Um estudante da Universidade Federal de Sergipe (UFS) afirma ter sido vítima de injúria racial por parte de um professor durante uma aula. A situação foi tão grave que, em protesto, os alunos pediram o trancamento da disciplina. Na mesma UFS, ontem, 9, a reitoria também teve que assinar um acordo judicial se comprometendo a repor 41 vagas que deixaram de ser destinadas à população negra em concursos para professor.
“Ele disse que, por causa das minhas características físicas, eu reprovaria na disciplina, independentemente de frequentar as aulas ou não”, conta Rafael Mota Dantas, um estudante negro do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ele preferiu não aparecer em imagem. Esse caso, que está sendo tratado como injúria racial, ocorreu dentro de uma sala de aula no campus de São Cristóvão diante de vários outros alunos. Todos estavam fazendo a disciplina Fundamentos de Economia, que é obrigatória da grade do curso de Serviço Social, e era ministrada por Tácito Augusto de Farias.
A situação foi considerada tão grave que levou praticamente toda a turma a pedir o trancamento da disciplina, em solidariedade a Rafael. Os estudantes se recusaram a continuar tendo aulas com Tácito Farias e foram remanejados para outro docente.
Entretanto, o caso não foi encerrado. Rafael Dantas registrou denúncia contra o professor na Delegacia de Atendimento à Mulher e demais Grupos Vulneráveis (DAGV), no bairro Eduardo Gomes, em São Cristóvão, e também na Ouvidoria da UFS.
Na denúncia, o estudante relata que tudo aconteceu no dia 21 de agosto durante a aula de Tácito Farias. O aluno disse que o professor já tinha feito uma série de comentários de cunho preconceituoso. “Ele disse que introduzia objetos em cabelos crespos desde a época da escola, e que a caneta afundaria no meu cabelo. Logo em seguida, ele pediu que um colega meu, que estava ao meu lado, utilizasse a caneta para mostrar para a turma inteira que ela afundaria no meu cabelo”, detalha Rafael. O aluno não atendeu ao pedido de colocar a caneta no cabelo de Rafael.
Segundo a denúncia, os ataques do professor teriam chegado ainda ao ponto dele afirmar que o aluno não seria aprovado na disciplina por conta “das características físicas” que possui.
Rafael revela que ficou tão constrangido que, em um primeiro momento, sequer conseguiu responder às injúrias sofridas na sala de aula. Ele afirma que essa situação lhe afetou emocionalmente, o desmotivou a frequentar a universidade e, por um tempo, o deixou desconfortável em usar o cabelo solto.
O estudante que denuncia o caso de injúria racial diz que outros comentários de cunho homofóbico, misógino e racista já haviam sido presenciados em sala de aula.
O Centro Acadêmico de Serviço Social Maria Anízia Gois de Araújo (Cassmaga) e o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFS tomaram conhecimento do caso e saíram em defesa de Rafael, com a organização de ato para colagem de material gráfico com uma foto do professor e veiculação de uma nota de repúdio. Também participaram das ações o Levante Popular da Juventude.
Como resposta a essas ações, o professor encaminhou uma notificação extrajudicial solicitando o fim da exposição do caso e, posteriormente, as entidades estudantis foram notificadas com uma medida judicial em que se exigia a retirada das publicações que tratavam do suposto caso de injúria racial nas redes. A determinação foi atendida.
Vale destacar que a ação judicial do professor não tinha o objetivo de julgar se são procedentes ou não as denúncias de injúria racial, mas de proteger previamente a imagem do acusado até que a denúncia feita pelo estudante seja devidamente apurada pelos órgãos competentes.
Cassmaga e DCE alegam censura e omissão da UFS
Diante do processo sofrido, a vice-presidente do DCE e também estudante de Serviço Social, Fernanda Teles, lamenta o que considera uma tentativa de calar a força de quem denuncia o caso. “Sabíamos que expor essa questão publicamente traria questionamentos, mas estávamos dispostos a enfrentar as consequências, porque sabemos que denunciar o que ocorreu era a coisa certa a fazer. Por isso não temos medo”, ressaltou Fernanda.
Ela conta ainda que outra ação do professor para se contrapor às denúncias realizadas teria sido espalhar cartazes pela universidade com fotos dele na adolescência. Nesses registros, Tácito Farias aparece com um cabelo crespo. Para Fernanda, o objetivo foi descredibilizar a acusação.
