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Na cozinha do afrobeat sergipano, banda Açocena transforma indignação em ritmo

Açocena traz referências musicais das suas vivências e rearranja em outros sons (Crédito: Adriano Machado).

O ano era 2019. O povo brasileiro via a extrema-direita chegar à Presidência da República. Em um cenário que coagia a revolta, um som de resistência começava a se expandir. É nessa combinação de indignação e força, que a banda Açocena nasce, com uma musicalidade de afrobeat, mas sem deixar de lado as referências que vão desde o samba de aboio ao rock. Aliás, esse é o afrobeat sergipano.

O nome da banda remete à flor açucena, conhecida por atrair muitos olhares e por não ter época certa para florir. Do aço à cena, surge o Açocena, como explicou um dos fundadores e vocalista, Daguada, acompanhado por Camilo Santana, guitarrista, e Wilyane Corumba, percussionista. Os três deram forma a banda, começaram a trilhar esse caminho por quatro anos, até que em novembro de 2024, lançaram o seu EP homônimo, o primeiro da banda.

Com cinco músicas, o EP mostra resistência em se divertir em meio à repressão, com a música de abertura, “Dance Mermo”, como à sátira ao colonialismo moderno presente em “J.O.B”, sem deixar de fora a crítica aos impactos ambientais que aconteceram em 2020, com o derramamento de óleo no litoral brasileiro, que foi destacada na faixa “Ói u Ói”.

Ao relembrar a ancestralidade que é marcada nos ritmos do afrobeat, a música “Veia de Lá” faz uma reverência aos Orixás. Em “Guerreiro Quilombola”, a banda resgata o samba ao falar sobre capoeira e a força de permanecer lutando.

A banda Açocena surgiu a partir do encontro dos amigos Daguada, Camilo e Wilyane, que já mantinham contato a partir da banda Pseudo Banda, grupo sergipano que também resgata o forró e o samba em outros arranjos. A música que os três integrantes começaram a produzir a partir dali foi de um processo completamente natural, em que vinha do desejo interno de cada um.

“É uma música que é feita de fora pra dentro e de dentro pra fora, inclusive. Ela movimenta a gente e se torna um movimento também. Vem dessas referências que a gente tem, das rítmicas todas. Do que foi trazido, do que foi herdado da ancestralidade africana pro Brasil e da latino-americana também. Eu acho que vem daí, o discurso e o jeito de falar, ele vem tudo de um lugar de referências que a gente traz”, disse Camilo Santana.

Ele conta que o EP foi construído sem pressões para a criação de uma estética que deveria ser seguida à risca. As músicas foram nascendo a partir de ensaios e encontros que o grupo realizava e iam compondo cada arranjo juntos.

“A estética que a banda tem hoje, ela não foi necessariamente pensada ao longo do tempo. Ela só foi acontecendo. E o primeiro EP que a gente lançou é um compilado das primeiras músicas que a gente trabalhou. E já foi de forma natural. Nenhuma música foi pensada conceitualmente para caber dentro de uma estética pré-definida. Foi bem natural mesmo. O que o EP é do início ao fim é quase que o que a gente conseguiu ir desenvolvendo naturalmente”, falou Camilo.

Wilyane Corumba lembra bem do momento em que foi convidada a encarar esse novo projeto. Estava na Praça General Valadão, em Aracaju, tocando forró em uma apresentação, mais um dia em que seguia o seu rito de tocar o que já vinha aprimorando em oficinas de música há um tempo. Daguada chegou e lhe lançou essa proposta.

“[Nos jogamos] numa ideia mais de afrobeat. E veio com uma temática política. E aí era bem pesado. Bem sergipana assim. Rasteira pesada. Que era totalmente diferente do forró. Pensar que a gente tá se agitando, agitando o corpo, mas de uma forma pensada, ao mesmo tempo sem negar nossas raízes. Acho que essa foi a jogada. Foi uma jogada boa. Foi gostosa de fazer”, contou Wilyane.

A Açocena cresceu, agora são seis pessoas que tocam e preenchem a cozinha – seção rítmica de uma banda. Além de Daguada, Camilo e Wilyane, também chegou junto Betinho Caixa D’água, na percussão, Gabriel Perninha, na bateria, e Paulo Antonio, no baixo.

Banda fortalece o cenário do afrobeat Sergipano com novo EP (Crédito: Adriano Machado).

Referências que constroem

A mistura que trazem para as músicas, como diz Daguada, está no subconsciente de cada artista. As suas vivências, os lugares em que cresceram e o mundo à sua volta são o que formam cada som presente nas faixas.

“Eu acho que aparece ali na hora. Aparece, por mais que na hora de criar a canção, talvez não seja tão diretamente. Mas, no meu caso, eu tenho certeza que tá ali porque fica ecoando. E eu acho que faz parte da história da Açocena, essa coisa de explorar esses ritmos nossos”, falou Daguada sobre as referências que utiliza em suas músicas.

