É grave a situação da área de manguezal no município de Nossa Senhora do Socorro, na Grande Aracaju.
Além da constante destruição dessa Área de Preservação Permanente (APP) com aterramentos para atender às demandas da especulação imobiliária, um outro ataque tem sido perpetuado nos mangues com a criação predatória de camarões em viveiros.
Somente no Povoado Aratu, próximo ao Riacho Várzea, afluente do Rio do Sal, em Nossa Senhora do Socorro, foram flagrados 33 viveiros de carcinicultura em área de manguezais, todos sem licença ambiental e sequer processo de regulamentação.
Além desses 33 viveiros ilegais, outros seis pediram autorização, mas ainda não tiveram liberação para atuar. Somente 14 carcinicultores estariam “regularizados”.
O quadro é tão grave que o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) foi obrigado a ingressar no Judiciário com uma Ação Civil Pública requerendo uma decisão urgente para que o Estado de Sergipe, através da Administração Estadual do Meio Ambiente de Sergipe (Adema), deixe de conceder novas licenças ambientais para viveiros de camarões em áreas de mangue em todo o município de Nossa Senhora do Socorro.
O MPF/SE também pede que a Adema, antes de voltar a conceder licenças, realize em 180 dias os estudos que apresentem os impactos ambientais causados pelos criatórios de camarão, especialmente no Povoado Aratu, além de garantir a recuperação da área degradada.
Na ação, o MPF/SE pede que sejam também acionados a Prefeitura de Nossa Senhora do Socorro e o Governo Federal, através do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O procurador da República que assina a ação, Ígor Miranda, disse que as abundantes provas denunciam que “há um grave e reiterado problema de omissão estatal que permite a multiplicação de tanques de viveiros de carcinicultura no Povoado Aratu, a grande maioria sem qualquer amparo legal de licenciamento e sem estudo que avalie o impacto cumulativo e sinérgico”, afirma.
Podem ocorrer atividades em APPs considerando-se, por exemplo, a justificativa de “utilidade pública”. Entretanto, chama a atenção do MPF/SE que qualquer obra, plano, atividade ou projeto de utilidade pública, interesse social ou de baixo impacto ambiental, mas que implique em intervenção ou supressão de vegetação em APP deve ser previamente autorizada por órgão ambiental competente, em processo administrativo próprio e motivado tecnicamente.
Isso não se aplica em hipótese alguma na situação encontrada no Povoado Aratu. “Nenhum estudo foi realizado, nenhum impacto considerado e nenhuma medida foi tomada pelo Poder Público a fim de minimizar os prejuízos ao ecossistema do manguezal no município de Nossa Senhora do Socorro”.
Além disso, não se vislumbra “qualquer interesse social ou utilidade pública em viveiros particulares destinados unicamente a atender as necessidades dos particulares”, afirma o procurador Ígor Miranda. “Inaceitável, portanto, que cidadãos, com a conivência do Poder Público, fora das hipóteses previstas em lei, promovam edificação em área de preservação permanente de manguezal”, completa o procurador.
Lucros nas mãos de poucos, prejuízos nas mãos de todos
A destruição avançada nos manguezais em Sergipe não é novidade para quem acompanha a Mangue Jornalismo. Em reportagens anteriores, revelou-se que o estado de Sergipe tem 250 km² de território ainda cobertos por manguezais. Entretanto, ao longo dos anos, esse ecossistema tem sido fortemente ameaçado e de forma devastadora por empreendimentos imobiliários e pela carcinicultura.
Como a criação de camarões em cativeiro tem ganhado cada vez mais espaço no cenário econômico regional, diante dos lucros, as preocupações ambientais têm ficado à margem das prioridades governamentais.
De acordo com os dados expostos pela Pesquisa Pecuária Municipal (PPM), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Sergipe foi o quarto maior produtor de camarão do país em 2020, tendo produzido 4,5 milhões de quilogramas. O município de Socorro é o responsável pela maior concentração de produção (1.120 toneladas/ano). Em 2020, o Nordeste foi responsável por 99,6% da produção brasileira de camarão em cativeiro.
Para Ricardo Mascarello, arquiteto, urbanista e conselheiro federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, a carcinicultura tem se mostrado uma atividade que vai de encontro aos ciclos naturais do planeta, afetando diretamente o meio ambiente natural, causando alterações no ecossistema.
“A criação artificial por si só já é abusiva quanto a criação massiva de camarões alimentados por ração dentro de reservatórios de águas extraídas diretamente de rios e mares. De tempos em tempos estas águas serão trocadas e devolvidas aos rios com uma série de resíduos impactantes”, alerta Ricardo.
Ele defende que a sustentabilidade precisa conciliar a relação entre o uso econômico dos espaços e a preservação ambiental. “Precisamos urgentemente aliar desenvolvimento econômico e social com a preservação ambiental, democratizando os usos econômicos e os bens naturais que são de todos”, reforça Ricardo.
Em sua peça entregue ao Judiciário, o procurador da República Ígor Miranda alertou que, “em que pese a alegação de vulnerabilidade da população local, não é possível afirmar que a atividade de carcinicultura repercute em renda exclusivamente ao locais ou se não existem proprietários ocultos que regem a atividade informal”.
O fato é que a prática do uso predatório de manguezais para criação de camarões em viveiro não é exclusividade do município de Nossa Senhora do Socorro. Segundo Ricardo, também é possível evidenciar esta prática em São Cristóvão e Brejo Grande, por exemplo.
