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“Esse é um edital lançado às cegas.” Em entrevista à Mangue, especialista aponta os principais problemas da licitação do transporte público da Grande Aracaju

Maiara Ellen, da Mangue Jornalismo
(@maiara.ellen)

No dia 20 de junho, o Consórcio do Transporte Coletivo Metropolitano, formado pelas cidades de Aracaju, Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão e Barra dos Coqueiros, lançou o edital de licitação para o transporte público. O documento visa contratar duas empresas para operar as frotas de ônibus coletivos nos quatro municípios.

Além de adicionar 18 ônibus à frota, elevando o total de 455 para 473 veículos, o edital também prevê a inclusão de 20 novas linhas, aumentando de 101 para 122 rotas. Antes do lançamento, o edital foi submetido a uma Consulta Pública, realizada de 22 de março a 5 de abril, para coletar manifestações e contribuições dos interessados sobre as minutas jurídicas e a modelagem econômico-financeira do projeto de concessão, incluindo contribuições adicionais enviadas por correio eletrônico.

As quatro prefeituras se comprometeram a investir um subsídio de R$ 126 milhões, distribuído proporcionalmente com base na população de cada município. O governo estadual também contribuirá com um aporte anual de R$ 10 milhões para isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre o combustível do transporte coletivo.

A Mangue Jornalismo entrevistou Magno Evangelista Pereira, professor de Geografia da Rede Básica e especialista em transporte coletivo em regiões metropolitanas, especialmente o modal ônibus, em cidades médias e grandes, para discutir sobre o edital de licitação de transporte público e seus impactos na mobilidade urbana da região. Ele estudou o edital e aponta várias lacunas no documento. “A licitação, precisa acontecer de fato, pede-se urgência, mas não pode ser no atropelo. Até porque trata-se de uma concessão para os próximos 20 anos, que vai impactar diretamente em uma geração e várias gestões de prefeitos.” alerta Magno.

“O transporte coletivo é um direito. É um direito constitucional, ou seja, é um dever do Estado e é um direito do cidadão” afirma Magno Pereira

Leia abaixo a entrevista a seguir.

Mangue Jornalismo (MJ) –  Como você percebe a importância do edital de licitação do transporte coletivo para a região metropolitana de Aracaju? Esse documento pode impactar diretamente aos usuários ?

Magno Pereira (MP)É importante que haja um edital para a realização de uma licitação para o transporte público na região metropolitana de Aracaju. É urgente que isso seja feito, dadas as condições atuais do transporte público em nossa região. Isso terá um impacto direto na vida dos milhares de usuários que dependem desse serviço público, dada a sua extrema importância. Arrisco afirmar que ele é ainda mais crucial do que outros serviços públicos, como saúde, educação, lazer e cultura, pois a população precisa se deslocar  até onde estão instalados esses serviços públicos. Portanto, o transporte público afeta diretamente a vida dos jovens que vão à escola, por exemplo, muitas vezes distante de suas casas.  Então a licitação deve garantir qualidade, porque se não, poderá trazer impactos negativos, o que não deve ser o objetivo de um edital público.

MJ-  O Prefeito Edvaldo Nogueira mencionou que o edital é resultado de um processo transparente e democrático. Como você avalia o nível de participação popular durante esse processo? Quais foram os pontos positivos e negativos nesse aspecto?

MP – Precisamos saber o que ele enxerga como transparente e democrático, porque o edital realmente estava no site da prefeitura, um site que todo mundo tem acesso ou deveria ter acesso, né? O problema é que essa não é a realidade. Sabemos que a maior parte da população não tem como ficar acompanhando o site oficial. Eu tô falando das massas… tô falando da Dona Maria, do Seu Zé, e o próprio Prefeito sabe disso também. Até porque o prazo foi muito curto, duas semanas com um intervalo ainda no meio. No site da prefeitura foi colocado um forms onde a população poderia dar sugestões, e nesse forms aí não cabia foto e nem mapa, então esse já é um problema. Colocar algo tão importante que vai impactar a vida das pessoas em apenas 14 dias, em um site. Quando a gente vai falar de transporte coletivo, a gente tem que ir lá na periferia consultar a população. Consultar o usuário e colocar a sociedade civil organizada no centro das discussões, procurar inclusive essas entidades. Essas entidades existem e elas não foram procuradas para debater essa questão. Então eu não concordo com o prefeito quando ele diz que o processo foi democrático só pelo fato de ter colocado no site da prefeitura.

MJ – Na sua opinião, quais são os pontos específicos do edital que merecem uma avaliação mais detalhada? Existe alguma área em particular que poderia ser melhorada para garantir melhores serviços de transporte público para os habitantes de Aracaju?

