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Depois de 150 anos, Constantino Souza, um intelectual sergipano invisível, tem livro lançado em São Paulo

Ilustração de Constantino (Crédito: Semana Ilustrada. Ano XIII, n. 635. Rio de Janeiro, 09 fev. 1873. p. 5076. Arquivo Hemeroteca Digital/BN).

Não é novidade nem exagero afirmar que Sergipe é terra de esquecimento. Entretanto, isso não é absoluto. Várias forças lutam aqui, quase que sozinhas, para jogar luzes em pessoas e acontecimentos que foram apagados da história. Por exemplo, você – sinceramente – já ouviu falar do sergipano Constantino José Gomes de Souza? Algumas pessoas até sabem quem foi ele, mas para a grande maioria, trata-se de um completo desconhecido.

A Mangue Jornalismo é vocacionada a ajudar na batalha pela memória. Assim, foram os textos já publicados sobre os indígenas; as reportagens da ditadura militar em Sergipe; as histórias de Anísio Dário, operário morto pela polícia em 1947; de Jacinta Passos, uma importante escritora que morreu esquecida em um sanatório de Aracaju nos anos 1970; de Raymundo Souza Dantas, primeiro embaixador negro do Brasil; de Manoel Bomfim, um dos mais importantes intérpretes do país. Agora, de Constantino José Gomes de Souza.

Os professores Amâncio Cardoso, Jackson da Silva Lima e alguns outros já tinham descoberto Constantino Souza, escreveram sobre ele, buscaram mostrar a relevância desse médico, poeta, romancista e dramaturgo, um sergipano nascido na povoação de Estância, em 18 de setembro de 1825, portanto, este ano completará 200 anos de nascimento.

“Constantino foi um escritor do romantismo brasileiro que conviveu e travou contatos com as mais destacadas figuras da época, como os romancistas Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo, com o ator João Caetano dos Santos, o tipógrafo Francisco de Paula Brito”, conta Moisés Santos Souza, formado em História na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e professor na rede municipal de Lagarto/SE. Ele vem se dedicando, com excelência e por conta própria, a pesquisar sobre Constantino, resgatando-o do esquecimento.

A dedicação do professor Moisés Souza fez a Universidade de Campinas/SP (Unicamp) aprovar e lançar o livro Arycurana, de Constantino José Gomes de Souza. Originalmente, o romance foi publicado no periódico fluminense Semana Ilustrada, entre os anos de 1874-1875. O romance nunca veio a público no formato livro, assim sendo, esta é a primeira edição em um período de 150 anos da publicação original em folhetim. Arycurana está no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e pode ser baixado gratuitamente AQUI.

E não é apenas isso. O professor Moisés Souza já concluiu também a atualização de um outro romance (O Grumete) também de Constantino José Gomes de Souza. Essa obra ainda não tem dada de publicação. “Os romances Arycurana e O Grumete preenchem ‘lacunas na bibliografia brasileira’, e tem relevância histórica, principalmente na nossa história literária. Por exemplo, as leituras desses romances, ainda hoje esquecidos, contribuem nos estudos da história do romantismo brasileiro”, defende o pesquisador. Abaixo, há uma entrevista exclusiva que a Mangue Jornalismo fez com o professor Moisés.

Um pouco da história de Constantino José Gomes de Souza

Nascido na povoação de Estância, em 1825, Constantino Souza teve aulas de Primeiras Letras com o professor Joaquim Maurício Cardoso e lições de latim com o padre-mestre Raymundo Campos da Silveira. Um dos irmãos de Constantino foi José Maria Gomes de Souza, poeta, jornalista, farmacêutico e professor, sendo considerado o “pai do condoreirismo poético” em Sergipe.

Em 1844, Constantino vai para Bahia e frequenta a Faculdade de Medicina. Em Salvador, no periódico Crepúsculo, publica uma série de poemas. Quatro anos depois, sai o seu primeiro livro de poesias, Prelúdios Poéticos. Também na Bahia, ele dirige o jornal A Época Literária, de cunho “científico, literário, histórico e de belas artes”. Em 1849, transfere seu curso de medicina para a cidade do Rio de Janeiro, onde passa a colaborar com o jornal A marmota na corte e publicou outro livro de poesias, Os Hinos de Minha Alma.

