se que, em sua essência, as ações, metas e planos de governo não são democráticos (não atendem, efetivamente, aos grupos minoritários), particularmente no combate à lgbtfobia e racismo estrutural.

MJ – Uma questão que sempre se apresenta é a desmilitarização da polícia. Como sujeito que é agente de segurança, negro e gay, você acha que a desmilitarização da polícia teria efeitos práticos na forma como esse aparato estatal tem historicamente lidado com pessoas LGBTQIA+ e pretas?

TD – A desmilitarização da polícia traria mudanças significativas para a sociedade. Para que seja tomada tal medida teria que ser bem planejada, devendo, em um primeiro momento, ter a união dos Governos Federal, Estaduais e Municipais para que se estabeleça uma nova estrutura organizacional da polícia, diminuindo os gastos com armamentos e investindo em inteligência e tecnologia. E, por fim, investir mais na educação, de modo que se faça mais atuante nesse processo, nas escolas e na mídia, através de programas e debates, buscando aproximar os policiais e a sociedade, gerando mais respeito e segurança para ambos.

MJ –  Se você pudesse apontar, quais as três principais conclusões que você chegou ao seu trabalho?

TD – Essa pesquisa nos permitiu apreender os variados aspectos acerca do preconceito e discriminação sofridos pelas minorias sociais em nosso país. Resistência, renascimento e empoderamento são as perspectivas em que os negros homossexuais vêm se amoldando. No sentido em pauta, as entrevistas nos indicaram um quadro amplamente crítico nesse viés, ou seja, a cor da pele e a orientação sexual influenciam, significativamente, as relações afetivas e o acolhimento dos movimentos sociais, assim como o acesso à saúde, à educação e aos serviços sociais básicos, reforçando, assim, o ciclo de violências em que o negro gay vem sofrendo no Brasil. No campo do indivíduo e suas afetividades foi corroborada a hipótese em que a sociedade institui estereótipos sobre corpos e comportamentos, construindo um traçado simplista, mas sustido de modo apurado e que não se baseia fundamentalmente em expressivas vivências direta.

MJ – Como foi receber a notícia de que sua dissertação é finalista de um dos prêmios mais importantes no país no campo da Sociologia?

TD – Fui tomado pela surpresa, pois fui inscrito pela PPGS/UFS, ou seja, o programa de pós-graduação em Sociologia acreditou na temática, apostou na importância da pesquisa e submeteu ao edital. Eu e o meu orientador, o professor Petrônio Domingues comemoramos o status de finalistas e acreditamos no potencial da dissertação. A dissertação já está no formato de livro impresso e digital, por meio de uma política pública do estado de Sergipe, por meio da editora SEDUC, ou seja, já temos o conteúdo disponível nas bibliotecas das escolas públicas de todo nosso estado. Esse era meu objetivo com o mestrado, ultrapassar as fronteiras da UFS.

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