A Mangue Jornalismo entrou em contato por email com o professor acusado e através do Departamento de Economia, para saber a versão dele sobre o relato de injúria racial e outros comentários preconceituosos. Também quis saber o processo contra as entidades estudantis e confirmar se foi ele quem cartazes com fotos na adolescência. O professor não respondeu até o fechamento da reportagem. Caso ele se pronuncie, o texto será atualizado.
A estudante Shirlene Santana, membro do Cassmaga e do Levante Popular da Juventude, conta que, ao tomar conhecimento do suposto caso de injúria racial, procurou o Departamento de Economia, mas lamentou a postura do órgão na condução do caso.
Em um primeiro momento, a chefia do Departamento de Economia teria, segundo Shirlene, determinado um prazo de uma semana para marcar uma reunião sobre o caso e, após a nota de repúdio em conjunto da Cassmaga e do DCE antes de se reunir com o departamento, o chefe do órgão, Fábio Rodrigues de Moura, teria dito estar decepcionado com a postura das entidades.
“O DCE e o Cassmaga, enquanto entidades autônomas, têm o direito de se manifestar e emitir esse tipo de nota sem consultar o departamento. A impressão que temos é que o coordenador queria abafar o caso. Mesmo assim, mantivemos o foco em proteger o estudante e repudiar o ocorrido”, pontuou Shirlene Santana.
A Mangue questionou o Departamento de Economia sobre o relato feito por Shirlene Santana. Em nota, o órgão informou que “o Chefe do Departamento não confirma o relato de ter ficado decepcionado com o Centro Acadêmico de Serviço Social” por emitir nota de repúdio sobre o caso, e alega ainda que “nunca recebeu denúncia formal contra o professor Tácito relacionado a atitudes inconvenientes antes deste caso”. O departamento enviou também a nota pública que divulgou sobre a acusação direcionada ao professor.
O DCE e o Cassmaga apontaram ainda que a UFS não teria dado a devida atenção para o ocorrido. Uma denúncia foi realizada na Ouvidoria da instituição após os alunos relatarem dificuldades para acessar o órgão, como instabilidade no sistema eletrônico que registra ocorrências.
Outro relato de Fernanda Teles e Shirlene Santana é de que o caso teria sido exposto durante uma reunião do Conselho Superior (Consu) da instituição na presença do reitor Valter Joviniano de Santana e ele teria se comprometido a acompanhar a denúncia na Ouvidoria.
O estudante Rafael Dantas também alega não ter sido procurado pela universidade para oferecer nenhum tipo de auxílio, como acompanhamento psicológico.
A Mangue Jornalismo entrou em contato com a Assessoria de Comunicação da UFS para questionar sobre o andamento do processo na Ouvidoria, a promessa do reitor Valter Santana e sobre a alegação de falta de apoio ao estudante, mas o órgão não se pronunciou. A Mangue apurou que a denúncia realmente chegou na Ouvidoria, que abriu processo e encaminhou o caso para a Corregedoria da UFS.
Universidades têm que estar preparadas para lidar com o racismo
O professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e militante do movimento negro Alberto Santos de Paulo esteve em no evento “Estratégias de Combate ao Racismo nos Ambientes Educacionais”, promovido por organizações independentes e realizado na UFS.
Ele ressaltou que a Ouvidoria é a porta de entrada para a denúncia de qualquer violação de direitos nas instituições públicas de ensino superior e que, se houver comprovação, a universidade precisa dar conta de responder a essas demandas.
“É um processo para reforçar valores do Estado Democrático de Direito, mas também culturais e civilizatórios. As universidades têm que estar atentas para que todos os estudantes, independentemente de sua origem ou características, tenham o suporte necessário e não sejam vítimas desse racismo estrutural que persiste na sociedade”, declarou o professor.
Carlos Alberto lembra que atitudes racistas podem acontecer nas universidades brasileiras porque estas surgem numa perspectiva de segregação que marca boa parte da educação no país e que, com a inserção de estudantes de grupos vulnerabilizados nessas instituições, é comum que encontrem ambientes que não são condizentes com a realidade deles.
“Para mim, o principal obstáculo é a adequação da universidade às necessidades plurais do país. As ações afirmativas evidenciam a dificuldade das universidades em compor um conjunto de saberes que contemple a perspectiva desses novos estudantes que ingressam nesse espaço”, afirmou o professor.
UFS terá que repor 41 vagas que deixaram de ser destinadas à população negra na docência
Ontem, 9, foi homologado por sentença da Justiça Federal, um acordo entre o Ministério Público Federal (MPF SE) e a UFS para corrigir distorções no acesso da população negra a cargos de professor(a) efetivo. Com o acordo, serão repostas 41 vagas que deixaram de ser destinadas à ação afirmativa de cotas nos concursos públicos da universidade.