O escritor conclui o curso de medicina e dois anos depois, em 1853, defendeu a tese: “Quais são as causas da morte súbita?”. Dois anos depois, é designado para Estância. Veio colaborar no tratamento de enfermos, vítimas da cólera. Ficou encarregado do serviço de quarentena do porto de Estância e do tratamento dos coléricos na Vila de Santa Luzia do Itanhy.

Constantino permaneceu em Sergipe até 1857, quando retorna ao Rio de Janeiro e publica a peça O Espectro da Floresta. O texto foi encenado no Teatro São Pedro de Alcântara. Em 1857, publica o drama Pobre filho de artista. Em 1859, outro drama, Gonzaga. Também publica mais dramas: Os ladrões titulares, O libertino, A filha do salineiro e O enjeitado. Este dois últimos foram encenados pelo famoso ator João Caetano.

Em 1861, colabora e dirige a revista semanal, literária e recreativa A Grinalda, e publica a peça Os três companheiros de infância. Também escreve e publica a peça Vingança por vingança, e o romance O desengano. Em 1873, Constantino presta serviço médico para guarnição da Corte. Naquele ano, começa a ser publicado em folhetim o romance O Grumete no Semana Ilustrada, do caricaturista alemão Henrique Fleiuss. No ano seguinte, começa a publicação em folhetim do romance Arycurana, também no mesmo periódico.

Em julho de 1877, começa a ser publicado no Ilustração Brasileira o romance O Cego, mas em 2 de setembro daquele ano, Constantino morre no Rio de Janeiro aos 51 anos. Em abril do ano seguinte, é publicada a última edição da Ilustração Brasileira e de O Cego.

ENTREVISTA – MOISÉS SANTOS SOUZA

“Para que autores não sejam esquecidos, é preciso que as obras deles sejam publicadas, lidas e mesmo estudadas”

Moisés: “As obras de Constantino têm relevante importância na história literária e no campo da ciência histórica” (Crédito: Arquivo pessoal)

Mangue Jornalismo (MJ) – Como você chegou a Constantino José Gomes de Souza?

Moisés Santos Souza (MSS) – Antes de qualquer bairrismo que poderá ser aventado, nasci e moro em Estância/SE, mesma cidade de naturalidade do romancista sergipano. Este foi o primeiro motivo que me levou a Constantino. Por ser da terra do escritor, desde a infância/adolescência, já ouvia falar algo a respeito (mesmo vagamente) nos veículos locais (rádio/jornais impressos). Então desde a adolescência, nos idos dos anos 1990, havia uma proximidade minha ao assunto e desde esse tempo recolhia informações sobre o escritor, que foi acentuando nos anos que se seguiram, mas nada definido como um projeto de pesquisa. Com o período de isolamento devido a pandemia da Covid, remexendo alguns papeis guardados e materiais digitais, decidi fazer a atualização dos romances encontrados em folhetins, usando somente a minha experiência/observação como leitor de romances anotados do romantismo brasileiro e todo arcabouço adquirido no curso superior de História. Foram estes os caminhos para a produção para as atuais edições anotadas do autor sergipano. Além dos romances Arycurana e O Grumete (este foi o primeiro a ficar pronto na atualização/está na espera de aprovação em Conselho Editorial), estão sendo preparadas para futuras edições anotadas o romance O Desengano (1873); o livro de poesias Os Hinos da Minha Alma (1851); e a peça O Espectro da Floresta (encenada em 1854 e publicada em 1856), como também uma pequena biografia, que na verdade, está mais para um perfil biográfico aumentado do artigo de mesmo nome, publicado anteriormente nos jornais sergipanos. Pretendo fazer tudo isso sem patrocínio dos governos estadual e municipal, pois não quero associar a pesquisa e nem mesmo meu nome, a algum tipo de governante.

MJ – Como foi a organização do romance Arycurana, que cuidados você teve (ortografia, etc, etc) e seu contato com a Unicamp para publicação?

