CRISTIANO NAVARRO, da MANGUE JORNALISMO
@waltervialactea
Desde 2018, Hamilcar Dantas traz para suas aulas de mestrado no Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Cinema e Narrativas Sociais da Universidade Federal de Sergipe (PPGCine/UFS) uma perspectiva histórica ao cinema.
Na disciplina “Cinema e Ditadura Militar”, por exemplo, Dantas apresenta as produções cinematográficas que se referem ao período de exceção entre 1964 e 1985 sempre sob a temática dos direitos humanos. Os conteúdos abordados não se referem apenas ao cinema, partem de textos multidisciplinares que passeiam por sociologia, antropologia e história para dar conta da complexidade do tema.
Em 2022, na ocasião dos 200 anos de independência do Brasil, Dantas revisitou os olhares de cineastas registrados nas telas do cinema nacional produzindo o catálogo “200 filmes para 200 anos de Independência do Brasil – Uma referência para reflexão histórica”.
Avesso à tal independência como queriam as comemorações oficiais, o livro de Dantas se apresenta como um instrumento didático em sintonia com o cinema crítico à realidade brasileira. “O que temos a comemorar? Então, quando a gente pensa no morticínio cometido ao longo de cinco séculos contra diversas populações indígenas brasileiras – o que há a comemorar?”, questiona o autor.
“200 Filmes para 200 anos de Independência do Brasil:
Uma referência para reflexão histórica” pode ser adiquirido pela internet na editora CRV.
Confira a entrevista na íntegra a seguir.
Cristiano Navarro – Como nasceu este Catálogo? Apesar de ser um catálogo de referência histórica, ele não está exatamente em uma ordem cronológica. Como você pensou a estrutura dos capítulos do livro?
Hamilcar Dantas – Esse catálogo surgiu despretensiosamente naquele contexto de comemoração dos duzentos anos da independência do Brasil em 2022. Fui recomendando, ao longo do ano, alguns filmes todos os dias no Instagram. Então uma amiga do departamento de educação [da UFS], professora Anamaria Bueno, sugeriu sistematizar essas postagens para publicar e tornar uma fonte de consulta no campo educacional, no campo cinematográfico e dar um panorama da produção cinematográfica ao longo desses anos. E aí sim reestruturei essa sugestão arredondando para os duzentos anos.
E eu pensei nessa dinâmica de não seguir cronologicamente os 200 anos. Mas pensando nas grandes problemáticas do Brasil. Os primeiros eventos históricos específicos, mas também os grandes problemas que a independência, ou a tal independência, jamais solucionou. O Brasil é um país desigual, é um país violento, é um país que ratifica tensões permanentemente, principalmente contra minorias sociais de grupos mais vulneráveis como a população preta, os indígenas, a população LGBTQIAPN+, as mulheres, as crianças e os idosos. Depois que fiz toda a listagem de filmes, passei a tentar classificá-los. Nesse processo acabei descartando alguns, incluindo outros para dar mais robustez a cada temática.
Logicamente que o PPGcine contribuiu muito pra isso, porque desde dois mil e dezoito venho trabalhando com cinema e história e tenho privilegiado trabalhar com os alunos com filmes do cinema nacional. De modo a dar essa possibilidade de perceber a riqueza do cinema nacional e o quanto nos permite pensar a história do país.
O livro tem como marco os 200 anos de independência do Brasil, mas a maioria dos filmes faz referência exatamente à luta por essa independência que parece nunca chegar. Como você observa essa tensão nos filmes? O audiovisual brasileiro dá conta de representar estas tensões?
Essa questão de pensar uma independência que nunca chega está muito posto em cada término de reflexão que eu fazia. Ou seja, o que temos a comemorar? Então, quando a gente pensa no morticínio cometido ao longo de cinco séculos contra diversas populações indígenas brasileiras – o que há a comemorar? Eu sempre fazia essa reflexão e parece que na perspectiva benjaminiana. Ou seja, “um passado que nunca cessa, um passado que nos assombra˜. A gente continua indo pra frente sendo levado pelo progresso, no entanto quando olhamos pra trás estão os escombros e os corpos de milhares de brasileiros que vão ficando pelo caminho, soterrados por essa violência cotidiana. E acho que o cinema nacional reflete isso. Há várias décadas que o cinema nacional problematiza isso com muita contundência. Cineastas Brasileiros como Glauber Rocha, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Rogério Sganzerla, Kleber Mendonça Filho, Hector Babenco, Nelson Pereira dos Santos, são cineastas que vem refletindo isso há muito tempo e que se encaixam, no meu entendimento, inclusive como grandes pensadores sociais do Brasil.
Temos grandes pensadores acadêmicos no Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda, como Milton Santos, como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, mas eu acho que esses cineastas são também grandes problematizadores das agruras do Brasil. Então o cinema nacional vem dando conta dessa problemática e acho que a gente precisa dar essa visibilidade, principalmente no âmbito escolar. Isso precisa ser mediado pra que as pessoas possam conhecer o cinema nacional, sair desse espectro de senso comum que foi construído ao longo das dos anos oitenta e noventa de que o cinema brasileiro é só palavrão e sexo, como se isso não estivesse enraizado no contexto da sociedade brasileira. Como se a sociedade brasileira fosse uma sociedade pudica, uma sociedade ética, pacificada, sem xingamentos. Ao contrário, é basicamente uma sociedade calcada na violência sexual, mas que fica tentando contornar isso com uma fantasia chamada “Família Tradicional”. Como uma sociedade harmoniosa na qual a Casa Grande convive bem com a senzala! Então o cinema nacional vem trabalhando isso com muita contundência e eu acho que precisa ser dada maior visibilidade.