O acordo judicial envolvendo a UFS e o MPF SE também obriga a instituição a realizar reserva adicional de 10% das vagas ao percentual obrigatório de 20% previsto na Lei nº 12.990/14 para candidatos negros nos concursos de professor efetivo. Todas essas informações são oficiais e foram divulgadas pelo MPF SE para toda imprensa.
A reserva vai ser realizada nos editais de concurso para professor de todos os departamentos e campi da UFS até a instalação do novo campus em Estância, quando a universidade passará a reservar um percentual maior (de 40% das vagas) para candidatos negros, concentrando a reposição das vagas nos concursos que realizará para a nova unidade. “O acordo é uma conquista dos movimentos sociais de Sergipe que, ao longo dos anos, vem denunciado falhas na aplicação das cotas para negros em concursos. É o resultado de sua luta por reparação pelas desigualdades causadas pelo racismo”, destaca Martha Figueiredo, procuradora Regional dos Direitos do Cidadão.
O acordo contou com a participação da Educafro Brasil e de Ilzver Mattos, que atuaram como terceiros (amici curiae). “A reparação vem justamente para que a ação afirmativa produza resultados concretos, ou seja, permita de verdade o acesso dos negros a cargos públicos de prestígio na administração federal, contribuindo para superação do racismo estrutural e institucional que ainda existe na sociedade brasileira”, completou a procuradora.
“Com esse acordo, a comunidade afro-brasileira tem mais uma tarefa: ajudar a sociedade, em especial as universidades e institutos federais, a reverem seus equívocos na aplicação das cotas nos concursos públicos”, disse Frei David Santos OFM, diretor executivo da Educafro. (Com informações do MPF/SE)
UFS diz ser “fake news” notícia de burla em cotas raciais nos concursos para docentes
Na noite de ontem, 9, foi inserida uma nota oficial no site da UFS acusando de ser “fake news”, as notícias produzidas a partir da informação do MPF SE sobre o acordo das cotas raciais nos concursos para docentes. Publicamos a nota da UFS na íntegra:
Em relação à notícia inverídica sobre possível burla na aplicação da Lei de Cotas, a UFS reafirma seu compromisso com a redução das desigualdades sociais e raciais por meio da ampliação da aplicação da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) em seus concursos públicos.
Em um passo significativo rumo à equidade, a UFS ampliará o percentual de vagas para candidatos cotistas nos concursos para professor efetivo, de 30 para 40%. Esta medida, de iniciativa da Universidade Federal de Sergipe, tem como único objetivo corrigir distorções históricas no acesso da população negra a cargos públicos, promovendo maior justiça social.
A medida está em plena conformidade com a Convenção Interamericana contra o Racismo, promulgada pelo Decreto nº 10.932/2022, que possui status constitucional, além de estar alinhada às diretrizes dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, especialmente o ODS 18, que busca eliminar a discriminação racial em todas as suas formas.
Ao adotar essa postura, a UFS reafirma seu compromisso com a construção de uma sociedade inclusiva e justa, garantindo que o corpo docente das universidades públicas represente a diversidade étnico-racial do Brasil.
O acordo firmado com o Ministério Público Federal é um reflexo do papel de liderança da UFS na implementação e aperfeiçoamento das políticas de ações afirmativas, não um reconhecimento de crime atribuído de maneira irresponsável e mentirosa à única universidade pública do Estado. Ressalte-se, inclusive, que a Justiça Federal de primeiro grau, além do Tribunal Regional Federal da quinta região não reconheceram quaisquer erros por parte da UFS na aplicação da Lei de Cotas nos concursos públicos.
A UFS informa ainda que na tarde de hoje, dia 09 de outubro, em evento que contou com a presença de autoridades do MEC, MPF e EDUCAFRO, instituiu dois grupos de trabalho para construção de um Observatório de Igualdade Racial e outro para propor as políticas de equidade de gênero e cor, assim como, a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas, Equidade e Pertencimento.
A UFS continuará a trabalhar incansavelmente para assegurar equidade e diversidade em seu ambiente acadêmico, sendo uma instituição que valoriza a inclusão e combate as desigualdades em todas as suas formas.
São Cristóvão, 09 de outubro de 2024
Universidade Federal de Sergipe
*ATENÇÃO: Reportagem atualizada às 9h30 desta quinta-feira, 10, com a manifestação da UFS sobre o caso do acordo com o MPF SE sobre cotas para professores da instituição.