MAIARA ELLEN da Mangue Jornalismo (@maiara.ellen)
Depois de meses de expectativa, debates e especulações, o edital de licitação do transporte público da Grande Aracaju foi lançado, no último dia 20, pelo Consórcio do Transporte Coletivo Metropolitano. Pelas novas regras, o transporte público da região seguirá sem contar com a importante figura do cobrador.
Mesmo sendo considerado por especialistas, condutores e passageiros como essencial para o bom funcionamento do serviço, os cobradores não voltarão aos circulares, mantendo os motoristas sobrecarregados em suas funções.
Em agosto de 2023, Michael Johnatan Santos de Oliveira, de 29 anos, morreu atropelado por um ônibus do transporte coletivo no Terminal Rodoviário Leonel Brizola, em Aracaju. A vítima estava retornando do trabalho e tentava embarcar no transporte superlotado quando foi atingido pelo pneu do veículo.
Por meio de nota pública no período em questão, a empresa Viação Progresso informou que o acidente ocorreu porque o homem havia caído fora da visão do motorista.
Trabalhadores do transporte público, com quem a Mangue Jornalismo conversou, afirmaram que o acidente fatal com Oliveira – assim como várias outras ocorrências – poderia ter sido evitado com a presença de um cobrador no veículo.
Foi em novembro de 2021 que as empresas de transporte público da região metropolitana de Aracaju deixaram cerca de 1300 trabalhadores desempregados.
As demissões ocorreram durante a pandemia da Covid-19, após o Prefeito Edvaldo Nogueira (PDT) sancionar o Projeto de Lei 139/2021 aprovado na Câmara Municipal de Aracaju (CMA) que permitiu que a função de cobradores do transporte coletivo na Região Metropolitana fosse completamente extinta.
A proposta, de autoria do vereador Vinícius Porto (PDT), permitiu que os coletivos passassem a usar apenas o sistema de bilhetagem eletrônica nas operações de compra e venda de passagens.
Mais de dois anos depois das demissões em massa, os questionamentos que ficam é: Onde foram parar esses trabalhadores desempregados? Como estão sustentando suas famílias? Quem cumpre as demandas que eles exerciam? Quais foram as consequências dessas demissões para o sistema de transporte público?
Onde estão os cobradores demitidos?
“O atual cenário dos cobradores de ônibus é que muitos ainda estão desempregados devido à idade, vários tinham muito tempo de serviço, e já estavam com a idade avançada para recomeçar no mercado de trabalho.” relata o ex-cobrador da viação progresso Marcos Vinicius que foi demitido após 8 anos de serviço.
Vinicius atualmente trabalha como porteiro de um condomínio. De acordo com ele, esse é o emprego que o ajuda a sustentar sua família desde o primeiro mês após a demissão. “Para minha sorte, em 2021, no mesmo mês que eu fui demitido da empresa, eu consegui esse trabalho.”
“Teve alguns ex-cobradores que entraram em depressão, uns sofreram infarto e outros até morreram. Ninguém esperava que a função que a gente ocupava fosse ser extinta. O processo de demissão foi humilhante.” lamenta Vinicius
Além da perda do emprego repentina, muitos ex-cobradores não receberam multas rescisórias, salários, férias e tickets alimentação em atraso.
“Eu ia fazer 14 anos trabalhando na empresa, quando fui demitido eles estavam me devendo 5 férias, 2 décimos, 2 salários, 3 tickets de alimentação.” relatou outro ex-cobrador que pediu para não ser identificado.
Ainda segundo o ex-cobrador, ele e outros trabalhadores estavam há mais de 10 anos reivindicando por melhores condições de trabalho na empresa. “Eles prometiam resolver os problemas de atraso, mas nunca aconteceu, estão sempre recebendo verbas e mais, mas a situação nunca melhora.”
Verba destinada não condiz com qualidade do serviço
A Mangue mostrou em fevereiro deste ano que, apesar das dívidas trabalhistas, a administração municipal continua concedendo subsídios com valores exorbitantes às empresas de ônibus.
Em novembro de 2023, a Câmara Municipal aprovou a concessão de um subsídio sobre o custo das passagens de ônibus no valor de R$ 24 milhões, além do pagamento pela gratuidade para passageiros portadores de deficiência e seus acompanhantes no transporte público e da isenção do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).
Em entrevista para a Mangue em janeiro deste ano, o presidente da Progresso, Adierson Monteiro, afirmou que o montante dado ainda “está muito aquém da realidade”, ele ainda sugeriu com esse valor, não devessem exigir “transporte a lá Paris ou Londres.”
De acordo com os relatos de um motorista anônimo que pediu para não ter sua identidade revelada por medo de represálias, a situação do transporte público ofertado pela viação Progresso é extremamente precária.
“Eu não sei para onde esse dinheiro está indo. Eu trabalho na Progresso, e posso dizer que a situação dela é a pior das três. É péssima, não sei como o usuário paga 4,50 para andar em carros como esses, que não têm conforto ou segurança. Soltando pneu, quebrando ponteira de eixo, isso é um perigo. Não sei como ainda não houve uma tragédia.”
O mesmo motorista ainda declarou ter sido forçado a assinar o documento de aceitação da retirada dos cobradores. “Todos assinaram, e eu não seria o único a não assinar porque seria demissão na certa.”
