Começa o Julho das Pretas e me pedem para escrever um artigo. Penso num belo ensaio, estalo os dedos e afino o imprevisível instrumento das palavras. Mas mal começo a escrever e a primeira linha treme feito a corda de um violão.
Cinco mulheres me olham. Convido-as, tímida, para uma conversa, nada que lhes tome muito o tempo, explico, quase de mãos estendidas para aceitar que pousem em mim um pouquinho de mansidão. Elas me rondam, panteras.
Não me atrevo ainda a escrever, sinto a página palpitar num compasso mais forte. Meu coração, tambor interno, reage caloroso.
Vejo as cinco mulheres em volta de mim e tento imitar-lhes a desenvoltura, o audacioso riso. Seus gestos evocam difícil harmonia entre força e doçura, entre fúria e amor. Atendem ao meu chamado com carinho, sentam-se elegantes com suas saias, suas faixas coloridas, seus colares e anéis. Juntas, sentadas em tamboretes debaixo de uma mangueira farta de mangas, no fim de uma tarde solar, conversamos.
Sorrio, pois sinto as mãos negras de minha mãe me oferecendo a elas. Então, de caderninho na mão, começo, ainda insegura:
Repórter: Beatriz, como não sucumbir à mão violenta do racismo? Como você consegue combinar tão bem a sua luta, a sua poesia, a sua militância?
Beatriz: “Nasci segura em rede esticada, em praia de claras águas, em ventre bom e gostoso de poderosa mulher…
…Ninguém fará eu perder a ternura…Ninguém fará eu perder a doçura…Ninguém me fará racista, haste seca putrificada, sem veias, sem sangue quente. Sem ritmo, de corpo, dura? Jamais fará que em mim exista Câncer tão dilacerado”.
Repórter: Lélia, por que o Julho das Pretas é tão importante para nós?
Lélia: “Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual… Em razão disto é ir à luta e garantir os nossos espaços que, evidentemente, nunca nos foram concedidos”.
Repórter: Carolina, com a sua literatura você abriu muitos caminhos, seus livros revolucionaram o lugar da subjetividade das mulheres negras. Vale a pena a luta com a palavra? Por que escrever e insistir no sonho?
Carolina: “Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é… Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá: isto é mentira! Mas, as misérias são reais… Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo oprimido”.
Repórter: Georgina, você é um dos maiores nomes da poesia cubana e sempre fez questão de reverenciar suas ancestrais. Qual a importância dessas mulheres em sua vida?
Georgina: “Os velórios eram o lugar exato para que se abrissem como livros fabulosos em suas melhores páginas. Elas, as Negras Velhas, contavam o que antes havia chegado aos seus ouvidos. Mas nós, as que agora deveríamos ser elas, fomos respondonas, não soubemos ouvir…Não soubemos nos apoderar da magia de contar, simplesmente porque nossos ouvidos se fecharam, permaneceram teimosamente surdos diante da graça de ouvir.”
Repórter: Miriam, o que é ser uma mulher Negra Afro-Latino-Americana ?
Miriam: “Ah! Esta América Ladina. Ainda nos roubam o fígado, os filhos, nos roubam a sorte, a morte, o sono…”
Entrevistadas:
Beatriz Nascimento
Lélia González
Maria Carolina de Jesus
Georgina Herrera
Miriam Alves
*Todos os trechos citados estão referenciados abaixo:
- Beatriz Nascimento, em trechos dos poema “Antirracismo” (1990) e “Insegurança” (1988)
- Lélia González, em trechos do livro “Por um Feminismo Afro-latino-Americano” (Zahar editora)
- Carolina Maria de Jesus, trecho do livro “Quarto de despejo”.
- Georgina Herrera, trecho (em tradução livre) do poema “Oriki a las Negras Viejas de Antes”
- Miriam Alves, trecho do poema “Salve América!”
*Esta é uma crônica literária que utiliza recursos da liberdade poética, ficando descompromissada com qualquer fato real.
Taylane Cruz cresceu na interiorana cidade de Capela (SE) e, atualmente, reside em Aracaju. Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, é autora dos livros Aula de Dança e Outros Contos (2015), A pele das coisas (2018), O sol dos dias (2020) e Para a hora do coração na mão (2022). Já colaborou com diversas antologias pelo país e possui contos publicados em revistas de circulação nacional como ÉPOCA e PALAVRA. É cronista na Revista RUBEM.