CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
“Não vou virar um burguês aí sentado, fumando, bebendo whisky e querendo saber onde vai ser o ato. Aí vou no ato, volto para casa e pronto. Não, isso não é para mim”, disse o cineasta Carlos Pronzato, um anarquista argentino e andante que esteve em Aracaju faz uns dias. Ele participou de algumas atividades na capital, especialmente para lançar o filme “Jangadeiros Alagoanos, o que Orson Welles não viu”. Antes, ele conversou com a Mangue Jornalismo.
Pronzato perdeu as contas de filmes e documentários que já fez pela América Latina, a maioria no Brasil, mas acredita que já passou dos 90 trabalhos, descartando os experimentais. Grande parte de sua obra garante a memória do registro vivo das lutas sociais mais imediatas. Um dos exemplos é a “A revolta do Buzu”, de 2003, sobre a luta de estudantes e trabalhadores contra o aumento da tarifa do transporte público de Salvador.
O mais recente trabalho nesse estilo é “O Alerta do Gesto”, de 2023, que narra a cassação do mandato da vereadora Maria Tereza Capra (PT), de São Miguel do Oeste/SC. Ela foi perseguida e teve o mandato tomado porque questionou o gesto em apologia ao nazismo feito por centenas de pessoas na cidade.
Na América do Sul, também sobre as lutas imediatas, Pronzato fez “O Panelaço. A rebelião argentina”, 2002; “Bolivia, la guerra del gas”, 2003; “Jallalla (que viva!) Bolivia. Evo presidente!” 2006; “La rebelión pinguina. Los estudiantes chilenos contra el sistema”, 2007, entre tantos outros.
“Onde há luta legítima, popular, das bases, verdadeira, contra o sistema opressor, nas ruas, nas praças, eu vou, basta reunir as condições mínimas e chego lá”, informa o cineasta, que também é um excelente poeta e escritor de crônicas e peças de teatro, com vários trabalhos publicados. Ele também tem mais de uma dezena de grandes prêmios.
Entretanto, Carlos Pronzato também se dedica a fazer filmes e documentários sobre a história, principalmente de eventos e pessoas pouco conhecidas. É o caso de “Carlos Marighella. Quem samba fica, quem não samba vai embora”, 2011; “A Bahia de Euclides da Cunha”, 2010; “Calabouço 1968 – um tiro no coração do Brasil”, 2014; “1917, A greve geral”, 2017; “Porque não se fala em Manoel Bomfim”, 2019, entre tantos outros.
A seguir, um resumo da longa conversa de Pronzato com a Mangue Jornalismo.
Mangue Jornalismo (MJ) – O que foi que Orson Welles não viu?
Carlos Pronzato (CP) – Ele não viu que quatro pescadores de Alagoas, em 1922, fizeram uma viagem de jangada entre Maceió e Rio de Janeiro para festejar o centenário da Independência, uma viagem organizada em dois, três dias. Descobri essa história andando pela Ponta Verde, em Maceió. Lá tinha uma plaquinha falando da viagem e dos jangadeiros. Nunca tinha lido nada sobre isso e resolvi fazer umas buscas sobre esse assunto.
MJ – E Orson Welles?
CP – Pois é, ele veio ao Brasil fazer um trabalho de cinema, na tentativa de atrair o Brasil para o mundo estadunidense, que estava em guerra. Então, ele se encantou com os jangadeiros do Ceará e contou a história deles, da reivindicação por melhores condições de trabalho e isso ficou conhecido. O caso dos jangadeiros de Alagoas é muito menos conhecido e me interessou por isso, pela aventura, o mar. Sou um sujeito do mar, gosto do mar, viajo de navio, veleiros. Lamentavelmente não conseguimos encontrar nenhum parente vivo dos quatro jangadeiros, mas através de historiadores, pesquisadores e os jangadeiros conseguimos reconstruir um pouquinho dessa saga. Esse filme foge um pouco de minha linha geral, das lutas sociais, políticas, mas também para mim esse tipo de filme é fundamental.
MJ – Esse não é o seu último trabalho, não é? Ele é de 2022. Existem filmes seus deste ano
CP – Sim. Deste ano tem a história em documentário sobre Zumbi dos Palmares, em parceria com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), um trabalho que não concluí ainda. Espero finalizar até novembro. Este ano de 2023 eu comecei lançado um filme, uma curta de 25 minutos, sobre João Cândido, um pintor de 91 anos, negro, mineiro, que morou em São Paulo. Fiz esse trabalho para constar de uma amostra sobre todas as obras dele e que se realizou no Palácio do Correio no Anhangabaú, em São Paulo. Depois veio o filme-documentário sobre a cassação da vereadora Maria Tereza Capra (PT), do município de São Miguel do Oeste, cidade do interior catarinense, que questionou o gesto em apologia ao nazismo praticado por pessoas dois dias após a vitória eleitoral do Lula, em frente ao quartel do Exército. Foi complicado, eu com minha camerazinha circulando numa cidade, fazendo um documentário sobre a cassação da vereadora, e em meio a muita gente que faz apologia a Hitler. Bom, mas saiu.