MSS – Em um primeiro momento, tanto para Arycurana quanto para O Grumete, fiz os recortes das partes dos folhetins encontrados nas edições da Semana Ilustrada, disponibilizada na Hemeroteca Digital da BN. Feito isto, selecionado e arrumado, fiz a leitura e transcrição do material. Para uma adequada fixação do texto, tomei por empréstimo, alguns critérios adotados em atualizações de romances canônicos da literatura brasileira, especialmente, alguns adotados pelo crítico literário Luís Augusto Fischer (UFRS) em romances de Machado de Assis. Critérios para escolha de grafias de palavras, topônimos, acentuação, introdução de travessões, entre outros. No caso específico de O Grumete, ao ter ele todo pronto, tive a colaboração da colega professora mestra Leiri Dayana Barbosa (Língua Portuguesa), para observar as próclises, mesóclises e crases e adequá-las nas regras do acordo ortográfico atual. Com a devida colaboração, acrescentei a amiga nos créditos de fixação do texto. Em Arycurana, não tive a necessidade de recorrer a ajuda. Quanto a publicação de Arycurana na Unicamp, partiu da correspondência por e-mail que tive com a professora doutora Márcia Abreu (IEL/UNICAMP). Em agradecimento que fiz por ter consultado informações do site do projeto Caminhos do Romance, coordenado pela mesma, comuniquei da feitura das edições anotadas e em resposta, a professora ofereceu os serviços da editora-escola Asa da Palavra, um selo do programa de pós-graduação, que além de editar trabalhos de pesquisas acadêmicas, publica alguns romances esquecidos. Submeti ao Conselho Editorial e foi aprovado.

MJ – Você encontrou familiares de Constantino?

MSS – Não os conheço e nem sei se existe algum vivo. Pelo que sei Constantino não teve filhos/as. É provável que teve sobrinhos/as por parte de alguns dos irmãos e irmãs, mas não tenho nenhuma ideia da existência, até porque são parcas as documentações encontradas sobre o escritor sergipano. O importante é ver publicado esse material para popularizar a obra do escritor sergipano do romantismo brasileiro. Tanto dele, como de outros escritores naturais de Sergipe que são autores nacionais e que ficaram esquecidos na história literária brasileira, e não somente regional. Mas para que esses autores não sejam esquecidos, é preciso que as obras deles estejam sendo continuadamente publicadas, lidas e mesmo estudadas, é isto que mantém a sobrevivência de um escritor há longo prazo.

MJ – Arycurana é indianista. Comente sobre as três fases literárias desse autor.

MSS – Arycurana é um romance indianista, mas não devemos confundir ‘literatura indianista’ com ‘literatura indígena’ ou mesmo ‘indigenista’. Apesar de nomes assemelhados, há bastante diferenças entre elas. Pelo que eu sei, o indianismo foi uma corrente literária ou mesmo um movimento artístico do romantismo do século XIX, que tem na figura do indígena um ser idealizado a partir de um perigoso olhar ideológico com franca apologia ao colonizador português, como eu mesmo coloco lá na apresentação do livro Arycurana. É uma visão conservadora, mas que era a ‘moda literária’ da literatura brasileira e da ideologia do tempo de Constantino, onde tinham José de Alencar (1829-1877) e Gonçalves Dias (1823-1864) como principais modelos. Tanto a literatura indígena como a indigenista são mais contemporâneas. A primeira é a escrita literária feita pelos próprios indígenas a exemplo de escritores como Daniel Munduruku e Ailton Krenak. A indigenista é aquela que mesmo preocupada pelas questões e temáticas dos povos indígenas são escritas por não-indígenas. Por isso, pensar em questões indígenas na literatura de Constantino ou mesmo na literatura romântica brasileira do século XIX, não cabe aqui. Quanto as fases da obra, considero três, divididas não por estilos ou escolas, mas por gêneros literários, a saber: uma mais lírica, outra dramática e, por fim, uma narrativa. Pois nas fases da vida de Constantino Gomes (juventude e maturidade), ele teve dedicação quase exclusiva por algum tipo de gênero literário. Entre 1845 a 1851, ele se dedica à produção de poesias, tanto publicadas em periódicos, como também dois livros: Prelúdios Poéticos (1848) e Os Hinos de Minha Alma (1851). De 1854 a 1869, ele se dedica ao drama, na produção de peças de teatro. Foram dez peças ao todo. Os destaques foram: O Espectro da Floresta (1854); A filha do salineiro (1858/1860); e Os três companheiros de infância (1860). De 1871 a 1877, ele escreveu cinco romances: O Desengano (1871); A filha sem mãe (1873); O Grumete (1873/1874); Arycurana (1874/1875); e O Cego (1877/1878).

