
São Cristóvão, 21 de maio de 2025. A cerimônia de formatura do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) escorrega noite adentro no auditório da Didática VII. Por volta das 19h tem início o rito do segundo bloco de formandas e formandos. Dentre as 19 becas do curso de Pedagogia, a toga branca é um risco de giz em meio ao mar negro de vestes talares. A colação da Ìyàwó de Exú Pombotilha estava prestes a começar.
Gleidiane Mascena de Assis– por ela é só Gleid mesmo – lutou e conquistou o direito à cerimônia coletiva de colação de grau em vestes brancas, em respeito ao preceito religioso que estabelece o candomblé. Entretanto, essa conquista não foi nada fácil. A luta pelo preceito foi até o último passo de sua colação. A violência se esconde na sutileza dos gestos.
Logo na entrada do auditório da UFS, na fila de assinatura de presença, Gleid recebe uma chamada para o canto da responsável pelo cerimonial. “Eu vou ficar aqui, não vou pra canto nenhum”, afirmou. “E você tem algum processo?” Mais uma arguição. “Tenho, e foi deferido”. “Pois não me passaram nada”, a outra retrucou. “Pois é, estou aqui”, fincou a formanda em beca branca com detalhes em azul claro, cor do curso de Pedagogia, acompanhada da filha Naila.
“Agora é hora de quebrar o protocolo”, avisou em tom de brincadeira a vice-reitora, professora Silvana Bretas pouco antes da chamada dos formandos e formandas. Dito e feito. O cerimonial anunciou: “Gleidiane Mascena de Assis”. Agora, já era.
Acompanhada dos sobrinho Miguel, de 6 anos, e Ana Alice, de 3 anos, ela subiu ao palco, parou antes de cumprimentar a mesa, pousou os joelhos no tablado do auditório, bateu seus fios de conta no chão, encostou três vezes no peito e na testa em sinal de reverencia e seguiu para receber seu canudo, devidamente paramentada. Protocolo rompido, saudação executada com sucesso.

Além da UFS, a Mangue Jornalismo conseguiu levantar alguns episódios em universidades brasileiras: na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Universidade da Região da Campanha (Urcamp) e na Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDpar).
O caso emblemático ocorreu na UFSC em maio de 2024, quando a estudante Cynthia Luiza Ribeiro do Amaral, filha de Oxumarê, subiu no palanque de beca branca e fez o juramento regimental. A estudante foi alvo de ataques nas redes sociais e sofreu graves ameaças.
Por trás da beca
Gleid tem 33 anos, nascida e criada em Aracaju. Mais velha de três irmãos, aprendeu as primeiras letras com o pai, brincando de fazer vogal, consoante e números com massa de pão e farinha de trigo na padaria onde trabalhava. Sua mãe, marisqueira desde os 10 anos de idade, cursou até a segunda série primária. Trabalhava o dia inteiro e estudava a noite, até que não conseguiu mais frequentar as aulas. Neste momento Gleid, que já cursava o Ensino Médio, insistiu para que a mãe concluísse a alfabetização começou a introduzir metodologias de ensino dentro de casa. Foi neste momento em que ela escolheu pela Pedagogia.

Iniciada em julho de 2024 no Abassá Oxumarê, Gleidiane não tinha se dado conta que a conclusão de seu curso coincidiria com o preceito iniciático. O primeiro ano de iniciação carrega uma série de restrições alimentares, comportamentais e de vestimenta, sobretudo nas cores preta e vermelha. Como parte de um processo de renascimento espiritual, o corpo do iniciado e iniciada demanda cuidados muito detalhados.

A batalha pelo preceito
Orientada por professores e colegas, Gleid encaminhou ofício ao Departamento de Educação (DED) em 18 de março solicitando a “quebra de protocolo”. A resposta veio da Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) em 22 de abril, negando o pedido. De acordo com o documento, a Procuradoria da UFS alegara não haver previsão legal para quebra de protocolo, além de apresentar alternativas que dispensavam a beca preta, como a colação em separado ou não presencial. Nenhuma das alternativas interessava a Gleid.
“Eu não queria colar grau em separado, é um momento de conclusão de curso que foi conquistado com muita luta. Eu queria viver este momento com meus colegas e com minha família, e não desisti”, desabafa Gleid. A batalha estava em curso.
Apesar da liberdade religiosa estar prevista no Artigo nº5 da Constituição Federal e na Lei de Diretrizes de Base da Educação (LDB), a “previsão legal” está proscrita em uma Resolução interna da instituição. Tanto a Lei nº 70.274/72, que aprova as normas do cerimonial público e a ordem geral de precedência, quanto a Lei nº 5.700/71, que dispõe sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais, não estabelecem normas específicas para trajes. Não à toa, duas leis herdadas da ditadura empresarial militar.