MJ – Tem um desse ano que fez muito sucesso, aquele sobre o Novo Ensino Médio, não foi isso?
CP – Sim, claro. Ele se chama “NEM (Novo Ensino Médio) – Um fracasso anunciado”, um trabalho com o apoio do pessoal da educação em São Paulo, que conheço bem, com o Daniel Cara e muita gente boa. Este é um documentário que foi muito visto, passou em sindicatos, em muitas escolas, está tendo uma enorme audiência. E quando terminei esse e pensei que ia ficar mais livre para poder finalizar o de Zumbi, surgiu a necessidade de fazer um documentário sobre a Lei do Marco Temporal dos povos originários do Brasil. Teve a votação na Câmara dos Deputados, houve uma grande mobilização e eu não tinha feito nada sobre esse tema. Foi fantástico porque fui fazer no interior de Santa Catarina, e tive grande apoio do pessoal, do professor Lafayete, uma equipe fantástica foi montada. O nome do filme é “Desmascarando o Marco Temporal. Os Laklanõ Xokleng e a Repercussão Geral” e está na internet.
MJ – Aliás, grande parte ou todos os seus filmes são livres na internet, no Youtube.
CP – Sim, está tudo lá ou quase tudo, não sei.
MJ – Essa coisa de liberar completamente os filmes para acesso de todo mundo é uma ação política?
CP – Claro…totalmente. Olhe, eu não suporto burocracia, nunca venci isso, sou um analfabeto burocrático, então tenho que facilitar o acesso ao máximo. Outra coisa, não consigo parar para estudar editais, buscar financiamentos e tudo isso aí. Dizem para mim, ‘Pronzato tem ali tantos milhões da Lei Paulo Gustavo, da prefeitura e tal’. Eu digo, ‘sim, que bom, façam e me chamem’. É dinheiro público, tudo bem, mas está na mão de quem? Do público ou do governo? Se está na mão do governo, então é ele quem pauta as coisas. Eu não posso ser pautado pelo Estado. Como eu poderia fazer o documentário sobre o Marco Temporal pautado pelo Estado? Como fazer o material da reforma do ensino médio recebendo dinheiro do Governo? Se fosse pautado pelo Estado não teria sido feito ainda.
MJ – Aí está o anarquista…
CP – Sou um anarquista mais que Bakunin [político, sociólogo, filósofo e revolucionário anarquista russo]. Dizem que ele chegava nos lugares e perguntava, ‘onde está a revolução?’ Sou um pouco mais que isso (risos). Lembro que Bakunin foi perseguido, preso, etc. Eu, por algum dia, devo cair provavelmente, mas tenho um certo diálogo, falo com muita gente, ando aqui e em todos os lugares e tem gente valorosa em todos os espaços. Agora, anarquista que é anarquista não quer nem saber disso, de instituições, de organizações. Mas eu não poderia viver assim. Meu espírito é de circular, de falar com pessoas até do campo contrário para saber se há algo resgatável nelas ou em mim, que sou um sujeito de esquerda. Como sou aberto, não temo em chegar nos espaços e escutar e falar, se não fosse assim não poderia fazer materiais como a da vereadora cassada, do Marco Temporal, de Zumbi. Além disso, meu trabalho sempre busca a qualidade e o respeito, eu me movimento assim, sempre por terra, não ando de avião de jeito nenhum.
MJ – A Revolta do Buzu foi o seu primeiro trabalho de grande repercussão?
CP – Não. O primeiro de maior repercussão foi Maio Baiano, um movimento que eu tive a sorte de batizar. Ele narra as manifestações estudantis em Salvador, em maio de 2001, com protestos contra a corrupção nos governos federal e estadual. Depois, em 2003, veio a A Revolta do Buzu, mas desta vez o nome não fui eu quem colocou.
MJ – E antes disso?
