
Criado em 2023, o evento Insubordinadas nasceu como espaço de celebração da arte e da expressão livre na Casa Corpo, um ambiente que há três anos acolhe aulas de pole dance, flexibilidade, circo e outras manifestações artísticas. O festival, que reúne uma Mostra Coreográfica e uma Feira de Arte voltada para mulheres, pessoas trans e não-binárias, não se limita a uma programação cultural: é um ato político e um espaço de pertencimento.
Em 2025, o Insubordinadas acontece nesse final de semana, dias 8 e 9 de março reunindo arte, movimento e resistência. No dia 8, a Mostra Coreográfica na Casa Corpo estará aberta para todes que quiserem se expressar dançando, e no dia 9, no Che Music Bar, a Feira de Arte será um espaço para mulheres, pessoas trans e não-binárias exporem e venderem suas produções, que vão do artesanato à culinária, passando por música e poesia.
A Mangue Jornalismo conversou com Laíce Cardoso e Elise Azevedo, idealizadoras da Casa Corpo e do evento, e com Marisérgia Pereira, criadora do mural ‘Insubordinadas’ (que ilustra o quintal da Casa Corpo e dá nome à mostra) para entender o impacto da iniciativa, as motivações e o papel da arte como ferramenta de resistência e transformação.
Mangue Jornalismo (MJ) – A Casa Corpo já tem uma trajetória consolidada como um espaço de arte e movimento. Como surgiu a ideia de criar o Insubordinadas e o que ele representa dentro dessa caminhada?
Marisérgia Pereira (MP): O Insubordinada foi criado em 2023 durante a inauguração do quintal da Casa Corpo quando apresentamos a exposição do mural que leva esse título, juntamente com uma coletiva de duas talentosas artistas sergipanas: Larissa Vieira e Sônia Mellone. Na época, nosso intuito foi não só comemorar a finalização da pintura, mas também celebrar todas as mulheres que participaram do processo de nascimento desse espaço. O evento contou com a participação de marcas de mulheres empreendedoras sergipanas e uma apresentação de pole dance, criando um ambiente vibrante e acolhedor. O projeto Insubordinadas representa um marco na trajetória da Casa Corpo, pois homenageia as mulheres sertanejas e suas lutas, promovendo um espaço seguro para que todas possam se expressar livremente. É uma celebração da força e autenticidade feminina, alinhando-se perfeitamente com nossa missão de fomentar a arte como forma de transformação e empoderamento.
Laíce Cardoso (LC): Desde a época da concepção da ideia da Casa Corpo queríamos unir várias manifestações culturais e políticas. Sempre procuramos privilegiar o trabalho feminino, buscando mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ como artistas, professoras e profissionais como engenheiras e arquitetas. Além disso, buscamos sempre deixar claras nossas raízes como nordestinas, região que é culturalmente “deixada de lado” no imaginário nacional. Isso culminou na nossa parceria com a Marisérgia para criação do mural em nosso quintal.
Elise Azevedo (EA): Sempre conversamos com ela sobre como ser mulher também é um espaço de desafio perante tantas regras sociais, ainda mais numa atividade tão estigmatizada como o pole dance. Demanda coragem sustentar esse desafio, demanda energia, e demanda comunidade. A Casa Corpo valida e apoia bater de frente aos padrões e estigmas. Em 2023 o mural foi inaugurado, com o evento homônimo nascendo, junto de uma exposição de arte e uma semana de oficinas de dança. A cada ano, ele vai crescendo e se articulando junto de outros eventos do estúdio para difundir a arte de Aracaju por vários meios.
MJ – O evento se propõe a ser um espaço de expressão para mulheres, pessoas trans e não-binárias. Como vocês enxergam o papel da arte na construção de autonomia e identidade para esses grupos?
