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Espaço cênico onde o palco que não é palco e o público que não se mostra. Crítica da obra “Remundados”

JOÃO IVES, especial para a Mangue Jornalismo

A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.

Crítica selecionada na Mostra O Teatro Sergipano na Pandemia 2024.

O espetáculo “Remundados” é realizado pelo grupo teatral Boca de Cena, residente do bairro Bugio na capital sergipana. O espetáculo nos conecta com um grupo de pessoas desterritorializadas, que carregam apenas em seu corpo toda a marca da cultura de um povo que se perdeu ou que sequer surgiu ainda. Em contexto de pandemia, a obra traz uma rima temática, onde seus personagens se despedem de um mundo que não voltará mais e se fantasiam nas possibilidades de remundar.

Tudo começa com uma vídeo-chamada das quatro pessoas (cinco se quiser considerar o espectador, já que este é referenciado integralmente). “Remundados” nos relembra que não estamos no teatro, estamos olhando para a tela de um celular. De cara os quatro personagens já discutem o verbo que dá nome à obra e tudo que pode significar: é uma qualidade de vanguarda, dotada de memórias de resistência; é o fim pelo qual se luta; a vontade que transcende o indivíduo; é a redeterminação do lugar. É por fim, o devir social.

Logo, apresentam seu palco. Mesmo que localizando-o geograficamente, o acesso a este é apenas virtual, por uma tela. A relação com o espectador toma novas dimensões nas adversidades que se impõem na realização do espetáculo. A obra é retirada de seu espaço presencial, com público presente, e levada ao vídeo. Ainda assim, “Remundados” consegue escapar pela tangente, buscando não seguir os padrões de tela tradicionais do cinema e da televisão, optando, na verdade, pelo formato vertical do celular. Se estabelece um novo palco com novas dinâmicas e novas possibilidades, um palco que ocupa o mesmo espaço em que os espectadores recebem as notícias do mundo e se comunicam com aqueles que estão distantes em tempos de quarentena. Um novo teatro itinerante que viaja pelo virtual.

A obra se arrisca em tratar de discussões contemporâneas latentes, não só correspondentes à pandemia de Covid-19, por vezes penando para dar conta de tantas nuances. Os corpos são maltrapilhos, com grande sobreposição de roupas e adereços; o espaço, apesar de limitado, é carregado de informações que se definem em conjunto, nada se destaca separadamente. É possível considerar um aspecto de gambiarra, não no sentido de um trabalho mal feito, mas uma tentativa de se sobressair às adversidades, de diminuir a problemática que se enfrenta. O que é senão a gambiarra senão uma “quase coisa”, algo feito para substituir outro algo. Um teatro quase teatro, um filme quase filme, um povo quase povo, um mundo quase mundo.

“Remundados” não deixa que as limitações surgidas pela pandemia também limitem suas possibilidades. Na presença de um intermediário, que é a câmera, os personagens se utilizam dos limites dessa lente para experimentar, brincar e jogar. Em determinado momento, para ilustrar melhor uma história, alguém põe um copo com água em frente à câmera, assim “afogando” o personagem que a conta. Tal intervenção só se torna possível da mesma maneira na dimensão do audiovisual. Logo, a fim de atualizar suas próprias significações do verbo Remundar, “Remundados” pensa nesse novo espaço cênico que eles habitam, um palco que não é palco, um público que não se mostra. Uma peça que surge da adversidade e transforma a própria adversidade em seu órgão motor.

João Ives é graduando em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal de Sergipe e realizador audiovisual. joaoives@academico.ufs.br

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