CP – Na década de 1990, eu praticamente me dediquei ao teatro e fiz alguns trabalhos em vídeo, a exemplo de Canudos que, para mim, foi um porta para entrar na história do Brasil de luta. Esse foi um trabalho de 1999. Estive lá no sertão me encantei com aquele ambiente, ainda com cheiro da pólvora da guerra, de uma luta contra o Exército, a elite, o mundo jurídico, o clero, o mundo comercial, tudo. Sim, os pobres perderam, mas ficaram na história como lutadores, resistentes.
MJ – E as lutas de hoje, como você as percebe?
CP – Sinceramente, não vejo muita perspectiva de transformação política, ou melhor, do processo político do Brasil e da América Latina. Não vejo nenhum progresso, não do ponto de vista positivista, mas no sentido de caminhar todos juntos, modificando coisas. Sim, as pessoas envelhecem, mas algumas premissas não envelhecem. A companheira encarregada de manter as finanças da guerrilha do Che na Bolívia (1967) falou que a ‘ideia da revolução continua’. O problema é que os mecanismos para isso foram completamente deturpados pela polícia institucional. Por exemplo, eu vou ficar no gabinete 24 horas por dia, mantendo 15 assessores? Muitos sindicatos estão presos na construção de uma estrutura sindical criada por Vargas no anos 30. Por isso que eu fiz o filme ‘1917, a Greve Geral’, onde os sindicatos eram livres e se um fazia greve, todos os demais sindicatos faziam greve em apoio àquele sindicato que começou o movimento. Não havia muita divisão entre os trabalhadores, todos eram trabalhadores, todos unidos contra o patronato. Hoje, cada um faz sua negociação à parte, entendeu? Isso aponta um desânimo político geral, num contexto cada vez pior, mas não um desânimo que impeça de continuar batalhando, lutando, com consciência da classe de trabalhadores, os princípios, as bandeiras não se abaixam.
MJ – E a tecnologia?
CP – Ela, em certa medida, é a nosso favor, mas no fim das contas, ela reduziu nossa presença nas ruas, nas manifestações. Muitas reuniões passaram a ser virtuais. Na medida que o ser humano perde essa relação concreta, de olho no olho, de se tocar, de fazer coisas imediatas, a gente se distancia. Penso que o mundo online está acabando com essa perspectiva revolucionária. Claro que você encontra muitas coisas que você não encontrava, tudo ficou mais veloz, as pesquisas e tal, mas nessa velocidade se perdem imagens.
MJ – O que faz você se movimentar no mundo?
CP – É um leque bastante amplo de temas. Por um lado, os temas históricos, como esse dos jangadeiros, histórias pouco vistas e lembradas, que estão escondidas e que é preciso explorar. Por outro lado, histórias imediatas, de agora, de injustiças, como por exemplo, o caso do Mestre Moa do Katendê, que estava lá um dia depois do crime e fizemos tudo em 14 dias com a ajuda de muita gente, do sindicato. A questão dos direitos humanos é fundamental, sempre, as injustiças, a opressão. Assim foi o caso do documentário sobre o trem do subúrbio de Salvador, uma profunda injustiça do governador da Bahia, Rui Costa, e que me posicionei firmemente. Ele tirou um trem para colocar um VLT, não colocou e ainda se deturpou a ideia de colocar o VLT por um monotrilho. Não pensei duas vezes, não quis nem pensar quem estava por trás disso, podia estar meu pai por trás disso, seja quem for, o que era importante era mostrar a injustiça, a destruição de um trem que custava 50 centavos a passagem, isso é uma questão de direitos humanos, de trabalhadores da periferias, dos pobres.
MJ – E um Governo do PT, o da Bahia.
CP – Sim. Por isso que não vejo mais possibilidades de grandes transformações, mesmo em governos que se dizem de esquerda, mas que fazem acordos com grandes empresas internacionais. Que tipo de governo é esse? Talvez essa turma saiba negociar e eu não sei. Não posso negociar com a vida de milhões de pessoas, gente pobre. Eu não vou lutar por certos projetos, pegar bandeira, eleger, e depois o governo que elegi vai e tira o trem da população. Eu não posso participar disso. Mas veja, tenho desesperança no contexto, mas eu continuo de vento em popa. O mar está cheio de lama, mas eu e muita gente está no navio e vamos avançando, trabalhando, andando, mesmo diante da lama.
MJ – Fale sobre o documentário sobre a história do sergipano Manoel Bomfim.