“Quando fazemos um sobrevoo por estes três municípios percebemos a drástica transformação espacial e plástica junto às margens dos rios com uma expressiva supressão de manguezal, além, é claro, da degradação ambiental”, afirma. O militante de causas ambientais Joseilton Nery defende que a fiscalização também seja realizada em outras regiões de Sergipe. “Requer-se que o MPF também instaure procedimentos administrativos nos demais municípios potenciais das atividade de carcinicultura, tais como São Cristóvão, Itaporanga d’Ajuda, Estância, Indiaroba e Brejo Grande, para averiguar suposta existência de criadouros irregulares e com agressão às APPs”, reforça Nery.
Manguezais são berçários naturais e vitais
Amanda Moura, integrante da Rede Sergipana de Agroecologia e mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambiente e Engenheira de Alimentos (UFS), informa que “os manguezais são importantes ecossistemas costeiros considerados berçários naturais por abrigarem uma diversidade de espécies de animais que o utilizam para a reprodução, desova, alimentação, crescimento e proteção”.
Ela também esclarece que manguezais “são unidades ecológicas altamente eficientes na conversão da energia solar em matéria orgânica, tendo a capacidade de absorver grandes quantidades de CO² (gás de efeito estufa) e, consequentemente, produzir oxigênio”.
Além disso, lembra Amanda, a vegetação dos manguezais também previne a erosão dos ambientes costeiros e regula a qualidade da água. “Por isto, o cuidado, a preservação e o uso adequado deste bem comum é fundamental para o equilíbrio da vida”, afirma.
Em razão dessas condições, os manguezais têm garantias legais de preservação que estão na Constituição Federal e o ataque sobre eles é considerado como crime. O artigo 60 da Lei 9.605/98 afirma ser crime ambiental “Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes”.
“A ação no município de Socorro é necessária para que o Estado cumpra a sua função de fiscalizar e regularizar os empreendimentos de carcinicultura instalados sem licença na região”, avalia Amanda. Ela também espera que ações como essa sejam realizadas em outros municípios de Sergipe onde esta atividade se expande, gerando conflitos socioambientais que impactam diretamente as populações ribeirinhas locais e causam graves danos à natureza.
Para ela, a atuação do Estado precisa ocorrer de forma interdisciplinar, agindo de forma conjunta na proteção ambiental, social, cultural e econômica das comunidades tradicionais, considerando as diferentes realidades onde os viveiros estão localizados e com atenção especial sobre quem são as/os principais atingidas/os ou beneficiárias/os destes empreendimentos.
“Compreender o contexto local, os desafios e as demandas dos povos das marés de Sergipe é imprescindível para que as leis sejam aplicadas de forma justa, com foco no fortalecimento dos territórios como um todo, numa interação construtiva e harmoniosa entre a sociedade e a natureza, garantindo as condições necessárias para a manutenção dos modos de vida e reprodução social dos povos e comunidades ribeirinhas”, defende Amanda.
Adema alega que tem redobrado atenção no licenciamento para carcinicultura
Em nota para a Mangue Jornalismo, a Adema afirma que tem redobrado a atenção no licenciamento da atividade da carcinicultura em Sergipe observando, na análise individual de cada novo pedido ou renovação de licença, se os viveiros vão impactar o bioma manguezal e se estão atendendo a legislação vigente para a atividade da carcinicultura.
Segunda nota, “além da fiscalização de áreas denunciadas, a Adema tem alinhado ações com outros órgãos com o objetivo de fiscalizar e coibir a supressão irregular de manguezal e a instalação de viveiros clandestinos em áreas de preservação permanente”.
O presidente da Adema, George Trindade, informa que nas duas últimas semanas, foram realizadas reuniões envolvendo diversos órgãos nas quais foi discutida a ampliação da fiscalização da atividade. “Estivemos reunidos, na semana passada, com o Ministério Público Federal, onde conversamos sobre ações fiscalizatórias conjuntas para algumas atividades, com destaque para a carcinicultura; e, na última terça-feira, com a Polícia Federal, quando alinhamos a assinatura de Acordo de Cooperação Técnica para atuação conjunta nos casos que demandem atuação repressiva de polícia judiciária em áreas pertencentes à União”, disse George.
De acordo com o gestor da Adema, outra reunião foi realizada com a Secretaria de Estado da Agricultura, a Emdagro, a Associação dos Carcinicultores de Sergipe e um representante do Legislativo estadual. “Entendemos a importância social e econômica da carcinicultura, mas ela precisa ser feita em obediência à legislação ambiental. Não podemos criminalizar todos os carcinicultores porque muitos atuam dentro da legalidade. Planejamos realizar uma mobilização conjunta para buscar a regularização dos viveiros que estejam atuando sem licença, desde que não estejam incorrendo em crime ambiental. Mas os que estiverem instalados em áreas de preservação permanente, desmatando manguezais ou realizando atividades poluidoras serão, com certeza, encerrados”, afirma o presidente da Adema, que está à frente da autarquia há pouco mais de quatro meses.
Ainda de acordo com ele, em março a Adema irá reunir consultores ambientais atuantes nas áreas de carcinicultura para que reforcem, junto aos criadores, orientações para a obediência da legislação ambiental; e uma nova agenda já está indicada com a Seagri e o MPF para dialogar sobre a carcinicultura em Sergipe.