
Casais homoafetivos formados por homens, mulheres transexuais ou travestis estão agora legalmente acolhidos na Lei Maria da Penha (Lei Nº 11.340). A decisão final e tomada por unanimidade é do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros acolheram uma ação da Associação Brasileira de Famílias HomoTransAfetivas (ABRAFH).
Como o Congresso Nacional se omitiu em não legislar sobre o assunto, coube ao STF agir. Para o relator, ministro Alexandre de Moraes, a ausência de uma norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha “pode gerar uma lacuna na proteção e punição contra a violência doméstica”.
“Considerando que a Lei Maria da Penha foi editada para proteger a mulher contra violência doméstica, a partir da compreensão de subordinação cultural da mulher na sociedade, é possível estender a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação”, destacou Moraes em seu voto.
Ainda segundo o ministro, a identidade de gênero, ainda que social, é um dos aspectos da personalidade e nela estão inseridos o direito à identidade, à intimidade, à privacidade, à liberdade e ao tratamento isonômico, todos protegidos pelo valor maior da dignidade da pessoa humana.
Em relação às mulheres transexuais e travestis, Alexandre de Moraes entendeu que a expressão “mulher” – contida na Lei Maria da Penha – abrange tanto o sexo feminino como o gênero feminino. Para o ministro, “a conformação física externa é apenas uma, mas não a única das características definidoras do gênero… Há, portanto, uma responsabilidade do Estado em garantir a proteção, no campo doméstico, a todos os tipos de entidades familiares”.
Em relatório de 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou que o crime mais frequente contra travestis e gays foi o homicídio (com 80% e 42,5%, respectivamente). No caso de lésbicas, prevaleceram a lesão corporal (36%) e a injúria (32%). Mulheres trans apareceram como mais vitimizadas por crimes de ameaça (42,9%).
Sancionada em 2006, a Lei Maria da Penha estabelece medidas para proteger as vítimas de violência doméstica, como a criação de juizados especiais, a concessão de medidas protetivas de urgência e a garantia de assistência às vítimas.
Geovana Soares, da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (AmoSerTrans), comemorou a decisão do STF. “Temos agora algum tipo de proteção para esse grupo que é tão carente de legislação. No Brasil, a gente tem um congresso extremamente conservador que não vai legislar para nenhuma pauta que seja do público LGBT”, disse.

Decisão é muito importante e representa avanço
Cindy Barbosa, advogada especializada em direitos das mulheres na Jus Feminina, recebeu a decisão do STF com entusiasmo porque representa um avanço no combate à violência doméstica e na proteção das vítimas. “O STF reconhece a necessidade de promover a proteção à população LGBTQIAPN+ ao estender a aplicação da Lei Maria da Penha. Isso significa que homens em relacionamentos homoafetivos agora podem ter acesso a medidas protetivas em casos de violência doméstica”, disse Cindy.
Ela lembra que outro ponto essencial foi o reconhecimento, já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que a Lei Maria da Penha também protege as mulheres trans. “Isso acontece porque o critério para sua aplicação não se dá por analogia, mas sim pelo gênero. Mulheres trans são tão mulheres quanto as mulheres cisgênero, e a decisão do STF reforça esse entendimento”, analisa. A advogada esclarece que a decisão do STF não estende a Lei Maria da Penha para homens em relações heteroafetivas, mesmo que sejam bissexuais, cis ou trans.
Cindy Barbosa festeja a decisão porque atende a uma necessidade real e urgente: “garantir proteção a grupos que historicamente ficaram vulnerabilizados, como homens gays, bissexuais cis, homens trans, pessoas transmasculinas, intersexo e outros que não se enquadram nos perfis tradicionalmente contemplados pela legislação. Com isso, o STF preenche uma lacuna legal, assegurando medidas protetivas para essas vítimas, enquanto ainda não há uma norma específica para esses casos”, pontua.
Genova Soares, do AmoSerTrans, diz esperar que o Estado, com base na decisão do STF, apresente o suporte necessário para pessoas LGBTs vítimas de violência doméstica. “Em muitos lugares já existe uma rede para mulheres e agora os casais homossexuais ou LGBTs vão poder também acessar. Por exemplo, em Sergipe tem a patrulha Maria da Penha e a Ronda, que são políticas públicas estaduais e municipais que auxiliam mulheres vítimas de violência doméstica. Agora, essas ações de suporte serão disponibilizadas para casais homoafetivos formados por homens e mulheres travestis e transexuais, população muitas vezes à margem e longe de acessar essas políticas”, destaca Geovana.
Paulo Cesar Lira Fernandes, presidente da Associação Dialogay, avalia que a decisão do STF foi importante porque, de algum modo, acaba reconhecendo o casamento homoafeitvo. “O casamento hétero é reconhecido e não é atacado, mas o casamento homo sofre a violência permanentemente, desrespeitado por órgãos de saúde, de educação, da segurança”. Paulo defende que a decisão do STF precisa virar lei, entrar na Constituição Federal e ser objeto de constante formação e educação na sociedade.