MP – São vários os pontos que precisam ser reavaliados neste edital, mas eu quero destacar três: o primeiro é o cartão, ele precisaria ser temporal. Assim, ele poderia ser utilizado de uma forma que o usuário possa fazer a integração, passando de um ônibus para outro em qualquer ponto da cidade. Então, ele não precisaria entrar dentro do terminal. Outro ponto que eu quero destacar aqui é a falta de apontamento de ônibus de grande porte. O edital não cita em nenhum momento ônibus articulado ou biarticulado, ônibus de 15 metros. Enfim, são tecnologias de transporte que já existem no Brasil inteiro. Eles mencionam muito o ônibus básico, deixando de fora também os ônibus elétricos. O terceiro ponto que eu quero destacar é que o edital não aponta, por exemplo, corredores BRT; isso deveria ser discutido melhor.

MJ – Aracaju possui um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) desatualizado desde 1995, aprovado em 2000 e sem revisão desde então. Você acredita que essa falta de atualização pode ter impactado negativamente nos estudos e decisões do edital de licitação do transporte público? De que maneira isso pode afetar a implementação e eficiência das novas políticas propostas?

MP – Parece que o plano diretor vem de um planeta e a questão do transporte público vem de outro, e isso não poderia acontecer em hipótese alguma. Os dois teriam que estar associados, interligados diretamente, porque o transporte público é diferente de uma escola, de uma creche ou de um hospital que está estático em um único lugar. O transporte público abrange todas as quatro cidades que compõem a região metropolitana, então ele leva as pessoas de um conjunto habitacional até um distrito industrial, uma área de comércio, uma área de estudo. Ou seja, a licitação teria que estar alinhada com o plano diretor. Então não tem como isso dar certo. Onde vão construir esses corredores e ônibus? Onde está o crescimento populacional? Onde estão sendo construídos os novos conjuntos habitacionais? Onde há maior conurbação, a maior concentração de moradores? Qual é a proposta dos municípios para construir áreas industriais? Esse é um edital sobre transporte coletivo lançado às cegas. Não há um norte, não há um apontamento, não tem como enxergar mais à frente com o plano diretor completamente desatualizado.

MJ – O edital prevê a vigência de 20 anos para as empresas contratadas. Como você percebe os desafios de longo prazo que podem surgir ?

MP – Essa é uma pergunta que está casada com a anterior. O edital, primeiro tem a vigência de 20 anos para as empresas e pode ser prorrogado por mais cinco, totalizando 25 anos. Isso é muito tempo, são várias gestões que vão passar ao longo desses 25 anos. Isso sem um plano diretor: é um desafio às cegas. Não tem como desenhar no papel. Até porque as empresas que ganharem essa licitação estão descompromissadas de colocar, por exemplo, um BRT, um corredor moderno. Então vai para qual direção? A direção que os empresários querem? A direção que o próximo prefeito ou prefeita vai querer? Fica bastante complicado pensar nos próximos 25 anos dessa forma.

MJ – Como o edital aborda questões de mobilidade urbana em Aracaju?

MP – Quando se fala em mobilidade urbana, na minha opinião, o principal é o transporte coletivo por ônibus, uma vez que não temos transporte ferroviário como linha férrea, metrô ou trem na região metropolitana. No entanto, não podemos ficar apenas enfatizando que mobilidade urbana se resume ao ônibus. Andar a pé é um grande desafio, até para quem não tem deficiência. É quase impossível para uma pessoa com deficiência (PCD), especialmente um cadeirante, se locomover nas calçadas dos quatro municípios da região metropolitana. Além dos desafios de mobilidade a pé, onde há uma falta de respeito por parte dos condutores de automóveis, incluindo viaturas oficiais que fecham o caminho. As calçadas estão repletas de buracos, postes e degraus desnivelados. Em toda a cidade, a sinalização é precária e as faixas para pedestres são quase inexistentes. Também há o problema das ciclofaixas, que até têm certa continuidade, mas não oferecem segurança devido a buracos e lixo. Então, quando discutirmos mobilidade, temos que considerar todas as formas de locomoção dentro da cidade, não apenas o transporte coletivo por ônibus.

MJ – Quais tecnologias poderiam melhorar a acessibilidade e a sustentabilidade do sistema de transporte que não foram abordadas no edital?

MP – Os ônibus de grande porte,  como eu já fiz a crítica anteriormente,  com portas largas,  piso baixo e rampa de acesso que aumentam a acessibilidade.  Os elevadores dos ônibus em uso atualmente vivem quebrados, sucateados,  não oferecem nenhuma segurança e já estão em desuso. Os ônibus de grande porte dispensam esses elevadores por ter o piso baixo e uma girar  em 180 graus. A calçada no ponto de ônibus, também deveria ser nivelada com o piso do ônibus. Mas nada disso foi apontado, essas tecnologias que poderiam promover uma melhor qualidade de mobilidade  não foram apresentadas.

Em relação à sustentabilidade, ao implementar corredores BRT dentro de um padrão e normas específicas, é crucial considerar também as calçadas. Os corredores BRT são geralmente instalados no canteiro central da cidade, o que pode permitir a ampliação das calçadas, especialmente do lado esquerdo, e inclusive o plantio de árvores. Isso contribui para tornar a cidade mais arborizada e agradável para os pedestres. Além disso, os ônibus BRT equipados com as melhores tecnologias, ao longo do tempo, podem substituir gradualmente os ônibus convencionais por uma frota 100% elétrica.