MP: O evento Insubordinadas se propõe a ser um espaço inclusivo e acolhedor, onde mulheres, pessoas trans e não-binárias possam se expressar livremente. Acreditamos que a arte desempenha um papel fundamental na construção de autonomia e identidade para esses grupos, pois oferece uma plataforma para que suas vozes sejam ouvidas e suas histórias sejam contadas. A arte é uma forma poderosa de autoafirmação e resistência. Por meio dela, as pessoas podem explorar suas vivências, desafiar estereótipos e criar conexões significativas com outras. Em um mundo onde muitas vezes enfrentam discriminação e silenciamento, ter a oportunidade de se expressar artisticamente pode ser transformador. Além disso, a arte promove o diálogo e a empatia, permitindo que diferentes perspectivas sejam compartilhadas e compreendidas. Ao encorajar a diversidade de expressões artísticas, o Insubordinadas contribui para a construção de uma identidade coletiva que valoriza a pluralidade e fortalece a luta por direitos e reconhecimento.
EA: A arte sempre foi uma forma de expressão pra todos os corpos dissidentes, mas seria mentira dizer que todo mundo tem um acesso simples a fazer arte. Arte é altamente subfinanciada e desprezada em escolas, encarada como besteira ou hobbie de pessoas ricas. Muitos artistas fazem arte apesar dessas dificuldades, ainda mais por terem seu trabalho diminuído financeiramente. Então além do acesso ser difícil, permanecer na arte também é.
LC: Cada pessoa tem uma vivência e particularidades e artistas mulheres e LGBTQIAPN+, nesse recorte do mercado artístico não escapam das garras do machismo e lgbtfobia, e são muito subrepresentadas em eventos. Queremos ver essas artistas mostrarem sua criatividade, emoções, história, de toda forma que quiserem, além de serem devidamente remuneradas por isso.

MJ – A Mostra Coreográfica e a Feira de Arte trazem um formato que incentiva tanto a performance quanto a economia criativa. Como vocês avaliam a importância desses espaços para a valorização da produção artística independente?
MP: A Mostra Coreográfica e a Feira de Arte são iniciativas fundamentais para a valorização da produção artística independente, pois oferecem visibilidade e espaço para artistas que, muitas vezes, não têm acesso a plataformas tradicionais. Esses formatos incentivam tanto a performance quanto a economia criativa, criando um ambiente onde a arte pode ser apreciada, discutida e comercializada. A Mostra permite que artistas apresentem suas criações em um cenário que valoriza a inovação e a experimentação. Isso não só enriquece o repertório cultural da comunidade, mas também fortalece as redes de colaboração entre artistas, promovendo um intercâmbio de ideias e experiências. Já a Feira de Arte é uma oportunidade incrível para empreendedores criativos exporem seus trabalhos e interagirem diretamente com o público. Ao apoiar marcas independentes, estamos contribuindo para uma economia mais sustentável e diversificada, onde a arte não é apenas uma forma de expressão, mas também uma fonte de renda. Esses espaços são essenciais para fortalecer a identidade artística local e promover uma cultura que valoriza a diversidade e a originalidade. Acreditamos que ao proporcionar essas oportunidades, estamos ajudando a construir um futuro mais inclusivo e vibrante para todos os artistas.
LC: O Insubordinadas tem um custo simbólico para inscrição de artistas, usado para custear o evento. Tanto a Mostra, quando a Feira possibilitam a novas pessoas conhecer o trabalho dessas mulheres e pessoas LGBTQIAPN+, e, assim, sua expressividade e história. Muitas vezes falta um espaço receptivo e acessível para produções artísticas, em vários ramos. Como nós mesmas somos artistas, entendemos percalços que surgem, e queremos facilitar ao máximo a participação e produção artística local.
MJ – Muitas vezes, corpos dissidentes encontram barreiras para ocupar espaços artísticos. Quais desafios vocês enfrentam para manter a Casa Corpo um ambiente acolhedor e acessível?
EA: O maior desafio é principalmente financeiro. No sistema que vivemos, patrimônio é o que possibilita muita coisa, e abre portas. Manter uma empresa eticamente, em conjunto com nossos valores e objetivos de movimentação cultural e de criação de comunidade, além de cuidar de marketing, operacional, finanças, é bem custoso. Isso infere também que valores de danças e arte não são viáveis para todes, para que instrutores sejam remunerades de forma justa, e que alunes possam participar sem custos vultosos. Em eventos ocorre o mesmo, já que alugueis de espaços, materiais e etc têm valor alto, e patrocínios são escassos. É difícil encontrar empresas que apoiem a arte independente, ainda mais vindo de um estúdio de pole dance pequeno e liderado por mulheres.
