
Beirando a Praia da Costa, na Barra dos Coqueiros, em Sergipe, um barracão se sustenta aos trancos e barrancos. A brisa do mar, a expansão imobiliária e projetos inacabados da prefeitura vão tentando varrer a estrutura que comporta 20 artesãs*. Há 17 anos, perto de chegar à sua maioridade, o barracão da Associação de Artesãos da Barra dos Coqueiros (AABC) está ancorado naquela terra à espera de dias melhores.
A AABC foi fundada em 2008, impulsionada pelo Desenvolvimento Regional Sustentável, uma iniciativa do Governo Federal com o Banco do Brasil, que tinha o objetivo de formar cooperativas nos municípios brasileiros. Quando o projeto embarcou na Barra dos Coqueiros, tinha o intuito de criar uma cooperativa de renda de filé, porém com a pouca quantidade de bordadores na época, não foi possível seguir em frente.
A comunidade de artesãos que começava a se formar, se reuniram e decidiram fundar uma rede de apoio para a criação de projetos e disseminação do saber artístico na cidade. De lá para cá, já passaram cerca de 60 artesãos pela associação, alguns se ausentaram das funções, mas seis artesãos que estiveram presentes na fundação, somam-se hoje com os outros 14 que adentraram nesse projeto e permaneceram.
Ao olhar para o barracão, é possível ver o tronco de coqueiro que foi colocado ali em 2008 e permanece sustentando toda a estrutura até os dias de hoje. É um pedaço de história que é contada por diversas pessoas que fazem da arte a sua paixão avassaladora. É quase um filme de romance. Mas a realidade é dura, às vezes amolece e ressoa gritos de esperança, mesmo com rasteiras perenes, que insistem em aparecer.
“Porque a gente vive esperando, vive nessa esperança de dias melhores. De um espaço melhor feito pelo poder público ou uma empresa privada. Não ser nós, artesãos, que temos que fazer. Mas se tiver que ser, a gente vai fazer”, disse Andreia Silva, artesã fundadora da AABC.
Ao lado do barracão tem uma obra inacabada da Prefeitura da Barra dos Coqueiros em parceria com o Governo Federal. É o início, sem continuidade, da tão prometida Praça do Turista. Iniciada no ano de 2022, a obra teve um investimento de R$ 483.566,10 com um aditivo de R$ 105.582,57, na gestão de Alberto Macedo. No ano de 2024, a obra recebeu um novo incremento, agora com um investimento de R$ 15.500.000,00 para a “construção da Orla da Praia da Costa”, mesmo local da praça.
A expectativa era de que as obras fossem finalizadas em abril deste ano, na gestão do prefeito Airton Martins, mas o que se encontra no local são restos de um projeto estagnado mirando em um futuro distante, no qual a vida ao redor não para e nem espera.
A Mangue Jornalismo tentou entrar em contato com a Secretaria de Infraestrutura e Urbanismo da Barra dos Coqueiros para saber os próximos passos da obra e como afetará a AABC, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.

Propostas para tirar o barracão daquele lugar, que está há quase 20 anos, chegaram. As ideias permeavam entre revitalizar e, a mais cobiçada, demolir para construir um box na “Orla da Praia da Costa”. São propostas que nunca chegaram nem ao papel, a obra segue parada e as artesãs na busca para manter de pé o seu castelo.
A AABC também é um lugar de formação artística, em que acontecem oficinas para diferentes faixas etárias, tanto de residentes do município quanto de outros lugares, como explica a atual diretora da associação, Verônica Patrícia.
“Estou aqui lutando com as artesãs, as antigas e chamando as novas para a arte continuar aqui na Barra dos Coqueiros. A gente vê que o artesanato é só mais para quem é idoso, temos muitos idosos aqui na associação, nós estamos capacitando os jovens para que acolham a nossa arte, para não deixar morrer.”
Um dos maiores objetivos da AABC é propagar a identidade da Barra dos Coqueiros e transformar a cidade em um grande polo representativo por meio da arte. “Porque uma cidade sem cultura, sem identidade é uma cidade morta, sem história”, conta Andreia.
