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Há três anos, sem-tetos lembram a violência da desocupação que deixou 70 famílias desabrigadas em plena pandemia. A luta continua na Ocupação João Mulungu

MAIARA ELLEN da Mangue Jornalismo (@maiara.ellen)

O dia 23 de maio de 2021 ficou gravado na memória dos sem-teto que ocupavam o prédio vermelho azulejado na Avenida Ivo do Prado (popularmente conhecida como rua da frente), no centro de Aracaju.

A reintegração de posse realizada pela Polícia Militar, naquele domingo, com o uso de bombas de efeito moral e até mesmo um trator para derrubar o muro do edifício, foi marcada por violência e tumulto. Em plena pandemia de Covid-19, enquanto a cidade ainda dormia, a operação para despejar os moradores teve início, ainda na madrugada.

A ocupação, batizada com o nome do histórico lutador João Mulungu, fundada em novembro de 2020 e organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), tornou-se o lar para, segundo o próprio movimento, mais de setenta famílias, compostas majoritariamente por mulheres, idosos e crianças, após o imóvel permanecer abandonado por mais de seis anos.

A partir de hoje, o Mangue Jornalismo traz uma série de reportagens sobre a história e a situação atual da luta e resiliência deste movimento pelo direito à moradia na capital sergipana, que no dia 23 completa três anos de um truculento despejo.

A operação deixou a Avenida Ivo do Prado ficou bloqueada por cerca de 12 horas (FotoAscom DPE/SE)

Bruna Santos, estudante e moradora da ocupação, relembra as agressões ocorridas durante o período que marcou o ápice da pandemia de Covid-19. “Foi uma situação muito intensa. Eu estava cuidando do bebê de uma moradora que havia adoecido e precisou passar a madrugada no hospital. Quando levantei para ir até a janela, vi a polícia chegando.”

“Aquela reintegração de posse foi uma tentativa terrorista. Significou a ação violenta e truculenta do capital contra os pobres, os trabalhadores. Eu me senti numa guerra, porque realmente foi assim”, recorda Allana do Nascimento, coordenadora da Ocupação.

”Eu comecei a morar na Ocupação durante a pandemia” disse Bruna Santos, arqueóloga em formação pela UFS (foto Henrique Maynard)

A retirada das famílias da João Mulungu foi determinada pelo juiz Isaac Costa Soares de Lima, da 9ª Vara Cível de Aracaju, atendendo ao pedido da Construtora Cosil Construções e Incorporações, de propriedade da família de Danusa Silva, esposa do prefeito Edvaldo Nogueira (PDT).

A decisão foi tomada em desacordo com a orientação da Dra. Elvira Maria de Almeida Silva, Corregedora Geral de Justiça do TJSE, que havia recomendado a suspensão das remoções forçadas. Esta recomendação, emitida em 25 de março de 2020, visava conter a disseminação da pandemia de Covid-19.

Os moradores da João Mulungu não foram notificados antecipadamente da desocupação. No Brasil, a reintegração de posse é regulamentada pelo Código de Processo Civil (CPC), Lei nº 13.105/2015, que estabelece os procedimentos legais para a retomada da posse de um imóvel, entre eles, que o ocupante ilegal (réu) será citado para apresentar defesa no prazo de 15 dias.

“Como a gente não tinha recebido a ordem de despejo, não estávamos preparados. Então tivemos que resistir, do começo ao fim. A gente segurou o portão para eles não entrarem. Colocamos cadeiras nas escadas para tentar atrasar a subida, porque eles estavam vindo com muita violência. A gente queria desacelerar porque queria pelo menos a presença do nosso advogado”, destaca Bruna Santos.

Sobre a desocupação, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP) e a Polícia Militar indicaram que os questionamentos sobre a ação deveriam ser realizados através da Justiça.

De acordo com a Defensoria Pública do estado (DPE), as famílias da Ocupação são de extrema vulnerabilidade social. (Foto: MLB)

Dados sobre moradia em Sergipe

Em uma situação de urgência habitacional, a Ocupação João Mulungu reflete o cenário do déficit habitacional em Sergipe. Segundo dados de 2019, divulgados pela Fundação João Pinheiro (FJP) que utiliza dados de 2019 do IBGE e do Cadastro Único, o déficit habitacional no estado estaria na ordem de 10%. Esta porcentagem está subdividida em: ônus excessivo com aluguel (5,4%); domicílios improvisados (2,4%); famílias conviventes (1,6%); domicílios rústicos (0,6%) e domicílios cômodos (0,1%). Estes números identificaram que cerca de 24 mil domicílios estariam classificados como habitações precárias, sendo 4.842 domicílios rústicos, como habitações em prédios em construção, viadutos, tendas, barracas.

Em Sergipe, há uma ausência de dados confiáveis produzidos regularmente sobre a população sem-teto para dimensionar e abastecer a formulação de políticas de moradia eficazes. Nem o governo do estado nem a prefeitura de Aracaju realizam levantamentos baseados em censo.

Entretanto, segundo o relatório do Observatório das Metrópoles utilizando dados do Censo Demográfico de 2022 do IBGE, na Região Metropolitana de Aracaju, existem aproximadamente 80 mil domicílios desocupados, dos quais 23 mil são utilizados ocasionalmente, enquanto cerca de 57 mil estão permanentemente vagos.