MJ – O nome Insubordinadas carrega uma forte carga simbólica. Para vocês, em que aspectos a arte e a dança podem ser formas de insubordinação e resistência?
MP: O nome Insubordinada é celebração à força feminina, retratando uma mulher de peito nu em meio a folhagens nativas do nordeste. Seu olhar penetrante reflete tanto vulnerabilidade quanto poder, simbolizando a resistência das mulheres sertanejas e sua insubordinação ao sistema patriarcal. Dentro do estúdio de pole dance, essa obra se transforma em um manifesto de liberdade e autenticidade. Assim como as plantas endêmicas de nossa região e de nosso imaginário, se adaptam e prosperam, as dançarinas expressam sua força e graça. “Insubordinada” inspira cada uma a abraçar sua individualidade e desafiar normas sociais que tentam silenciar suas vozes. Este espaço se torna um território de resistência, onde a arte e o movimento se entrelaçam em uma celebração da força interior das mulheres, desafiando não apenas as expectativas de gênero, mas também as estruturas opressoras que buscam limitar sua expressão.
LC: eu nunca fui muito uma pessoa tranquila com relação a imposições, especialmente sociais. Sempre fui muito inquisitiva e queria entender o porquê das coisas, como elas funcionavam e era muito vocal se eu não gostava. Na adolescência essa parte de mim ficou adormecida numa vontade enorme de me encaixar, de me incluir em grupos que na verdade eu nem me identificava tanto, mas que sentia que tinham mais aceitação. Não funcionou nadinha. Quando comecei a fazer pole, em 2016, eu tinha 23 anos, uma profissão extremamente tradicional e uma grandíssima insatisfação comigo mesma. O pole e sua comunidade me deram acolhimento e confiança para poder voltar a me expressar, questionar e receber suporte nos meus desconfortos, micros e macros. Minha trajetória no pole acabou sendo um resgate dessa minha criança, e um acalento pra adolescente que tinha tanto medo, mas admirava muitas coisas que hoje eu sou. Nem todas essas coisas são bem aceitas, como sensualidade feminina, mas eu sou teimosa.
EA: Há 13 anos me apaixonei perdidamente por mover o corpo em uma barra vertical, mas principalmente por quem eu sou quando estou dançando e ensinando. Na época eu não sabia que ia aprender e desaprender tanto sobre mim e meus processos nesses anos seguintes. Aprendi com o pole a fazer do meu corpo um lugar receptivo pra minha existência. Como mulher, sei que isso nunca nos foi ofertado, muito menos bem visto. Somos podadas e repreendidas severamente por sermos quem somos, usar nossa expressão e sabedoria como ferramentas de luta e resistência. Apesar de ter sido criada com uma liberdade e apoio incrivelmente deliciosos, a realidade de outras mulheres mexia e ainda mexe comigo nessa vontade de subverter o sistema, e eu queria que o máximo de mulheres pudesse vivenciar essa força pelo menos uma única vez. Não consigo mais imaginar a minha vida sem essa potência, já que há anos sou completamente apaixonada por todas as expressões da minha arte. Abrir a casa corpo não foi fácil, não é fácil, mas com ela tudo é muito mais interessante e cheio de cor.

MJ – Com dez anos de Casa Corpo e agora mais uma edição do Insubordinadas, quais os próximos passos para o espaço e para o evento? Há planos de expandir ou fortalecer ainda mais essa rede?
LC: Temos muitos planos pro crescimento do Insubordinadas, nos juntando a entidades militantes para articular ainda mais o evento, assim como criar uma equipe organizadora para ajudar. Quanto à Casa Corpo, nunca tivemos tanto trabalho como agora (riso). Ser artistas empresárias trouxe muitos aprendizados, e com certeza vai continuar trazendo. Queremos viabilizar o crescimento do estúdio, e manter nossos valores pessoais intactos. Contamos com muita gente nos dando apoio e suporte, e somos muito gratas.
EA: Ainda assim, é importante lembrar de valorizar os espaços culturais de Aracaju, assim como organizadores de eventos independentes. Não é um trabalho fácil, mas amamos fazê-lo. Queremos que o Insubordinadas atravesse o público aracajuano amante de arte e cultura, e que se torne um ponto de apoio de artistas locais.