E para além disso, é transformar a sede da associação em um espaço de memória, pesquisa e aprendizado. Fazer um percurso de levar a arte para vidas que estão distantes do centro cultural que cresce na Barra, como aconteceu na vida de Andreia e tantas outras artesãs. “Manter esse espaço para as futuras gerações, para pesquisa, para estudo. É ficar registrada essa identidade cultural. A Barra tem arte, a Barra tem um celeiro artístico”, disse Andreia.
As artesãs que fazem parte da associação não enxergam essa rede como apenas um local de trabalho, esse, na verdade, está na última posição dos seus objetivos. A AABC é um lugar de encontro, trocas de experiências e de afetos. É um espaço que as artistas conseguem se curar, seja psicologicamente, financeiramente ou até mesmo fisicamente. Fazer parte da associação se tornou um modo de viver, como bem explica Elaine Bonfim, grande apoiadora da AABC.
“Ao participar da associação, você termina desenvolvendo o estilo de vida no sentido que, são os lugares para onde vocês passam a semana, é o trabalho, as amizades que são feitas, os aniversários que comemoram, as viagens que fazem, tudo começa a entrar dentro dessa rotina da associação de ser artesão. Mais do que um retrato de uma economia solidária, de um modo de fazer arte, mas um modo de viver”, falou Elaine.
Vidas bordadas por amor
Andreia Silva Santos teve a infância na zona rural da Barra dos Coqueiros, em Capuã, hoje denominada de bairro. Em contato com a terra, Andreia trabalhava com a sua avó na coleta e venda de feijão, mangaba, quiabo e até mesmo adubando coqueiro. Bastou ir um dia ao centro do município e ver algumas meninas fazendo crochê para o seu encanto pelo artesanato brotar.
Ainda não sabia muito bem o que era aquilo que elas faziam, apenas percebeu que em suas mãos havia um objeto com a ponta curvada que fazia malabarismos até tecer um tecido. Voltou para casa ansiosa para repetir o que elas estavam fazendo, e não tendo o mesmo material, restou usar o que tinha à sua volta.
“Eu lembro que a agulha das meninas tinha uma dobrinha. Eu dobrei o palito de coqueiro e tentava pegar a linha com aquilo, de tão apaixonada que eu fiquei de ver aquelas garotas fazendo isso”, contou Andreia.

O destino e as necessidades levaram Andreia para outros lugares, sua vida ficou afastada da arte por quase 20 anos. Até que um dia, em que estava de folga na Praia da Costa, viu um homem passar vendendo biojóias que ele mesmo produziu. Seus olhos se encantaram, não só pelas artes, mas por aquele que viria a ser seu companheiro.
José Francisco Nascimento, conhecido como Chico Ras, veio de Pernambuco para Sergipe há cerca de 30 anos. Quando chegou por aqui, começou a vender as biojóias que produzia. Com o tempo, passou a fazer instrumentos de percussão e artes com o côco. Hoje, além de artesão, Chico também faz parte da AABC e é percussionista da banda Reação. Ele e João Lucas, filho de Andreia, são os únicos homens artesãos da Associação.
Certo dia, Chico mostrou para Andreia que ali na Barra ia acontecer um curso de renda de filé. Foi a oportunidade perfeita para que Andreia voltasse a tecer sua arte e se aproximar mais do artista. A origem da renda de filé que se tem registrado iniciou no estado de Alagoas. Andreia conta que essa técnica de bordado chegou na Barra dos Coqueiros por meio da Dona Darcy há mais de 50 anos. Desde então, a renda de filé se tornou a identidade do município.
Foi só aprender a bordar a renda, que a sua vida deslanchou. “A arte me deu a oportunidade de concluir o ensino médio. Quatro anos depois eu fiz faculdade. Tudo isso através da arte e por causa da arte”, relembrou Andreia.