Existem mais de 90 filmes escolhidos foram produzidos de 2000 para cá. Como você observa isso? Como você observa a democratização da produção audiovisual nesse período?
Interessante você pensar e provocar essa questão dos filmes. Quase metade deles produzidas do ano dois mil pra cá. Eu realmente não pensei nisso. Eu queria colocar duzentos filmes que eu tivesse assistido e que eu pudesse dar alguma impressão mínima sobre estes filmes. Acho que é uma questão de limite histórico e de acesso à produção. Ou seja, eu tenho acesso a uma produção mais recente por conta da possibilidade de democratização do acesso. Mas eu acho que é importante destacar que o cinema brasileiro foi extremamente fecundo em várias épocas. Pensemos ali na década de quarenta e cinquenta com as Chanchadas e a Atlântida. A tentativa de construção de uma indústria do cinema nacional com a Vera Cruz e a Cinédia. Houve muita produção ao longo dos anos sessenta com cineastas que iniciam o cinema novo. A década de setenta com as produções da EMBRAFILME e as produções da boca do lixo em São Paulo. O cinema nacional produziu muito no contexto dos anos oitenta. E precisamos pensar que sobrevivemos à política cultural do Collor com a extinção da EMBRAFILME. Nos anos 2000 veio o cinema da retomada que ampliou muito a produção e a democratizou em parte, o que oportunizou o aparecimento de cineastas de vários estados do Brasil, cineastas mulheres, cineastas negros e cineastas apontando paras problemáticas LGBTQIAPN+. E sobrevivemos a Michel Temer e a Bolsonaro com a extinção do Ministério da Cultura. Então eu acho que essa questão de aparecer mais filmes dos anos 2000 é pela possibilidade de acesso, não foi efetivamente pensada.
Outro período muito marcante é o Cinema Novo. O que isso significa?
O cinema novo é muito importante para o país porque ele se insere num contexto de novas vanguardas cinematográficas que eclodem ali a partir do pós-segunda guerra mundial se contrapondo à linguagem clássica de Hollywood, a exemplo do neorrealismo italiano, da Nouvelle Vague Francesa, Nouvelle Vague Tcheca, New Wave britânica. E o cinema novo brasileiro, se insere, a partir da ideia de compreender as desigualdades sociais do Brasil. Entender a violência que está entranhada no Brasil, nessa desigualdade, e produzir um cinema que efetivamente desse conta dessa complexidade. É óbvio que esse cinema acaba ficando um pouco distante da população, mas o cinema novo, de certo modo, foi um elemento demarcador de que era possível fazer um cinema com uma linguagem que problematize a situação brasileira e que aponte elementos de superação
Você indica documentários, mas também indica ficções. Em que medida um filme de ficção pode ser visto como uma fonte histórica?
Bom, no senso comum é muito perceptível essa ideia de que o documentário, pela própria etimologia da palavra que vem de documento daquilo que registra um fato, um evento, uma figura histórica, criasse no imaginário que o documentário é mais próximo da verdade factual. Mas tanto filmes documentários, quanto filmes de ficção histórica, partem da intencionalidade do cineasta ou do grupo de sujeitos que estão imbricados com esse projeto. E penso que tanto o documentário quanto o filme de ficção histórica nos possibilitam refletir sobre a história. Nenhum filme é trabalho historiográfico, nem se pretende ser. Mas nos provoca, nos inquieta, faz com que a gente possa refletir sobre o fenômeno. Discutir se um filme é mais ou menos fiel à história, é exigir de um filme o que ele não é: um trabalho historiográfico! O fato é que os filmes constroem nossa percepção de história. Os filmes nos induzem a pensar como a história aconteceu, como o processo se deu. E é por isso que entendo que os filmes nos provocam e os filmes precisam ser mediados. Daí a ideia de que a educação possa ser esse elemento fundamental de mediação
Você teria uma lista dos seus cinco filmes preferidos deste catálogo? Por quê?
Difícil pensar uma lista de filmes que sejam preferidos. Eu queria ter passado por 200 filmes que efetivamente tivesse assistido. Óbvio que, do ponto de vista do prazer estético de assistir, alguns filmes eu nem gosto, mas entendo que são relevantes ao que se propõem. E se você me pedir uma lista hoje, talvez daqui uma semana seja outra. Porque esse elemento é sempre polêmico e a gente às vezes está mais inclinado a uma perspectiva ou mais a outra. O que eu poderia dizer, não que seriam meus filmes preferidos, mas filmes que a cada vez que eu retorno sempre me apresentam novas perspectivas e dão prazer ao assistir, citaria ˜Terra em Transe˜, do Glauber Rocha, ˜Pixote˜ do Hector Barbenco, ˜Eles não Usam Black-Tie˜ do Leon Hirszman, ˜O Bandido da Luz-Vermelha˜, do Rogério Sganzerla e o ˜Som ao Redor˜ do Kléber Mendonça Filho. Mesmo que sejam filmes carregados e assentados na violência e nas contradições como é o Brasil, são filmes que sempre me emocionam e me fazem pensar nossa história.