LUIZ GUSTAVO, especial para a Mangue Jornalismo
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas possam expressar ideias e perspectivas que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto ele não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.
Crítica selecionada na Mostra O Teatro Sergipano na Pandemia 2024.
“Você está chamando isso de lugar?” diz Vera (Diane Veloso) para Sara (Giuliana Maria), passando o dedo indicador ao redor das bordas do espelho que a denota como uma imagem. A superfície reflexiva é experenciada pela tela de uma webcam que demonstra a mulher com seus dois olhos fixos muito próxima a câmera. Desse modo, ela permite a instauração de uma intimidade conosco, que é compartilhada com sua amiga Sara. Ele é sua vizinha no espaço digital da videochamada, mora ao lado das bordas do seu quadro, em outra webcam, e ouve as declamações indo e vindo da moldura uma da outra. Sara escuta a pergunta no escuro, iluminada por uma lanterna, ao fundo do quadro, afastada da “boca de cena.”
Em “Onde você estava quando eu acordei?”, filme dirigido por Flávia Teixeira, ambas personagens retratadas experimentam o quadro como um palco. Os limites da imagem, suas bordas, marcam o território ocupado por Vera e Sara. Elas as utilizam para modular variadas formas do eu, seja como um modo de libertação ou aprisionamento de si. Temos experimentações dos corpos nos espaços e dos espaços nos corpos.
Esses experimentos estão pautados na existência das personagens como imagens autoconscientes. A interpretação para a webcam permite um olhar constante sobre si na superfície reflexiva do espelho. Era o cineasta alemão Fassbinder que costumava espalhar espelhos pelo seu cenário com o objetivo de que seus atores tivessem uma percepção sobre sua própria fisicalidade e se auto dirigissem (Aumont, 2024). Em “Onde você estava quando eu acordei?” temos a fundição dessa materialidade corporal reflexiva das personagens em outras imagens.
Isso ocorre, por exemplo, quando elas pedem para ver a cicatriz uma da outra. O nosso reconhecimento automático nos leva a pensar nas marcas corporais, mas a imagem que se revela diante de nós demonstra um desenho de traços infantis de um pai com sua filha, enquanto Vera desenha um traço vermelho com um marcador em seu tórax. “Uma porta”, diz ela, sob uma sequência de imagens de portas que substituem seu corpo na videochamada. A justaposição entre corpo e objeto na montagem é utilizada como meio de expansão de si dentro do quadro.
Um modo de libertação do sujeito que também ocorre quando há uma expansão dessas bordas do quadro por meio da movimentação de câmera de Vera e Sara. Tal aparelho na mão das personagens dá a imagem uma mobilidade corporal. Do mesmo modo, que as aprisionam corporalmente dentro de uma rigidez do quadro quando interagem com personagens no extracampo. Criam uma separação entre o visível e o invisível. Seus corpos se resumem por uns instantes a imagem do quadro, enquanto criam infinitas possibilidades imagéticas para o lado de fora, por meio da imaginação.
Desse modo, as linhas entre o palco e o quadro, prisão e liberdade, a subjetividade entre Vera e Sara se borram dentro da não linearidade da obra. No quadro final, um monitor na tela, está ligado ao coração de Sara e Vera, que se tornam um só batimento e transformam o som de suas batidas em vida no palco.
Referência:
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004. [Orig. 2002]
Luiz Gustavo é estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Sergipe e escreve críticas como colaborador para a Revista Nostalgia, desde o seu surgimento em 2023. luizgustavos79@gmail.com