Homens trans e pessoas transmasculinas seguem expostos a violências
Èmi Almeida, advogado e homem trans, afirma que apesar dos avanços, as transmasculinidades continuarão a lutar para que o conceito de violência doméstica seja ampliado. “O Mandado de Injunção 7452 reconhece a violência apenas em relações homoafetivas, mas já existem decisões judiciais que reconhecem a violência sofrida por masculinidades trans a partir de outras identidades de gênero, e não apenas de homens cis ou outras transmasculinidades”, informa Èmi, que é militante do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) e da Associação de Travestis e Transsexuais Unidas na Luta pela Cidadania (UNIDAS).
Ele afirma que a decisão do STF é importante, mas não contempla a violência vivida por aqueles que estão em relações heterossexuais, deixando sem resposta uma realidade concreta de violação de direitos. “Homens trans e pessoas transmasculinas em relações heterossexuais seguem expostos a violências marcadas pelo machismo, pelo controle sobre seus corpos e pela tentativa de negação de suas identidades. Muitos sofrem violências diversas, incluindo a recusa do reconhecimento de sua masculinidade e a violação de sua autonomia corporal”, afirma Èmi.
O advogado entende que o reconhecimento progressivo aponta para a necessidade de um debate contínuo e de mudanças legislativas que garantam uma proteção integral a todas as vítimas de violência doméstica, independentemente de sua identidade de gênero e da configuração específica da relação em que a violência ocorre. “Nós, do IBRAT, entendemos que a Lei Maria da Penha foi criada para coibir a violência doméstica e familiar com base na vulnerabilidade de gênero. Homens trans e pessoas transmasculinas enfrentam riscos e desigualdades estruturais que demandam proteção legal específica, a fim de garantir acesso à justiça, segurança e dignidade, combatendo a violência doméstica e familiar”, defende.
Èmi Almeida também afirma que “o sistema de justiça frequentemente nos trata de maneira incoerente, ora negando nossa identidade de gênero, ora nos considerando ‘homens como quaisquer outros’, sem levar em conta as especificidades das violências de gênero enfrentadas. Essa lacuna jurídica perpetua a vulnerabilidade dos homens trans e transmasculinos e dificulta o acesso à proteção estatal”. Ele reforça que a aplicação da Lei Maria da Penha precisa ser ampliada para proteger também homens trans e pessoas transmasculinas em relações heterossexuais, garantindo que a legislação cumpra seu papel de combater a violência doméstica de forma efetiva e inclusiva.
Para além da decisão do STF, ainda há muito a se fazer
Para Jéssica Taylor, da Associação de Travestis e Transsexuais Unidas na Luta pela Cidadania (Unidas), a decisão do STF sobre ampliar a Lei Maria da Penha para casais homoafetivos formados por homens e mulheres travestis e transexuais é importante, mas não resolve. “Mesmo com a lei, inclusive com penas mais duras, todo os dias vemos mulheres sofrendo violências de gênero. Os números de feminicídio ainda são alarmantes, ou seja, penso que a Lei Maria da Penha precisa ser repensada para que efetivamente seja cumprida”, acredita.
A advogada Cindy Barbosa analisa que a violência entre casais homoafetivos, atravessadas por relações de poder e controle, ainda permanece como um tema periférico nos debates jurídicos e sociais. Para ela, a ausência de um olhar aprofundado sobre essas relações no sistema de justiça contribui para a invisibilização dessas violências e para a dificuldade de acesso à proteção integral prevista na Lei Maria da Penha.
“Para a efetividade dessa lei, é preciso que os órgãos públicos estejam preparados para acolher essas denúncias de forma adequada e que o Estado reconheça a necessidade de capacitação dos agentes e aplicação de protocolos, sempre considerando a perspectiva de gênero, para que todas as vítimas tenham acesso a um sistema de proteção eficaz. Atualmente ainda existe revitimização, subjugamento e descrédito na palavra das vítimas”, informa Cindy.
Também para Geovana Soares, da AmoSerTrans, os órgãos públicos não estão devidamente preparados para atender os casais homoafetivos formados por homens e as mulheres travestis e transexuais. “Existe uma necessidade de fortalecimento de uma rede que ainda é falha até mesmo para mulheres cisgêneras. A gente precisa, enquanto movimento social, sociedade civil organizada e legisladores fiscalizar o cumprimento da decisão do STF e exigir que os equipamentos se preparem para essa demanda que vai começar a chegar. Óbvio que a gente vai encontrar bastante resistência por conta da lgbtfobia estrutural, mas precisamos seguir avançando”, defende.

SSP/SE afirma que delegacias estão orientadas a cumprir decisão do STF
Por meio de nota enviada para a Mangue Jornalismo, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE) informou que “tem compromisso inabalável com a proteção de todas as vítimas de violência doméstica e familiar, em total conformidade com a recente decisão do STF. As forças de segurança já seguem protocolos específicos, especialmente por meio do Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) e das Delegacias Especializadas, garantindo um atendimento humanizado e qualificado às vítimas. A decisão do STF reforça a importância contínua da capacitação das equipes e do aprimoramento dos protocolos para um acolhimento ainda mais eficiente”.
Segundo a SSP/SE, “as delegacias estão orientadas a registrar e apurar com rigor as ocorrências envolvendo casais homoafetivos formado por homens, mulheres travestis e transexuais, assegurando a proteção prevista na Lei Maria da Penha. Entendendo a necessidade de treinamento contínuo e de protocolos específicos para acolher esse público em diversas situações de violência, a SSP investe na qualificação de suas equipes para garantir um atendimento cada vez mais inclusivo e eficaz”.
Ainda segundo a secretaria, “a Polícia Militar também deve ser acionada em casos de urgência e emergência, garantindo resposta rápida e proteção imediata às vítimas. Além disso, os serviços da perícia oficial estão à disposição para a devida comprovação da violência praticada, reforçando a base probatória necessária para as providências legais cabíveis. A SSP segue empenhada em assegurar que todas as vítimas de violência doméstica e familiar tenham acesso às medidas protetivas e demais instrumentos legais necessários para sua segurança e dignidade”, conclui a nota.
*Com informações da Agência Brasil