CP – Manoel Bomfim tem uma história fantástica. É nascido em Sergipe, um intelectual gigante da América Latina, que pensou o mundo para as pessoas mais pobres, que criticou a elite, mas é pouco conhecido. Tomei conhecimento sobre ele em 2010 pelo professor José Vieira, na Unit, num debate com os alunos. Em 2018 comecei a juntar pessoas, pesquisadores, professores, a deputada Ana Lúcia, várias pessoas e fizemos o documentário ‘Porque não se fala em Manoel Bomfim’, que saiu em 2019. E foi um sucesso esse documentário em todo país e fora daqui, muita gente comenta, usa. Ler Manoel Bonfim para mim foi um elemento central para conhecer Sergipe, o Brasil e a América Latina.
MJ – E por falar em América Latina, qual sua avaliação política?
CP – Infelizmente não vejo perceptiva de esperança, porque as organizações de esquerda estão abrigando projetos de direita. Quando vi Geraldo Alckmin como vice-presidente do Brasil no governo Lula eu disse, ôpa!!! Não é ele, a pessoa, mas o que ele representa, os interesses, os grupos, os recursos e tudo isso dentro do governo de esquerda. Veja, eu estive na linha de frente com as pessoas no Chile, nas lutas contra as políticas neoliberais, defendendo a população que protestava. Teve bomba, tiro, repressão, muita gente presa. O presidente eleito Gabriel Boric saiu desse movimento, mas até hoje não tirou as pessoas das prisões e fez inúmeras concessões à direita.
MJ – Qual o lugar do cinema nesse tempo?
CP – Meu gesto político é poético, reivindica a luta popular, autêntica, vai para rua. Sobre o que vai acontecer depois, fica para depois… eu sou poeta e não posso fazer uma coisa totalmente diferente no cinema. Meu material audiovisual busca isso: poesia para mim é um cara na frente de um tanque, e isso tem que ser levado ao dia a dia da política, mas não é levado. Quando você entra no mundo institucional, você tem que vestir outra roupa e essa roupa é fundamental. Eu que venho do teatro sei muito bem disso, é o que marca a personagem. Tanto e tanta gente que antes estava na luta e está hoje nos governos. Dizem que é um governo social democrata, que é isso e aquilo, não acho, governo é governo. As pessoas que estão nas ruas, no dia a dia, nas lutas cotidianas é outra coisa. Por isso que eu quase só ando nas bases, ando com os de baixo, nunca me interessou o governo.
MJ – O que você diz aos jovens?
CP – Façam coisas, só se aprende fazendo, principalmente na nossa área. Pega uma câmera, faz filme. Pega na caneta, escreve. Pega um pincel, pinta. Pega no corpo, faz teatro. É isso, tem que fazer e fazer até o que não pode, fazer com os meios que se tem. Tem que se jogar, não pode ficar esperando do governo. Eu acho isso fundamental e reivindico fazer fora dos imperativos oficiais. Outra coisa, aposte no acaso. Para mim o acaso é fundamental. Sim, é preciso estar preparado para ele. Isso é um problema, preparado e com a antena ligada. Eu mesmo já perdi alguma coisa por conta disso, não percebi direito a potência de certas coisas.
MJ – Vale a pena?
CP – Para mim, o que vale é conhecer as pessoas e as suas histórias. O que mais guardo na memória não é o que estava à vista, o que vai aparecer no filme, no documentário, mas as conversas, os nomes, as histórias das pessoas. Se o filme servir para alguma coisa, está bem. Outra coisa, sabe, mantenho a literatura, a ficção como válvula de escape para os meus documentários. Agora, insisto, no nosso campo, do filme, do documentário, tudo é posicionamento, se não tem militância, não serve, sai sem forma, sem grito.
MJ – Próximos projetos?
CP – Existem projetos já encaminhados, como o de Zumbi que devo finalizar até novembro deste ano, mas 80% de meus documentários e filmes surgem no calor da vida, no contexto, no momento. Sou um aventureiro, desde sempre, não vou mudar agora. Não vou virar um burguês aí sentado, fumando, bebendo whisky e querendo saber onde vai ser o ato. Ai vou no ato, volto para casa e pronto. Não, isso não é para mim.
MJ – O que a gente não falou nessa conversa?
CP – Tudo. Estamos iniciando a conversa.
Respostas de 2
Parabéns pela completa e esclarecedora entrevista. Carlos é um anarquista com propósito. Parabéns a ele por mais esta obra. Grata pela sua passagem por Florianópolis SC.
Conheci o trabalho de Carlos Pronzato em uma atividade da UFS no ano 2017 – ele fez um documentário belíssimo e forte sobre a ” Escola sem partido” ou Lei da mordaça. Parabéns a Mangue Jornalismo por mais essa excelente matéria. Mangue não traz somente a informação de qualidade, mas nos provoca a pensar para agir de algum modo.
Muito obrigada ???