MJ – Podemos considerar que Constantino era negro? Como médico, escritor, dramaturgo e frequentou a Corte, há algum registro dele se envolvendo com as questões da escravidão ou tratando disso?

MSS – Há pouca documentação para afirmar alguns aspectos físicos do romancista, principalmente se ele era um homem negro, branco ou mesmo considerado pardo. Não existem fotografias do escritor. A única imagem encontrada sobre Constantino é um desenho feito por Henrique Fleiuss (1824-1882), publicada na revista Semana Ilustrada, de fevereiro de 1873. Para verificar isso, outra possibilidade seria encontrar a certidão de batismo (não havia certidão de nascimento no século XIX), ou mesmo registros de instrução pública das aulas de Primeiras Letras e Latim do século XIX, que trazem dados pormenorizados de nomes de alunos, com idade, filiação e cor. Não tive acesso ainda a nenhum desses documentos. Tenho informação que o irmão de Constantino, o poeta José Maria Gomes de Souza (1839-1894) era pardo, mas isso é pouco para poder atribuir à Constantino. Em relação ao registro de alguma produção que envolvem questões referentes à escravidão, é nítida a ausência do tema em seus romances, pelo menos nos que tive acesso até agora. Em O Grumete, via indiciamento, é possível encontrar a sociedade senhorial escravista do período, com alguns elementos que sinalizam a violência da escravidão, mas é somente isso. O próprio silêncio do escritor ao tema, é mais uma violência à respeito. É patente isso. De forma específica, ele publicou um poema por título ‘O Escravo’, no jornal baiano O Crepúsculo, em 1846. Nele podemos encontrar uma abordagem mais enfática em questão à escravidão institucionalizada e fala no direito à liberdade dos escravizados.

MJ – O que você acha muito relevante destacar na trajetória de Constantino para as atuais e futuras gerações?

MSS – A relevância em relação à trajetória de vida, se dá mesmo em saber que Sergipe teve um escritor do romantismo brasileiro e que conviveu e travou contatos com as mais destacadas figuras da época, como os romancistas Machado de Assis (1839-1908) e Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882); o ator João Caetano dos Santos (1808-1863) e o tipógrafo Francisco de Paula Brito (1809-1861). É um sergipano que figura entre esses personagens da nacionalidade, como dramaturgo, poeta e romancista, além da atividade médica. Mas a sua obra, especialmente os romances – eu posso estar enganado -, são romances datados. Diferente de outros romancistas do século XIX, principalmente, os que ficaram no cânone, os romances de Constantino não conseguem mais corresponder com os debates do presente, são circunscritos ao tempo dele. E isso pode também ser um dos motivos que deixaram autor/obra na invisibilidade. Um romance ou uma obra só consegue prevalecer por longo tempo, quando ela ainda consegue se comunicar por gerações distintas. E não é o caso da obra de Constantino. Continuo afirmando que posso estar enganado, pois não sou especialista em crítica e em estudos literários, e é por isso que se faz necessária novas leituras nos ambientes de pesquisa científica. E isso é importante. Agora a obra tem uma relevante importância no âmbito da história literária e mesmo no campo da ciência histórica. Na história literária, ela permite verificar onde se coloca como mais um representativo da geração de obras do romantismo brasileiro e também pode ser possível verificar onde, nos aspectos estéticos (conteúdo e forma), teve ou gerou influências em outras produções de outros escritores. Se há algum. Em relação à ciência histórica, a obra em si, é um documento escrito de uma época, sendo assim, a voz de um tempo. Importante para os estudos das mentalidades e dos discursos ideológicos de uma determinada geração.

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