Andreia cursou Letras, já foi presidente da AABC por dois mandatos e finalizou o cargo no início de 2025. Em 2020, Andreia sofreu um acidente, após cair de uma escada, comprimindo a medula óssea, o que a fez perder a força nas duas pernas. Durante a sua recuperação, Andreia não se viu sozinha.
Os frutos que tinha plantado com o artesanato começaram a surgir. Precisando de atenção em boa parte do dia, algo que só o seu marido e um dos seus dois filhos não conseguia dar conta, Andreia recebeu a ajuda de diversas artesãs, até mesmo de uma, a qual se recorda, que teve contato apenas em viagens esporádicas de economia solidária. Em muitas noites, a amiga fez companhia a Andreia.
“Foi onde eu vi o quanto que fazer parte de um movimento social foi tão importante na minha vida, porque as minhas amigas não deixaram as lágrimas caírem. Todas me ajudaram, de todas as formas que você pensar, com dinheiro, com carinho, com mensagem, com oração”, falou Andreia.

Assim como Andreia, Ana Mércia teve contato com a arte na infância. Ela e as duas irmãs se apaixonaram pelo crochê e tricô logo cedo, faziam tiras com sacolas plásticas, emendavam uma na outra e as usavam como linha. Com 18 anos de idade, Ana Mércia precisou deixar essa paixão guardada em seu coração.
Saiu do município de Simão Dias, interior de Sergipe, para Aracaju. Na capital, mergulhou nos estudos até se tornar professora de ciências e matemática na rede pública de educação. Até que chegou um momento da sua vida que não dava mais para guardar aquele amor que insistia em pulsar dentro do seu peito.
Nas escolas em que lecionou, Ana Mércia tentava agregar a arte com a educação. “Como professora, sempre utilizava [arte] nas minhas aulas, achava um jeitinho para botar. Sempre trazia alguma coisa que eu fazia, a pintura, principalmente. Quando a gente ensaiava as danças do grupo folclórico, as peças geralmente eram feitas por mim e pelos alunos. O chapéu do reisado a gente decorava, cada um decorava o seu”, contou Ana Mércia.
A artesã entrou em um fluxo de trabalho muito intenso. Pela manhã, trabalhava para escola do estado de Sergipe, à tarde e à noite, para escolas da prefeitura de Aracaju. A maior parte da sua vida foi correndo de uma aula para outra, sem tempo para descansar a mente e aliviar as tensões do corpo.
Quando se aposentou, o mundo parou de solavanco. O seu corpo e mente não estavam preparados para a desaceleração repentina, ainda sentia a necessidade de se manter em movimento. A sua fala era ansiosa, não tinha paciência de esperar para poder falar, queria resolver as situações no mesmo instante.
Para tentar acalmar esses anseios, Ana Mércia foi testar tudo o que estava ao seu alcance, mas nada parecia ser o suficiente.”Eu fui para ioga, não conseguia nem fechar os olhos, a mente ia para um monte de lugares, eu não tinha paciência de fechar, de me concentrar, aí desisti. Depois eu fui para o pilates, hoje eu faço pilates, mas hoje eu já sou outra pessoa. Eu fui para o pilates e não gostei”, contou Ana Mércia.
A resposta para tantas dúvidas, Ana Mércia encontrou no artesanato. É produzindo as suas peças, que a artesã consegue deixar a mente mais quieta, se desligar do mundo e focar na obra em suas mãos. Com a arte, Ana Mércia também aprendeu a respeitar o tempo, deixar que ele tome as rédeas quando for necessário, e ela possa tirar das suas costas o peso da pressa.
“Porque o artesanato ensina muita coisa. Como eu lido com a pintura, aí tem o tempo de impermeabilização, o tempo de secagem, eu tenho que esperar, eu tenho que sentir a peça e saber que aquele momento é um momento certo para ir para o próximo passo”, disse Ana Mércia.
A artista tirou a sua carteira de artesã com a arte do fuxico, em que faz almofadas, colchas de cama e decorações. Outra produção que já esteve bastante presente na vida de Ana Mércia, foi a de caixas decorativas de MDF. Mas a que vem se tornando protagonista em suas produções atualmente, são as pinturas de artigos religiosos.