Mas para além desse resgate da memória, os artistas utilizam da música para expor momentos de constrangimento que passaram. Como é o caso da música “Dance Mermo” que se refere ao momento em que a Pseudo Banda estava tocando no evento Inferninho, no bairro Rosa Elze, em São Cristóvão, e foram intimidados pela polícia.

“A gente estava tocando, chegou meia-noite, a galera tinha um alvará, e aí chegou o momento que a polícia subiu no palco, e o cara tirou a arma, apontou pra gente, tipo, mandou parar e já tirou a arma e apontou pra gente do palco. E aí rolou meio que um princípio de confusão, mas conseguimos diminuir a temperatura. Foi uma questão direta que aconteceu com a gente, de uma realidade social no sentido de que a periferia é privada de ter seus direitos a vários acessos, inclusive à cultura, numa festa que não estava tendo problema nenhum, que a galera estava só curtindo e que os caras simplesmente subiram pra tirar, só porque não era um bairro de playboy. A verdade é essa”, falou Daguada.

Após os policiais se retirarem do palco, a banda voltou a tocar, mas agora com mais fervor, para fazer o povo dançar. Essa mesma energia segue até hoje nos integrantes do Açocena. O que lhes dá prazer em cima de um palco, é ver as pessoas se sentindo revigoradas pela música.

“É onde a gente está, é o que a gente quer. E fazer o povo dançar, que é massa. Já que o pessoal está tocando, o pessoal lá embaixo está dançando, está curtindo o que você está fazendo. Isso são pessoas que você conhece. Fazer primeiro os nossos dançarem. Primeiro os nossos”, disse Wilyane.

Por trás de cada artista há uma história

O nome artístico de Daguada, vem da terra da sua família, Aguada, povoado de Carmópolis, Sergipe. Foi nesse povoado que o cantor teve contato com o Samba de Aboio, ou também chamada Festa de Santa Bárbara. Uma festa que acontece em todo final de semana de Páscoa desde 1888, em louvor a Iansã. É um festejo oriundo da angolana Tamshalim Ecoubanker, batizada de Maria da Soledade, em que chegou ao Brasil escravizada e ao longo da sua história consegue a libertação.

Com tambores, cuícas e muito pé no chão, o samba entrou na vida de Daguada e se perpetuou para as suas músicas. Além do samba, o axé music fez parte da sua infância. Quando criança, Aguada passava as manhãs e tardes com o seu timbal tentando tocar do mesmo jeito que os timbaleiros da banda Timbalada.

“Eu sempre tive uma coisa muito mais popular, assim, do que tá acontecendo popularmente. Então eu comecei tocando axé. Nos meus primeiros estudos musicais eu botava o CD de Timbalada e eu pegava um timbal que eu tinha, botava de trás de mim e ia estudar, eu ficava tentando imitar”, falou Daguada.

Hoje, vivendo basicamente do som, Daguada usa da arte para poder se expressar. “E eu acho que o palco é o lugar que eu consigo falar melhor. Eu não vejo outro lugar que eu consiga falar melhor”, refletiu consigo mesmo.

Querendo largar um pouco da timidez, Wilyane entrou para a aula de teatro. Mesmo sabendo tocar violão desde os oito anos de idade, só foi nas aulas de teatro que ela despertou um interesse de aprender mais. De umas oficinas e outras, algumas comandadas pelo Mestre Zé Pequeno, o qual ela se recorda, Wilyane foi desenvolvendo as suas habilidades na percussão.

“Por isso que eu gosto de ir pra oficina, de fazer esses cursos. Minha pegada é total oficina, sem medo de ser feliz”, falou Wilyane. Nesse percurso, conheceu Daise Raquel, hoje a diretora musical do Batalá Sergipe, um grupo de percussão de samba reggae. Com ela, Wilyane aprendeu a aperfeiçoar a sua prática, como também ter mais confiança de tocar nas ruas.

“Não se via muito mulher assim tocando. A gente tinha algumas referências, né? Não tinha assim tanta mulher tocando, tá ligado, como agora”, relembrou Wilyane.

Nascida em Aracaju, criada em Salvador, aos 12 anos Wilyane voltou para a sua terra natal e permaneceu. Além das oficinas de música em que participou avidamente, ela possui como uma forte base o seu terreiro de candomblé. É no Ilê que Wilyane mantém firme a sua ancestralidade que pulsa em suas músicas.

Camilo é do povoado São Francisco, do município de Adustina, Bahia. Aos 17 anos, se mudou para Sergipe e começou a transformar a sua vida com a música. O seu contato com a música começou logo cedo no interior, por meio do seu primo Danilo Duarte, que hoje também é músico. “Eu nunca estudei música, assim, de fato. Nunca entrei numa escola. Foi mesmo com referência dos meus primos, eles me ensinaram bastante”, contou Camilo.

Com as revistas de cifra, Camilo foi aprendendo os acordes, decifrando cada nota musical em seu instrumento de cordas. Ao se mudar para Lagarto, Camilo conheceu a Pseudo Banda e começou a fazer parte, comandando a guitarra. Desde então, o guitarrista segue na busca dos arranjos perfeitos dentro do Açocena.

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