A resistência

”João Mulungu é um herói, é o Zumbi Sergipano. A força dele representa a força do Povo.” disse Allana Nascimento (foto Henrique Maynard)

Os moradores da João Mulungu contam que a ocupação era coordenada coletivamente e as tarefas divididas, desde o cuidado das cozinhas comunitárias até a manutenção de uma biblioteca com atividades voltadas para a alfabetização. Além disso, havia uma portaria com rodízio de vigilância para garantir a segurança, o que permitiu que os moradores fossem alertados da chegada dos policiais.

“Eu acho que parte dos policiais não entendia o que estava acontecendo. Acho que eles não esperavam lidar com pessoas normais, trabalhadores. Eles chegaram com sangue nos olhos, porque achavam que iam encontrar um monte de vagabundos, porque é o que dizem de quem ocupa um prédio”, narra Bruna. De acordo com a estudante, a chegada dos PMs no interior da Ocupação foi marcada por muita violência.

“Um policial levantou o cassetete para bater no meu filho de dois anos e em mim. Até hoje, ele tem trauma de polícia”, recorda a mãe de uma criança neurotípica, Luzi Santos, que estava grávida quando a reintegração aconteceu.

“Eles foram em direção ao quarto onde estavam as mulheres e crianças, fizeram um buraco e jogaram spray para sufocar”, lembra Bruna.

“Eles trataram as famílias, pessoas sem-teto, trabalhadoras, mães, senhoras e crianças como delinquentes de alta periculosidade. Foi muito humilhante. Jogaram bomba de efeito moral, bomba de gás. Uma bomba daquela treme tudo… Era o ódio deles contra a gente”, destaca Allana.

A prisão

Durante a ação, sete residentes da Ocupação e ativistas do MLB foram detidos. Os homens foram encaminhados à 4ª Delegacia Metropolitana (DM), enquanto as mulheres foram conduzidas à 2ª DM. Ainda segundo informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP/SE) na época, além das detenções, foram confiscadas facas e uma arma de fogo.

A prisão

Durante a ação, sete residentes da Ocupação e ativistas do MLB foram detidos. Os homens foram encaminhados à 4ª Delegacia Metropolitana (DM), enquanto as mulheres foram conduzidas à 2ª DM. Ainda segundo informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP/SE) na época, além das detenções, foram confiscadas facas e uma arma de fogo.

 “Nossos companheiros dormiram na frente da delegacia para garantir nossa integridade física” lembra Allana Nascimento (foto Henrique Maynard)

Allana do Nascimento foi uma das três mulheres detidas e descreve a operação como “extremamente truculenta”, mencionando que foram jogadas como “sacos de batata” dentro do camburão da polícia. “As algemas estavam extremamente apertadas, causando dores nos braços e inchaço.”

Ela relatou que, ao chegarem à delegacia, foram confrontadas com comentários intimidatórios por parte dos policiais. “Um policial disse ‘vocês estão presas por uma questão ideológica’ e o outro falou que a gente ia ‘cair na pica’.”

Allana e as outras mulheres ficaram presas por três dias e reclamaram da situação precária. “Não tínhamos acesso à água potável, ficamos várias horas sem acesso à alimentação. Só conseguimos nos alimentar depois que os vereadores da época chegaram para nos acompanhar. Até mesmo itens de higiene básica eram escassos.”

Moradoras da Ocupação realizaram um ato pela liberdade dos detidos na 2ª DM (Foto: Henrique Maynard)

A detenção dos moradores da João Mulungu se estendeu por dois dias. Na manhã do dia 24, membros do MLB e moradores da Ocupação realizaram um protesto em frente à Delegacia, exigindo a libertação de todos os detidos durante a reintegração. No entanto, de acordo com Allana, a resposta dos policiais foi colocá-los em uma cela ainda pior.

A audiência de custódia das moradoras aconteceu mais tarde do mesmo dia. Na ocasião, o juiz Pedro Rodrigues Neto concluiu que não havia justificativa para manter a prisão e liberou os sem-teto.

O pós

Em nota, a Secretaria da Assistência Social de Aracaju informou que, antes da desocupação, a prefeitura chegou a identificar o perfil das cerca de 65 famílias ocupantes do imóvel, as quais, posteriormente, foram conhecidas pessoalmente pela equipe da Assistência Social do Município, onde, para surpresa, novos integrantes passaram a participar da ocupação. Sobre as famílias desabrigadas, a prefeitura declarou ter atendido 28 famílias, sendo que 25 foram direcionadas a abrigos municipais e três foram encaminhadas para a casa de familiares.

Três anos depois, o número de moradores da Ocupação foi reduzido consideravelmente. De acordo com Allana, alguns moradores se dispersaram por medo.

Atualmente, a João Mulungu é composta por cerca de trinta famílias, a maioria delas também formada por mulheres, mães solteiras, idosos e crianças. Essas famílias residem na nova habitação da João Mulungu, situada em um prédio na Rua Lagarto, no centro de Aracaju, que pertence à Universidade Federal de Sergipe e está desativado há quase dez anos.

Apesar da mudança de endereço, os moradores seguem sem apoio governamental em uma rotina de conflitos, ameaças, resistência e precariedade. Enquanto isso, o prédio vermelho azulejado da Avenida Ivo Prado segue vazio, sem vida, murado, acumulando lixo e sem cumprir qualquer função social. Essa realidade é o que iremos conferir em nossa próxima reportagem.

*Colaborou com a reportagem: Cristiano Navarro

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