Quem cumpre as demandas que os cobradores exerciam?
No último dia 5 de junho, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp-AJU) divulgou em sua página instagram imagens de usuários do transporte público pulando a catraca sem pagar passagem. Na legenda do vídeo, que viralizou nas redes, o sindicato patronal criminaliza a ação, mas não comenta sobre a falta de trabalhador que oriente os passageiros: o cobrador.
“Agora, além de dirigir, temos que fazer o trabalho de duas, três pessoas. Temos que apertar a botoeira para liberar a catraca, especialmente com os idosos utilizando o novo cartão. É necessário estar sempre atento, pois muitas vezes o ônibus está em movimento e o veículo fica lotado, com passageiros pedindo para liberar a passagem. É um serviço adicional do cobrador, que inclui operar o elevador para idosos, deficientes e pessoas especiais.” denuncia o motorista anônimo.
Desde fevereiro de 2023, o sistema de pagamento de passagens com valores em espécie foi substituído pelo pagamento exclusivamente por meios eletrônicos na região metropolitana. Sendo assim, os ônibus aceitam apenas pagamentos na modalidade pré-paga, utilizando cartões pré-pagos, vale-transporte, passe escolar ou de gratuidade.
Para César Henrique Matos, especialista em mobilidade urbana e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a bilhetagem eletrônica no transporte público é um avanço por permitir maior agilidade no embarque e na passagem da catraca.
Entretanto, ainda de acordo com César são necessários ajustes para garantir que as necessidades de informação e assistência aos passageiros sejam adequadamente atendidas.
César Henrique esclarece que outra função a ser exercida pelos cobradores, em decorrência da reorganização de sua atividade (pela redução de cobrança em dinheiro), é o fornecimento de informações aos passageiros.
“O transporte público de Aracaju tem uma péssima estrutura de informação e comunicação: nos pontos de ônibus, os usuários não sabem qual linha passa em qual trajeto, não têm informações sobre horários, quais são os pontos de parada. Os cobradores poderiam adquirir também essa função, por meio de capacitação, por exemplo, informando qual o próximo ponto de parada, onde o passageiro pode descer, qual linha ele pode pegar se quiser fazer uma conexão.”
Quais foram as consequências dessas demissões para o sistema de transporte público?
A estudante da UFS, Hannah Carla relatou que utiliza as linhas 031 e 715 todos os dias para frequentar as aulas da universidade. Ela relata que sente falta dos cobradores quando os passageiros dão sinal para descer e o ônibus segue sem que todas as pessoas já tenham descido. “Os cobradores avisavam ao motorista quando ele podia prosseguir”
Uma moradora do conjunto habitacional Eduardo Gomes, Karin Kaffer relatou que, sem os cobradores, a comunicação durante o translado ficou extremamente precária. “Como eu utilizo o Aracajucard Escolar, tenho que ter a liberação do motorista, e, às vezes, tenho que ficar gritando pra poder ser liberada na catraca. Acredito que com a presença do cobrador, essa situação poderia ser evitada.”
Um motorista que preferiu não se identificar por medo de perseguição na viação em que trabalha, contou à reportagem que já se envolveu em situações complicadas com passageiros devido à lotação do ônibus, que dificulta a visão do fundo do veículo. “Os idosos demoram para descer, e quando eu acho que todo mundo já desceu, fecho a porta e acabo machucando eles.”
Sobrecarregado, o motorista anônimo denuncia que as condições de trabalho se tornaram ainda mais precárias e que as humilhações aumentaram com o excesso de funções. “As condições de trabalho pioraram… Muitos colegas entraram em depressão”
Ainda de acordo com ele, os problemas de saúde enfrentados pelos colegas estão relacionados com a falta de pagamento e o trabalho excessivo. “Eu tenho cinco férias retidas na Progresso. Eles não pagam, eu não recebo nem para descansar. Trabalho quarenta horas por semana, tenho só um dia de folga. É sábado ou domingo. Um dia só. Não dá para nada”
Em março deste ano, o Ministério Público do Trabalho em Sergipe (MPT-SE) realizou uma audiência com os representantes das empresas que fazem o transporte coletivo de passageiros na capital e Grande Aracaju.
Na ocasião, o Procurador do Trabalho Raymundo Ribeiro propôs que fosse firmado um acordo com as empresas e o sindicato patronal para adequar os ônibus, seguindo as medidas de segurança do trabalho apresentadas na petição inicial de uma ação civil pública feita em 2021, em que o MPT discute a extinção da função de cobrador e a adequação dos ônibus coletivos.
Não se manifestaram
A Mangue Jornalismo entrou em contato com o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp) para obter informações sobre as dispensas de cobradores desde 2021 e se foram efetuados os pagamentos das compensações trabalhistas. Também solicitou dados sobre medidas que visam diminuir a carga excessiva dos condutores, regularidade dos pagamentos salariais e a condição dos ônibus em relação à manutenção, limpeza e conforto para os passageiros em Aracaju. No entanto, não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
A Secretaria Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT) também foi acionada para fornecer informações sobre a fiscalização e incidentes relacionados ao transporte público coletivo, mas não houve retorno.