Ana Mércia é ligada à religião católica desde a infância, quando fez parte da Juventude Franciscana do Brasil (JUFRA) por 12 anos. Ela viveu esse movimento com tanta assiduidade, que quase foi para o convento. Mas por certos desencantos com a organização da igreja, Ana Mércia se afastou, mas nunca deixou a fé se abalar, manteve firme a sua crença em tudo o que fazia.
E como se fosse arrebatada pelo sagrado, sem perceber Ana Mércia começou a colocar a sua religião nos produtos que confeccionava. Hoje o seu carro chefe são as pinturas religiosas que faz. A artesã foi uma das últimas a entrar na Associação, há cerca de dois anos atrás, junto com a sua grande amiga Maria José. E nesse pouco tempo, sua vida mudou completamente.

Maria José morou a vida toda na Barra dos Coqueiros, sente que ali é o seu lugar e jamais sonha em deixá-lo para trás. Tudo o que sente morando ali é diferente de todos os lugares em que já passou. “Até o ar que a gente respira aqui é diferente. Os silêncios, o barulho do mar, esse jeito interiorano das pessoas”, conta.
A sua infância foi moldada pela maré. Quando estava mais cheia, não dava para fazer o percurso beirando a praia até o centro da cidade, o caminho era mais longo para ir caminhando e assim que chegava, pegava a tototó para ir até Aracaju.
Nessas idas e vindas, Maria José quis começar a fazer crochê, comprou a linha e sentiu disposta a rodar a cidade inteira à procura de alguém para lhe ensinar. A filha da sua vizinha lhe mostrou cada ponto que era possível fazer com uma agulha e uma linha.
Aos 22 anos de idade, aprendeu o tricô, técnica que não acreditava que era possível fazer com linha. E hoje é a sua paixão. “É por prazer que eu faço no tempo vago que eu tenho. Qualquer tempinho que me sobra, eu faço. Tenho vontade nem de ir pra lugar nenhum, quero ficar em casa. Eu amo, amo de paixão. Eu saio porque eu tenho que sair, tem que resolver alguma coisa em algum lugar, ir em um evento… mas se fosse por mim, ficava ali só [produzindo]”, disse gesticulando os movimentos que faz com a agulha.
Com a associação, Maria José conseguiu aumentar a sua rede de apoio e ter contato com outras pessoas que tinha o mesmo amor pela arte que ela sentia. “Cada uma com sua história dura, porque pra ninguém foi fácil. E é a realização de um sonho a gente poder expor nosso trabalho”, falou a artesã.
Diferente das outras artesãs, que se criaram na Barra dos Coqueiros, Delma Coutinho veio da Paraíba para Sergipe há cerca de 30 anos atrás. A artesã teve o contato com a arte dentro de casa, por sua mãe, mas conta que teve que se virar sozinha na maioria das vezes. Por ser agricultora, a mãe de Delma não levava muito jeito para a arte com a costura, mas se desafiava mesmo assim para poder fazer as roupas das suas filhas e das bonecas.
Hoje, Delma faz arte com retalhos. Os pedaços de tecido que já estão fadados a irem para o lixo, Delma vê um valor altíssimo neles. “Então os meus biquínis são diferentes, porque se sobrar um pedacinho hoje eu já vou criar um modelo pra não jogar aquele pedaço de pano fora. Como quem é da arte se importa, não quer perder nada, quer aproveitar tudo”, disse Delma.
Como juntando um tecido em outro, as artesãs criaram um vínculo umas com as outras, que chega a atravessar as suas vidas por inteiro. É uma união que realmente faz a força. “A gente se fortalece juntas. Nós nos fortalecemos juntas. Então todo mundo pegado na mão, porque a gente vai pras feiras juntas, nós expomos no hotel juntas. E uma pessoa só é mais difícil chegar onde quer. E, se juntando, nós nos fortalecemos e a gente pode chegar onde a gente quer”, contou Delma.
* Por ter a maioria de mulheres na composição da Associação, a reportagem utilizou o plural feminino.