Tradição eclesiástica feudal e universidade “laica”
“Denomina-se veste talar (do latim, veste longa que desce até a altura dos calcanhares) a vestimenta preta, longa, que tem o objetivo de destacar as pessoas que as utilizam das demais.” A Resolução nº 50/2014/ CONSU que estabelece Normas de Cerimonial da UFS é categórico e reto. “O uso de vestes talares no cerimonial universitário preserva a tradição que remonta às práticas seculares adotadas pelas Universidades.” Mas de onde surgem estas “práticas seculares”?
A monografia “A cerimonia de colação de grau: misticismo, violência e ilegalidade”, de Gerson Alves de Souza, recupera a origem dos ritos de formatura, encalacrado com o clero católico das cidades feudais europeias. Sob a bibliografia de Jaques Le Goff e Jaques Verger, o estudo remonta a tradição a partir da Universidade de Bologna e Universidade de Paris, entre os Séculos XI e XIII, quando da obrigatoriedade das roupas eclesiásticas e atrelamento dos estudantes ao clero, com protagonismo da Universidade de Sorbonne. Não é à toa “veste talar” se assemelha com demais togas do clero, como a veste de um cardeal ou um bispo.
Esta tradição irradiou para as demais universidades de referencial europeu e chegou ao Brasil a partir da Universidade de Coimbra, em Portugal.
“A nossa universidade sempre foi eurocentrada, ocidentalizada, judaica e cristã. Nós já tivemos várias pessoas de candomblé, de umbanda, de quimbanda, que na verdade foram silenciadas e apagadas na sua visão de mundo dentro da dimensão do sagrado. Houve um processo de apagamento, de atravessamento e de negação”, define Fernando Aguiar, babalaxé e professor do Departamento de Museologia da UFS.

Virada de chave na universidade
A partir de uma série de diálogos e negociações, a coisa foi mudando de figura na UFS. A professora Bartira Telles, orientadora de Gleid, só tomou conhecimento da necessidade dela quando esta já havia encaminhado por duas vezes a solicitação de quebra de protocolo, com respostas negativas.
“Foi então que ela me pediu ajuda. A partir de orientação de colegas nós encaminhamos um novo pedido ao cerimonial, mais uma vez negado. Foi aí que entramos em contato direto com a administração”, conta Bartira.

A professora Marta Élid Amorim, pró-reitora de Graduação, explica a mudança de entendimento sobre a questão nos últimos anos a partir de um caso anterior ao de Gleid que se estendeu pelos últimos três períodos da universidade. A estudante citada não fora detectada pela reportagem.
“Já existia um processo anterior na PROGRAD, de uma estudante de outro curso. Há três períodos esta outra estudante tenta fazer a quebra de protocolo, e o entendimento da instituição foi mudando. Como esta primeira aluna não concluiu o TCC, o processo não andou. A partir das tentativas contínuas desta primeira aluna, a Procuradoria da Universidade solicitou documentos do templo em que ela estaria inserida, assim como do responsável religioso. Assim como oferecemos a possibilidade para esta aluna, oferecemos para a Gleidiane”, informa a professora Marta.
Documentação devidamente apresentada, pé na tábua. No dia 7 de maio, a PROGRAD encaminhou ao cerimonial a mudança de entendimento, garantindo assim a quebra de protocolo. “A gente não respeita os adventistas que guardam o sábado? A gente precisa de um procedimento que respeite as individualidades quando isso é possível. Os procedimentos devem ser equitativos”, analisa da pró-reitora.

Enfim, a festa
A emoção tomou conta ao vestir a beca produzida especialmente para a ocasião, dois dias antes da cerimônia. “Uma vestimenta que traz tanta história e força, construída pelas mãos do axé”. A confecção ficou por conta da Abami, loja especializada em roupas e artigos para religiões de matriz africana e moda afrobrasileira.
“Além da beca branca representar a luta contra o racismo religioso e a intolerância, promovendo a inclusão e a diversidade religiosa, ela é um símbolo de esperança por um mundo mais justo e inclusivo onde todas as crenças sejam acolhidas e valorizadas”, falou Raysa Gomes, responsável pela loja.
“Ficaria surpreendida se a ação dela fosse outra”, disse Cícera Maria da Silva, Mametu Susunigan. Ela é responsável pelo Abassá Oxumare há uma década e responsável pela iniciação de Gleid. “Estou muito orgulhosa com a ação dela, por saber direitinho que a minha iyawo aprendeu direitinho o preceito no runcó (local onde ocorre o rito de iniciação). Sergipe precisa saber que a minha iyawo é uma das primeiras a usar uma beca branca, em respeito à sua religião”.

Abre caminho
Na cosmologia iorubá, Exú representa a abertura de caminhos, a comunicação, o início do rito, a humanidade. E não, Exú não é o diabo cristão. Foi justamente uma mulher iniciada em Exú Orixá Pombotilha a continuar abrindo caminhos para rever tradições e ritos e enfrentar o racismo religioso e o racismo institucional. “Eu não ando sozinha. Que este seja um passo para todo o nosso povo, para que haja garantia de diversidade e respeito para todo mundo”, afirmou Gleid.
“Não queremos que esta quebra de protocolo seja um caso isolado. Precisamos construir um protocolo junto à comunidade acadêmica que garanta a diversidade e os direitos de todos os segmentos”, reforça a pró-reitora Marta Élid Amorim.
A professora Bartira Telles não esconde o orgulho de sua orientada: “Uma estudante periférica em um curso periférico. Uma mulher negra que tem uma história de muita luta, que não abre mão de se formar com sua turma, muito menos de quebrar o seu preceito como iyawo recém iniciada. Ainda temos um longo caminho no sentido de construção de uma universidade popular.”
“O que se espera é o rompimento destas múltiplas formas de racismo institucional. Não dá pra gente ficar achando que o mundo se resume a uma única concepção. Nós temos alunos, alunas e alunes de diversas concepções de mundo e concepções de sagrado, e essa concepção precisa ser respeitada”, demarca o professor Fernando Aguiar.
Outras Gleid´s existiram e muitas outras virão. As universidades que se preparem.
Veja aqui(1) o as Normas do Cerimonial da UFS
Leia aqui(2) a Declaração para solicitar a quebra de protocolo
Aqui(3) a Declaração da Abassa Oxumare
Leia aqui(4) o despacho negando a quebra de protocolo
Veja aqui(5) o despacho da Prograd