MJ – Considerando a situação atual do transporte público em Aracaju, que encontra-se extremamente sucateado, como você percebe as estratégias propostas no edital para garantir a qualidade e a regularidade dos serviços?

MP – Infelizmente, apesar de ser muito extenso, o edital deixa muito a desejar. Não apresenta estratégias diferenciadas, sendo mencionados apenas os ônibus com tecnologia de motores Euro 5 e Euro 6. Essa tecnologia move o escapamento da parte superior para a parte inferior do ônibus. No entanto, outras cidades que adotaram motores Euro 5 e Euro 6 mantiveram o escapamento na parte superior, então alterar isso seria um retrocesso.

O edital aborda a renovação da frota, mas com foco em ônibus básicos, sem propostas significativas de melhorias. Portanto, não há praticamente nenhum avanço visível. Além disso, há uma página que menciona dificuldades na aquisição de ônibus elétricos, colocando a cidade em contramão em relação a outras capitais

MJ – Com base no edital de licitação para o transporte público de Aracaju, há possibilidade de mudança das empresas de ônibus? Como isso pode impactar os motoristas atualmente empregados? Existe um plano para realocá-los para as novas empresas contratadas?

MP – Essa é uma pergunta difícil. Não posso afirmar que já existem cartas marcadas, mas sempre fica essa impressão no ar, de que as coisas não vão mudar. Se houvesse interesse de outras empresas, de outros estados, provavelmente isso já teria sido divulgado pela imprensa.  Mas somente depois do resultado do edital saberemos se teve carta marcada ou não. No entanto , essas empresas deveriam ser expurgadas, elas não deveriam sequer participar desse processo licitatório. Elas deveriam indenizar a população pela falta de respeito causada nos últimos anos. Então dá medo saber que essas empresas ainda podem ficar aqui mais 25 anos.

Sobre os trabalhadores em geral, os motoristas, pessoal da garagem, fiscais e etc… o edital não menciona nada se esses trabalhadores serão reaproveitados em outras empresas, E isso deveria ser automático, a empresa que levar essa licitação deveria aproveitar os funcionários, desde que seja a vontade dos mesmos. Isso  deveria estar escrito em letras garrafais. Então fica essa dúvida no ar.

MJ – O edital de licitação para o transporte público de Aracaju inclui medidas específicas para atender às demandas dos servidores, visando melhorias nas condições de trabalho?

MP – Não. O edital não aponta nenhuma melhoria para os trabalhadores. Os terminais são insalubres, para quem ficou dirigindo 8 horas por dia com um motor dianteiro barulhento, vidros batendo… Eles deveriam, assim como todos os trabalhadores, na hora do seu café, do seu almoço, ter um local digno e limpo, com TV para distrair um pouco a cabeça, micro-ondas para esquentar sua refeição, geladeira, banheiro exclusivo para os trabalhadores. Um uniforme com tecido melhor, que consiga absorver mais o suor. Nada disso é apontado.

Outra questão importante são os salários dos trabalhadores que, volta e meia, são atrasados, e lá no edital não menciona em nenhum momento uma punição para as empresas que atrasarem o pagamento, até porque são empresas concessionárias que prestam serviços públicos. Então, por qualquer motivo que seja, se elas vierem a atrasar o salário, deveriam ser punidas.

MJ – Qual seria a estrutura de transporte ideal para a região metropolitana de Aracaju?

MP – Ônibus que operam em grandes linhas, como as linhas troncais ou radiais que saem do centro e vão para os bairros, ou as linhas diametrais que atravessam o centro da cidade de um lado para o outro, são essenciais para atender a maior demanda e deveriam ser operados por ônibus de grande porte.

Esses ônibus deveriam ter piso baixo, motor traseiro, portas largas dos dois lados para que, no futuro, possam operar em corredores com pistas exclusivas à esquerda, e ao entrarem nos bairros, os passageiros possam embarcar pela porta da direita. Vidros escuros para proteger os passageiros dos raios solares, tomadas para carregar celulares. Inclusive, todos os ônibus adquiridos, já deveria vir com ar-condicionado, porque estamos em uma cidade quente. Além disso, a numeração das linhas de ônibus deveria ser melhorada e os coletivos deveriam ser pintados de acordo com a região por onde transitam, para facilitar a identificação pelos usuários.

Nos bairros, deveriam colocar ônibus de menor porte. Por exemplo, em um bairro como Santa Maria, os moradores deveriam ter duas opções de linhas: uma radial ou diametral que vá diretamente ao centro da cidade com ônibus de grande porte, e outra alternativa que vá até um terminal como o do dia ou atalaia. Em áreas mais rurais com ruas de terra, o ideal seria ônibus com tração nas quatro rodas para enfrentar os buracos, embora o asfalto deva ser uma prioridade.

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