PAULA GUIMARÃES, do Portal Catarinas (www.catarinas.info) para Mangue Jornalismo
O que o parlamento brasileiro fez no último dia 12 de junho, na calada da noite e na surdina, ao aprovar a urgência do Projeto de Lei 1904/2024, representa uma grave violência institucional. Ato que simboliza a máxima demonstração do poder do patriarca, enquanto autoridade que diz quem manda nesta casa, neste país, neste corpo. Poderíamos caracterizar como política afirmativa do estupro de crianças.
Na proposta, a interrupção da gravidez após 22 semanas, mesmo nos casos permitidos por lei, equipara o ato ao pratica a homicida. Punindo com penas mais severas a vítima de estupro do que ao próprio estuprador. Um retrocesso assombroso, de 80 anos no direito garantido desde o Código Penal vigente, que não estabelece ressalvas sobre tempo gestacional.
A proposta é negacionista não apenas por desconsiderar a trajetória de direitos, mas por ir à contramão dos avanços científicos que garantem a segurança do aborto tardio, conforme recomenda a Organização Mundial da Saúde.
Segundo apontam evidências, o procedimento, mesmo em gestações avançadas, é mais seguro do que o parto em crianças.
Ainda que inadmissível diante da perspectiva de direitos humanos e defesa da vida das mulheres e corpos que gestam, cabe situarmos sobre quem controla as regras no parlamento brasileiro. O presidente atual da casa legislativa, além de suspeito de violência doméstica, censurou a reportagem que fez a denúncia. Isso poderia nos levar à conclusão de que há contradição entre o discurso e a prática, mas Arthur Lira não se apresenta como alguém interessado na defesa dos direitos das mulheres.
Pelo contrário, nossos corpos são facilmente manipulados por ele como moeda de troca por meio de estratégias populistas para obtenção de favores em benefício de interesses próprios ou políticos partidários. Não seria demais dizer, que o lugar do agressor lhe cai bem. O que se estende aos outros homens que assinam a proposta.
O estuprador veste a desonra, não em si, mas em quem ele emprega a violência. No caso do PL, como expressão institucional dessa cultura, desumaniza a vítima a ponto de torná-la mais criminosa que seu algoz. Ele a subjuga a ponto de fazer de seu corpo uma incubadora.
A coercitiva pergunta “suportaria mais um pouquinho?” passou à ordem, sob ameaça de prisão, “leve a gravidez até o fim”. Porque nesta casa mando eu, neste corpo também.
É assim que se faz no território de poder supremo dos deuses, coronéis, milicianos, garimpeiros, grileiros, latifundiários, fazendeiros, detentores de orçamentos secretos, de loteamentos legais, ilegais, terrestres e celestes. Onde certos corpos são matrizes a demarcar, reproduzir, a serem explorados como terra de ninguém.
São homens que tudo podem, à imagem e semelhança do deus do Velho Testamento: cruéis e impiedosos, idolatrados por seu poder fálico, medido pelo status econômico, político e bélico, na confraria de seus pares. É no poder de desumanizar, de humilhar, de colocar no lugar da menor valia, de dizer quem manda, que se monta o estuprador. Quanto mais perverso, maior é seu poder.
Há algo mais cruel do que obrigar uma criança, por força da lei, a levar a gravidez até o fim, a gestar, parir e maternar? Há algo mais imoral do que uma criança ser forçada a carregar o fardo do algoz, diuturnamente penetrando sua infância, pensamentos, sonhos e projetos de vida?
Um projeto que proíbe o aborto tardio ignora que essa situação afeta principalmente crianças, que na maioria das vezes não têm informações adequadas sobre seus corpos e estão em situações de extrema vulnerabilidade. Propor um projeto que equipara o aborto a homicídio desconsidera que a falta de acesso à informação, a vulnerabilidade socioeconômica e o racismo são os principais obstáculos para que crianças realizem abortos no Brasil.
Isso, como se esses serviços fossem amplamente disponíveis, quando na realidade é um martírio conseguir realizar um aborto legal em gestações avançadas. Isso sem falar que apenas 3,6% dos municípios brasileiros têm serviço de aborto legal. O que já era ruim, piorou sobremaneira após a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), e mesmo com decisão contrária do ministro Alexandre de Moraes, a insegurança jurídica já se instalou no país.
A série histórica do levantamento feito pelo Datasus revela um dado alarmante: mais de 20 mil crianças, entre 10 e 14 anos, dão à luz anualmente no Brasil. A pergunta que surge é: como estão essas crianças? Será que conseguem continuar seus estudos? Será que desejavam deixar de brincar e de viver suas infâncias? Esses são aspectos que parecem não preocupar os parlamentares.
Enquanto sociedade, é possível suportarmos mais um pouquinho a interrupção das infâncias? Podemos tolerar só mais um pouquinho esse estupro simbólico, com a invasão e intromissão das nossas humanidades e existências? Qual será a medida, o limite da violência que suportaremos?
Não é possível suportar nem mais um pouquinho. É hora de apontar ao líder dos nossos violadores, que segue a trajetória de Eduardo Cunha, consagrado inimigo das mulheres.
Em 2015, os ares da Primavera abriram o portal que jamais fechou para uma onda feminista no mundo. Desta vez, teremos que nos contentar com o outono, quando as pétalas caem e a natureza se livra do que não cabe mais. A hora é agora. As ruas aguardam o nosso retorno.
Quem determina nosso lugar somos nós, e mesmo que por vezes sejamos vítimas, isso não define a totalidade da nossa humanidade. Quando nos erguemos em desobediência, também nos tornamos uma ameaça para aqueles que nos violentam. Não somos apenas vítimas, somos agentes contra o estupro, ou parafraseando Vini Jr.: algozes deles! Ao nos organizarmos, podemos desestruturar este estado de coisas.
Não aceitemos a história de silêncios e abusos que submeteram as gerações anteriores. Por elas, por nós e pelas que virão: não suportaremos nem mais um pouquinho. A esperança é feminista e tem de nós o que podemos dar de melhor: a coragem, a luta e um basta.
Miremos nos potenciais estupradores e façamos que se envergonhem publicamente disso.
Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É referência em coberturas jornalísticas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente sobre o acesso ao aborto legal e os efeitos da criminalização da prática para as meninas e mulheres.